Lilith e o mundo moderno

Há, nos tempos atuais, um fenômeno interessante, que guarda, para os que o analisam com cuidado, um forte vínculo simbólico com o mundo moderno. Trata-se de uma curiosa — e reveladora — valorização da figura mitológica de Lilith, uma “deusa” pagã cultuada em todo o crescente fértil na antiguidade. Lilith, atualmente, ressurge do esquecimento alçada pela onda do “empoderamento” — odeio essa palavra, mas, fazer o quê? — feminino. Mas, será que, realmente, as mulheres, ao menos as brasileiras, gostariam de ver seus interesses vinculados a essa figura mitológica?

Para responder a essa questão, é preciso saber-se exatamente quem seria Lilith. Vamos conhecer um pouco do mito, tomando por base sua representação na cultura judaica, mais próxima de nós do que, por exemplo, a babilônica na qual Lilith também aparecia.

Usarei, para tanto, como base o livro “As lendas do povo judeu”, de M. J. Bin Gorion, publicada pela Editora Perspectiva. [1]

Lilith, segundo Bin Gorion, teria sido a primeira mulher criada por Deus. Sua criação se deu a partir da terra, mesma matéria de que Ele se utilizou para trazer Adão à vida. Dela, Adão não podia dizer que era “carne de sua carne e osso de seus ossos”, como, depois, diria de Eva. Por sua própria natureza, mais do que esposa, Lilith era irmã de Adão e, sendo assim, não aceitou sujeitar-se a ele. Houve, então, uma rusga entre o casal e “quando Lilith viu que não havia paz, proferiu o verdadeiro nome de Deus e levantou voo”.

Levantou voo? Que coisa curiosa… Até não é difícil imaginá-la, a partir dessa narrativa, abrindo asas numa figura mais angélica do que humana e deixando para trás o Jardim do Éden. Mas, como alguém criado com a mesma natureza de Adão levanta voo? O que teria acontecido e o que tem isso a ver com o fato de ter ela pronunciado o verdadeiro nome de Deus?

Não há uma resposta clara. Mas, na sequência da história, vê-se que Deus tenta fazer Lilith se arrepender e retornar a Adão, sob pena de ter de “aceitar o fato de que irão morrer cem filhos seus diariamente”. Algo de grave, então, ela fez. Há, escondida na breve narrativa, uma séria desobediência de Lilith. Qual seria? A briga com Adão e sua recusa em se sujeitar a ele? Ou, como parece ser mais certo, o fato de ter ela pronunciado o nome de Deus — pronúncia essa que seria, nesse caso, proibida — e assumido a forma de um anjo decaído?  Seja como for, ela já não é mais tratada, desde então, como um ser da mesma natureza de Adão. Tanto que foge para o mar, passando a habitar no ponto das águas “onde mais tarde os egípcios se afogariam”, o que, claro, não seria possíveis para pessoas humanas comuns. Deus ainda manda anjos para tentar demovê-la, mas ela os rejeita com uma frase contundente: “Deixem-me! Não sabeis que fui criada em vão e que é meu destino dizimar recém-nascidos: quando é um menino, tenho poder sobre ele até o oitavo dia; se é menina, até o vigésimo”. O diálogo, como se vê, é, também ele, repleto de mistérios. Como chegou Lilith à conclusão de que sua criação fora vã? E, sobretudo, quem deu a ela a missão de “dizimar recém-nascidos?”. Essa “missão” tétrica seria uma espécie de reação à pena divina de ver seus próprios filhos mortos diariamente caso não se arrependesse de sua fuga?

De novo, não há uma resposta clara. Mas, se alguma clareza há, é a de que a figura dessa que seria a primeira mulher, aquela que se quer ter tomar como símbolo do “empoderamento” feminino, vai ganhando, cada vez mais, os contornos de um demônio puro e simples.

Um pouco mais à frente, após a queda de Adão e Eva, Lilith, efetivamente, passa a exercer uma atividade maligna e sombria sobre crianças. Incapaz de aproximar-se dos céus, ela vagueia pela terra e “se encontra crianças que devem ser castigadas, começa a brincar com elas e as mata”. E que pecados cometeram essas crianças que devem ser castigadas? Aqui, temos uma resposta: nenhum. O castigo que recai sobre elas — insisto: sempre segundo o mito — é o devido ao pecado dos pais:

Mas, depois que Adão e Eva cometeram o pecado, o Senhor tirou Lilith novamente das profundezas do mar e lhe concedeu o poder sobre a vida das crianças; deveriam sofrer os castigos pelos pecados de seus pais.

Lilith torna-se, assim, uma assassina de crianças inocentes… Que belo símbolo para a luta das mulheres contemporâneas…

Mas, para que se cumprisse a ameaça divina de que ela própria veria seus filhos morrerem às dezenas todos os dias, seria necessário que Lilith fosse mãe. E quem viriam a ser os seus filhos? Bem, ela, após a queda de Adão, acaba seduzindo-o e, copulando com ele, vem a conceber “um sem número de diabos, espíritos e demônios”. A mulher que mata crianças inocentes de pecados pessoais é, ela própria, mãe de espíritos malignos.

Aqui, fica clara a ligação do mito com o mundo moderno, que não serve como símbolo do “empoderamento” feminino como querem alguns. A simbologia — que agora já é evidente para quem me acompanhou até aqui — é outra: Lilith é uma mulher que, tornando-se inimiga do homem, revolta-se contra ele e contra Deus, e, como vingança de suas próprias dores, passa a odiar os filhos inocentes de Adão. Ela representa, muito bem, a atual onda ideológica que contrapõe sexo contra sexo, que se revolta com a natureza das coisas e que se e que se volta contra crianças inocentes.

O problema é que Lilith é exposta com ares de sofisticação, independência e sensualidade. Mas, em si mesmo, ela nada mais é do que um ser atormentado, repleto de ódio, mãe de seres malignos e assassina de crianças.

Penso que, ao menos para a imensa maioria das mulheres, a resposta à pergunta lançada no começo do texto é evidente. Particularmente, não conheço nenhuma que realmente gostaria de um ser tão sombrio como ícone de suas lutas.


[1] O termo “Lilith” (לילית) aparece apenas uma vez em todo o Antigo Testamento, em Is 34, 14. Trata-se de uma profecia contras nações em geral e contra Edom em particular, que seriam desoladas pela ira de Deus. No versículo mencionado, lê-se: “Nela se encontrarão cães e gatos selvagens, e os sátiros chamarão uns pelos outros; Lilith frequentará esses lugares e neles encontrará o seu repouso”. Em muitas traduções, porém, tanto no campo católico como no protestante, a palavra “Lilith” é traduzida como “espectro da noite” ou “espírito da noite”.

A mulher que fugiu de Sodoma

Certa manhã, um sol lusíada dourou a ilha da Madeira que balouçava no mar alto como tela num cavalete. Aquilo era uma estrofe verde de Camões ressoando no ar.

A citação acima foi tirada de um trecho do romance “A mulher que fugiu de Sodoma”, de José Geraldo Vieira. Mário, protagonista do romance, está passando pela ilha da Madeira enquanto se dirigia a Paris, onde tentaria reconstruir sua vida após destruí-la pelo vício do jogo. Como o leitor pode perceber, é uma passagem belíssima, própria de quem tem talento suficiente para uma literatura imorredoura. E, de fato, no romance, José Geraldo deixa claro que não é um escritor qualquer, produzindo alguns dos mais impressionantes trechos de literatura que eu já tive o prazer de ler, porém – talvez por ser das suas primeiras obras –, misturando-os com muitas passagens banais, e alguns até mesmo constrangedoras.

O romance se divide em três partes. Na primeira delas, somos apresentados aos dois personagens principais – o próprio Mário e Lúcia, sua esposa – e ao drama humano que vai perpassar a narrativa: a impossibilidade de que uma alma de grandeza ímpar – a de Lúcia – aceite conviver com uma que se corrompeu por um vício vil – a de Mário. Ela, como a família de Ló ao ser avisada pelos anjos, foge de seu antigo mundo com firme resolução sem cometer o erro pueril de olhar para trás.

Se o rompimento do casal é traumático e se a fuga de Lúcia é satisfatoriamente conduzida, a oscilação do texto, que ora atinge o sublime e ora flerta com o tolo, é desconcertante.

Dou dois exemplos.

Após a narrativa comovente da morte de um menino apelidado de “Segundo Clichê” – morte essa de suma importância dentro da trama – o narrador se perde num elogio fúnebre carregado de sentimentalismo simplesmente desnecessário, do qual cito apenas um pequeno trecho:

Pobre Segundo Clichê… Tu, que muita vez dormiste na soleira das casas comerciais do largo do Machado, tonto de sono e de fadiga, com os teus jornais esparramados pelo chão; tu, que, como quarto teu, tinhas apenas esse quarto onde tua mãe passava a ferro; tu que te sentias tão bem, depois do teu trabalho, deitado e estirado entre trastes, ferros de engomar, latas, bacias, caixas de papelão, sapatos velhos e roupas alheias — dormes, agora, sossegado sob essa colcha que cheira a poções e a óleo canforado.

Dificilmente poderia ser pior… Mesmo porque esse elogio fúnebre – algo entre o apelativo e o sociológico de beira de esquina – sequer tem razão de ser. Fosse ele eliminado, e nada da trama se perderia, pois, quando o menino morre, o leitor já sabe que era pobre, trabalhador, amado pela família e de responsabilidade rara para a idade que tinha. Todo o drama humano real e concreto de se perder uma criança sem a necessária assistência a que podia ter acesso tinha sido muito bem exposto ao leitor pela narrativa em si.

Outro exemplo se dá logo mais adiante, quando Mário, retornando para casa após uma noite de jogatinas fracassadas, depara-se com trabalhadores urbanos, essas “figuras híbridas, metade gigantes metade escravos, que, em grupo, consertam, na hora plácida das noites estivais, o asfalto das ruas e os trilhos da Light.” A descrição dessa casta de desgraçados, que já é das mais açucaradas para o meu gosto, torna-se logo intragável:

São descendentes e herdeiros dos escravos que levantaram as pirâmides, dos prisioneiros que remaram, algemados, nas galeras do Mar Interno, dos mercenários que represaram mares junto aos istmos históricos, dos párias que construíram os arcos do triunfo e os templos de altos frontões triangulares. São da tribo dos Êxodos modernos, desses que descongestionam as docas de Hamburgo e de Liverpool, que povoam como formigas os estaleiros navais, desses, que, como térmitas, existem em chusmas cegas nas usinas do Ruhr, nos altos fornos da Flandres, nas minas do País de Gales e nos eldorados irônicos do Transvaal.

Bem… Reconheço que a ideia básica por detrás dessas analogias é das mais interessantes: pinçar um elemento típico da vida carioca de seu tempo (no caso, dos trabalhadores braçais revolucionando a face da cidade a qualquer hora do dia e da noite) tendo como pano de fundo tanto a história universal quanto o cotidiano de outras grandes cidades da época. O ideal, porém, seria que tal comparação se desse de forma orgânica na boca de um personagem, ou mesmo na de muitos. A escolha de se fazê-la pela boca do narrador torna a passagem não apenas pedante, mas até mesmo forçada, fazendo com que leitor se sinta lendo um mais texto de sociologia do que um de literatura.

Mas, se, na primeira parte do romance, o texto é repleto dessas oscilações, na segunda, José Geraldo mostra verdadeiramente todo o seu talento.

Em Paris, Mario, com esperança de se reabilitar perante a esposa, muda de vida e retoma a rotina de um homem honrado e responsável. Com bastante maestria, o autor mostra, sem forçar a pena, a reconstrução da vida do protagonista, jogando as luzes necessárias tanto em seus esforços sinceros quanto nos pontos fracos que ele, contudo, vai deixando em aberto e por meio dos quais o antigo vício encontrará um caminho de volta ao interior de sua alma. Mário, aqui, é a verdadeira encarnação da mulher de Ló, que, percebendo a necessidade premente de abandonar seu mundo antigo para não ser consumida pelas chamas, resolve, contudo, olhar para trás. Esse pequeno apego mostra-se fatal, e o que poderia ser uma fuga bem sucedida para uma vida nova revela-se uma tragédia tão profunda quanto a que seria simplesmente se deixar ficar em Sodoma.

Através desses pontos fracos, Mario é aos poucos reintroduzido no mundo da jogatina e, como viciado em plena recaída, vai paulatinamente perdendo o controle de si mesmo, até lançar-se num abismo material e moral – vivendo momentos que chegam a ser desesperadores – pior do que aquele que levou ao fim de seu casamento. Vemos nele a concretização da passagem bíblica do demônio que, expulso de um indivíduo, ao retornar, encontrando a antiga casa arrumada, vai chamar outros sete demônios para novamente possuí-lo, tornando o estado final do homem pior do que o anterior.

Nessa segunda parte, os detalhes das descrições e a profundidade com que José Geraldo narra a decadência de Mário são dignos – e não estou exagerando! – de um romance de Dostoiévski. E isso já diz muito sobre a genialidade do autor.

Já na terceira parte, contudo, parece que o fôlego do autor acaba: depois de mergulhar, com detalhes exuberantes, o leitor no mundo de um viciado que se degrada, José Geraldo como que encerra a história com certa pressa. Quem conhece a Missa Solemnis, pro Die Acclamationis Johannis VI, de Neukomm, vai entender o que eu quero dizer. Ao se ouvir a composição, tem-se a impressão de que se poderia estar diante de uma obra-prima da música universal, mas que se estraga pela rapidez da parte final, que torna, com sua superficialidade, desarmonioso o conjunto. O encerramento do arco dramático de Lúcia chega a causar espécie: no último capítulo, ela vive, de forma abrupta uma nova fuga, agora, do lar de magnatas que a acolheram após separar-se de Mário.

Outra vez, estamos diante de uma mulher resoluta que, definitivamente, não olha para trás. Mas, ao contrário da primeira fuga, existe aqui uma mudança rápida e radical em seu espírito, como se Lúcia desse um salto de uma certeza – a de que vivia na casa de amigos nobres que a amavam – para a certeza oposta – a de que eles, ainda que a amassem, queriam usá-la de alguma forma – sem que a mudança estivesse justificada na trama. O movimento dela, prematuro, simplesmente não convence e deixa de fazer jus à grandeza da personagem.

No balanço geral, entre trechos geniais e tolos, entre cenas descritas com detalhes importantíssimos e outras que, sinceramente, parecem inflar a narrativa sem nenhuma razão verdadeiramente importante – como a longa descrição de uma corrida de cavalo vista pelos olhos de Nuno de Almada –, entre escolhas narrativas geniais e outras inverossímeis ao extremo, o livro é, ao meu ver, mais do que recomendável. Se o leitor souber perdoar a obra pelos seus pontos fracos, poderá aproveitar os pontos fortes, que são tão raros em nossa literatura, que talvez, exceção feita à obra de José Geraldo, não se encontrem em nenhum outro lugar.

As Consequências de Tudo

Em nossos dois primeiros artigos, exploramos um pouco dois conceitos estranhos que povoam o pensamento de Dworkin: o juiz Hércules e a interpretação criativa. Ou, se o leitor preferir: o logos do direito e o seu poder de fiat. Agora, queremos dar um passo adiante par fechar o raciocínio, explorando as consequências que advém de tais conceitos.

Na melhor tradição ocidental, a lei era vista como um ato da razão. O legislador, aplicando sua razão a situações reais, extraia uma norma que continha, em si, a justa solução para a generalidade dos casos. Porém, em se tratando de razão prática, quanto mais se desce do geral  para o particular, mais exceções se vão encontrando. Assim, o juiz, ao julgar, na maior parte das vezes, limita-se a aplicar a lei, mas, se o caso particular o justificar, pode excepcionar essa aplicação e dar a ele solução diversa, mas que realiza a mesma justiça que seria desejada pelo legislador caso tivesse previsto aquela situação singular.

No sistema de Dworkin, há uma mudança radical. A lei, de plano, torna-se apenas um elemento a ser levado em conta pelo julgador, devendo sempre ser contraposta com os princípios fundadores de uma determinada sociedade, com a jurisprudência e, a bem da verdade, com sua própria evolução histórica. Além disso, o entendimento do texto da lei é aberto, podendo o magistrado inserir nele significados que o legislador não previu ou não quis prever. E, a rigor, podendo mesmo inserir significados que o legislador expressamente quis evitar.

Dessa forma, a lei perde quase que totalmente seu caráter vinculante e, ao menos nos hard cases, transforma-se numa mera sugestão dada pelo legislador, uma dica, que o juiz pode ou não acatar. E se o juiz opta por aplicá-la, no fundo, ele o faz por estar convencido de que a norma prevista é, ao cabo de tudo, a solução mais coerente a ser dada ao caso concreto, e não porque esteja, efetivamente, obrigado a tanto. O legislador, assim perde sua importância na vida política da sociedade, sendo seu lugar ocupado pela magistratura.

Uma segunda consequência: se o juiz cria o direito a ser aplicado, e se, necessariamente, ele o faz ao julgar um caso concreto, então, nesse arranjo, o direito torna-se posterior ao fato. No fundo, em nossas relações jurídicas, jamais temos a certeza de estar agindo em conformidade com o direito ou contrariamente a ele, porque, a rigor, o direito que as vai reger ainda não existe. Passará a existir apenas quando Hércules se manifestar, o que nos joga a todos num mar de insegurança jurídica, coisa que, aliás, é perceptível mesmo aos brasileiros mais simples.

É verdade que, para nós, magistrados, a coisa toda é muito tentadora. Nossa importância, nessa visão de direito, cresce enormemente. O protagonismo passa a ser nosso. O problema é que a quebra do status vinculante da lei e a atomização dos atores com poder de criar o direito leva a uma situação quase de anomia e, portanto, de imprevisibilidade absoluta. E nenhuma sociedade pode sobreviver ao caos jurídico que daí decorre. Cedo ou tarde, virá alguma reação e ninguém pode prever a qual lugar exatamente o Poder Judiciário será relegado quando ela vier. O que hoje é atrativo, amanhã pode se revelar, para o próprio Poder Judiciário, simplesmente catastrófico .

Melhor, então, voltarmos à visão clássica. E, como mera ilustração, cito um trecho da Suma Teológica:

É melhor que todas as coisas se ordenem por lei do que deixar ao arbítrio dos juízes. E isso por três razões: Em primeiro lugar, porque é mais fácil achar poucos sábios, que bastem para estabelecer leis retas que muitos, que seriam requeridos para julgar retamente casa caso. Em segundo, porque aqueles que estabelecem as leis, já de muito tempo consideram o que deve ser estabelecido por leis, mas os juízos sob fatos singulares fazem-se a partir de casos subitamente aparecidos. Mais facilmente um homem pode ver o que é reto a partir da consideração de muitos casos do que a partir de um fato único. Em terceiro lugar, porque os legisladores julgam no universal e sobre coisas futuras, mas os homens que presidem aos julgamentos julgam sobre coisas presentes, em relação às quais são afetados por amor, por ódio ou por alguma cobiça, e assim, se deprava o julgamento.

Uma vez que a justiça viva do juiz não se encontra em muitos e é flexível, assim foi necessário que, em todos os casos em que era possível, a lei determinasse o que devia ser julgado, e deixasse pouquíssimas coisas ao arbítrio dos homens.[1]

Santo Tomás parece ter escrito esse texto para rebater as excentricidades de Dworkin… com setecentos anos de antecedência. O que é uma medida razoável para que tenhamos uma ideia da superioridade intelectual de um sobre o outro.


[1] Suma Teológica, I Secção da II Parte – questão 95, artigo segundi.

A Preferência Nacional

Josephine Baker

A guerra entre Rússia e Ucrânia acaba de completar dois meses. Ontem (24/04), houve eleições na França, cujo resultado impacta diretamente a política externa brasileira. Na China, novas medidas de lockdown assumem tons tão draconianos que, há alguns meses, seriam inimagináveis. A economia do mundo inteiro derrapa. No Brasil, já se vive o clima pré-eleitoral, há novas ameaças de choque entre instituições, a inflação ameaça disparar e o país é assolado por outro surto de dengue.

Apesar disso tudo, quem acessou os principais portais de notícias nos últimos dias foi brindado com fotografias e matérias sobre… o carnaval fora de época e o sucesso das rainhas de bateria! Não é surreal que, com tantas coisas de suma importância acontecendo nós, brasileiros, percamos tanto tempo e demos tanta importância a algo tão banal e tolo?

Esse deslocamento quase que absoluto entre a importância real dos acontecimentos e a forma pela qual nós os avaliamos parece ser uma tônica do comportamento do nosso povo. Há uma passagem deliciosa na saga O Tempo e o Vento que comprova esse fato com fina ironia.

O personagem principal do romance, o médico Rodrigo Cambará (não confundir com o famoso capitão Rodrigo, de quem ele é bisneto) recebe, em 1.925, uma carta de Terêncio Prates, amigo seu que vivia em Paris e que se mostra preocupadíssimo com os rumos que via o mundo tomar. “Estamos presenciando um cataclismo social em toda a Europa”, escreve em tom de desânimo. E segue: “É o caos. Não há mais fé, nem moral, nem Ética e nem mesmo estética.” Continua citando exemplos dessa decadência generalizada: “As mulheres perdem o pudor, cantam canções bandalhas, dançam danças lúbricas, desnudam-se em público, fumam, bebem, sim senhor, embriagam-se como homens”; “encontra-se em Paris (…) uma mulata norte-americana que se exibe num destes cabarés completamente nua, apenas com uma tanga de bananas[1]. Lamenta que os europeus, antes acostumados à grande música, agora ouviam “essa ‘coisa’ cacofônica, barulhenta e negroide que é ‘jazz band’”. Na literatura, as coisas também não iam bem: “O que se vê agora por aqui é uma literatura pseudo-moderna, que não consigo estimar nem ao menos entender”. Prenunciando acontecimentos que atingiriam seu ápice décadas depois, descreve que “a mocidade parece ter tomado o freio nos dentes e saído a apedrejar homens e instituições, a rasgar e a espezinhar as velhas bandeiras tradicionais, quebrar as vidraças das academias”.

E, por fim, arremata a carta com uma boa dose de acerto quanto às causas da crise: “E sabes a quem cabe, em boa parte, a culpa de tudo isso? A dois tipos de mentalidade que estão procurando impor-se no mundo. A da Rússia, com seu bolchevismo materialista e iconoclasta, e a dos Estados Unidos, com sua irreverência esportiva e sua arrogância de ‘noveau riche’”. E, com não menos acerto, aponta qual a saída para ela: “contra o ateísmo russo e o mercantilismo calvinista dos ianques terá de erguer-se a força moral e histórica da nossa Igreja”.

Pois bem.

O Dr. Rodrigo Cambará lê a carta para um círculo de amigos e, terminada a leitura, esperando ver quais seriam suas considerações diante de acontecimentos tão graves, ouve, de um deles (Neco Rosa) a seguinte pergunta: “Como é mesmo a história da mulata que dança pelada?

O mundo pegando fogo e o que interessou o sujeito foi apenas o detalhe da mulata dançando sem roupas. Quase um século se passou. Mas os portais de notícia dos últimos dias não deixam margens para dúvidas: a desproporção entre a importância real dos fatos e a tábua de preferência dos brasileiros continua rigorosamente a mesma.


[1] Trata-se de Josephine Baker que, tanto sucesso fez, foi sepultada no próprio Panteão de Paris.

Interpretação Criativa

Pai, foste cavaleiro. 

Hoje a vigília é nossa. 

Dá-nos o exemplo inteiro 

E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada, 

Novos infiéis vençam, 

A bênção como espada, 

A espada como benção!

(Fernando Pessoa).

§ 7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.

(Lei 11.101/06, artigo 6º, §7º-A).

O que o leitor pensaria se alguém lhe dissesse que os dois textos acima devem ser lidos ambos sob a mesma clave interpretativa? Julgaria a afirmação razoável? Pois um dos mais famosos juristas dos últimos tempos faz exatamente essa sugestão.

 Como dito em nosso último artigo, o juiz ideal para Ronald Dworkin, mais do que um super-herói, é um deus com um poder específico: o da interpretação criativa.

O jurista afirma que a interpretação “conversacional” costumeiramente utilizada pelos magistrados quando se debruçam sobre textos legais não é a mais indicada para a tarefa. E por quê? Bem, porque, numa interpretação conversacional, o que prepondera é o significado do texto que o emissor da mensagem (no caso: o legislador) quis passar. Em outras palavras, o intérprete se esforça por tentar entender quais as intenções do legislador ao firmar, por exemplo: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” Para o jurista americano, seria quase impossível entender-se exatamente o que está por trás de um texto tão “complexo”. De fato, ao falar de Hermes, o juiz que ainda tenta empregar essa interpretação tão obsoleta, ele afirma:

Já é muito difícil descobrir as intenções de amigos, colegas, inimigos e amantes. Como poderia ele sonhar em entender as intenções de estranhos que viveram no passado e que talvez já estejam todos mortos? E como poderia ele ter certeza de que, ao final das contas, há alguma intenção útil a ser descoberta?[1]

Em outras palavras, o fato de termos dificuldades em nos entendemos uns aos outros seria prova da inutilidade de se tentar entender a mensagem que o legislador quis nos passar ao redigir uma lei. A comunicação humana, segundo Dworkin, é quase impossível. É claro que os livros dele são exceção à regra e seus leitores podem efetivamente entender as ideias que visam transmitir. Os demais textos, contudo, devem todos ser lidos em clave diversa. 

E qual seria, então, essa clave? Simples: o operador do direito deve interpretar a lei como se interpreta um texto literário. Deve ler a Lei de Falências com a mesma abertura de alma com que lê Fernando Pessoa.

Ora, numa boa obra literária, o texto traz, em si, diversos significados com os quais o próprio autor quis enriquecê-lo. A pluralidade semântica é a marca da boa literatura. Mas o leitor, respeitando essa pluralidade – e esse é um ponto fundamental para Dworkin – pode encontrar no texto significados outros, que nem mesmo o autor imaginaria nele existirem. De forma que o leitor, explicitando esses novos significados, torna o texto mais profundo do que o autor jamais sonharia. Nessa interpretação, portanto, os significados pretendidos pelo autor e aqueles dados pelo leitor têm a mesma importância.

Seria brilhante, se não fossem dois problemas.

Em primeiro lugar, a intepretação criativa advogada por Dworkin se dá em dois momentos: no primeiro, o intérprete capta todos os significados desejados pelo autor do texto; no segundo, empresta ao texto significados novos de forma a enriquecê-lo. A compreensão do que autor do texto quer dizer é a condição prévia para a construção de novos significados. O primeiro passo da interpretação criativa, portanto, nada mais é do que uma interpretação conversacional, coisa que Dworkin reputava, no início de sua argumentação, como praticamente impossível.

Além disso, essa interpretação conversacional embutida na interpretação criativa traz uma dificuldade a mais quando comparada com aquela que é tradicionalmente usada por juízes. Isso porque, nessa última, pressupõe-se que o legislador quis dar um comando e que, portanto, por debaixo do texto, existe um único significado a ser descoberto. Já na interpretação criativa, buscam-se nela todos os significados possíveis por detrás da letra da lei, como se as palavras do legislador tivessem sido empregadas com a mesma abertura semântica desejada por Fernando Pessoa em seus poemas.

Com todo o respeito aos que apreciam a ideia, trata-se de uma tolice rematada montada sobre uma contradição evidente, Mas, por tola e contraditória que seja a ideia, ela serve, ao cabo de tudo, a um propósito: o de libertar o intérprete das amarras da letra da lei, dando-lhe poderes para construir, ele próprio, o direito a ser aplicado ao caso concreto.

Os resultados disso serão tratados em outro artigo.


[1] No original: It is hard enough to discover the intentions of friends and colleagues and adversaries and lovers. How can he hope to discover the intentions of strangers in the past, who may allbe dead? How can he be sure there were any helpful intentions to be discovered? (Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Belknap Harvard, p. 317)

Hércules, Herbert e Hermes

Um dos pontos mais interessantes da obra do conhecido jurista Ronald Dworkin é que ele criou, para melhor ilustrar e explicar suas teses, três personagens, todos juízes: Hércules, Herbert e Hermer. Cada um deles encarna um tipo diferente de magistrado, sendo desnecessário dizer-se que, para o autor, o tipo ideal está representado no primeiro. Vamos traçar as características gerais de cada um.

Comecemos por Herbert. Trata-se de um juiz comum, do tipo clássico. Daqueles que, ao julgar seus casos, acredita mesmo estar adstrito às normas existentes, agindo discricionariamente apenas na medida em que tais normas o permitem. Nos dizeres de Dworkin, ele adota uma teoria do exercício da magistratura segundo a qual os “juízes decidem os casos em duas etapas: primeiramente, encontram o limite exigido pelo direito posto e, então, exercem sua discricionariedade para legislar sobre questões que a lei não alcança[1].

E Hércules? A descrição dele dada por Dworkin é reveladora: “Inventei, para esses objetivos, um jurista de habilidade, erudição, paciência e perspicácia sobre-humanos, a quem chamarei de Hércules.”[2] É verdadeiramente um super-herói, com um superpoder especial: o da interpretação criativa.

A postura de Hércules diante de um caso a ser julgado é completamente diferente da do pobre Herbert. Ele não dá importância alguma a quaisquer limites prévios ao agir. Como diz Dworkin, Hércules “parte de seu próprio julgamento para determinar quais direitos legais as partes perante ele têm” sem se dobrar às convicções da população em geral e – suprema imparcialidade – sem nem mesmo permitir que as suas próprias interfiram em suas decisões.[3]

Em outras palavras, o que o direito é ou deixa de ser depende, exclusivamente, de como Hércules o entende. Ele é, em essência, a fonte do direito.

O nome desse personagem ímpar não foi escolhido ao acaso (Dworkin o afirma textualmente). As habilidades de Hércules, são, de fato, sobre-humanas. Ele, por exemplo, conhece todas as normas e toda a jurisprudência acumulada sobre cada uma delas. Ao julgar uma demanda, ele leva em conta a integralidade desse arcabouço. E, se o caso for difícil, usa de sua inteligência ilimitada para, levando em conta todas as normas e todas as decisões anteriores sobre casos semelhantes, decidir a questão, criando o direito a ser aplicado ao caso.

Herbert se submete ao direito; Hércules o cria. Seu único limite é ter que observar todas as normas e toda a jurisprudência já acumulada sobre a questão. É como um pedreiro que, ao colocar seu próprio tijolo na construção de um muro, sabe que está fazendo o muro crescer, mas respeita todos os tijolos que os demais pedreiros, vindos antes dele, também colocaram. Mas isso é fácil. Afinal, ao abordar os textos legais e jurisprudenciais que o “vinculam”, ele é livre para interpretá-los como quiser e adicionar significados àquilo que está escrito. Trata-se de uma “vinculação” bastante peculiar, portanto…

Uma vez que Hércules cria significado aos textos legais e jurisprudenciais, percebe-se que, mais do que um semi-deus grego, ele, na verdade, ocupa, na trama do direito, a mesma posição que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ocupa na fé cristã: ele é o Logos por meio do qual o direito se faz.

E Hermes? Bem, nos dizeres de Dworkin, esse é um juiz que tem as mesmas habilidades notáveis de Hércules, mas que ainda aceita a tese de que os textos legais e jurisprudenciais devem ser lidos buscando-se entender o que o legislador e os julgadores do passado efetivamente quiseram dizer. Hermes rejeita a interpretação criativa e, assim, rejeita a posição de Logos do sistema. Tinha tudo para ser como Hércules, mas, falhando em dar o passo final e se livrar de entraves linguísticos, acaba se limitando quase a um mero Herbert. Tem lá seus superpoderes, mas apresenta uma falha de… hermenêutica. Como o leitor vê, Dworkin sabe ser criativo.

É obvio que qualquer juiz, entre Herbert, Hermes e Hércules, preferiria ser como esse. O primeiro é um tolo; o segundo, um fraco; o terceiro, um deus.

Ser como Hércules é muito tentador. E, de fato, muitos, hoje, perfazem o papel do juiz dworkiniano (permitam-me esse neologismo) perfeito sem o saber. Mas a proliferação de deuses dentro do Poder Judiciário também tem o seu preço. Isso será, contudo, abordado num próximo texto.


[1] No original: “…judges decide cases in two steps: they find the limit of what the explicit law requires, and they then exercise an independent discretion to legislate on issues which the law does not reach.” (Dworkin, Ronald. Taking Laws Seriously – kindle version)

[2] No original: “I have invented, for this purpose, a lawyer of superhuman skill, learning, patience and acumen, whom I shall call Hercules.” (id.)

[3] No original: “He uses his own judgment to determine what legal rights the parties before him have, and when that judgment is made nothing remains to submit to either his own or the public’s convictions.” (id.).

Greta e os Transformadores do Mundo

Algumas pessoas me perguntam o que eu acho da figura de Greta Thunberg, a simpática sueca que deseja, humildemente, transformar o mundo. Por ter uma grande preguiça em responder a essa pergunta, achei por bem escrever o presente texto para livrar-me da tarefa de uma vez por todas.

Começo dizendo – por estranho que possa parecer – que não sei nada sobre veterinária. E sei menos ainda sobre técnicas cirúrgicas. Por isso, se algum de vocês, um dia, precisar de meus préstimos para fazer uma cirurgia de emergência naquele pet que tanto amam, aconselho que não insistam quando ouvirem, logo de cara, minha negativa e não queiram me convencer do contrário. Creiam: o animalzinho terá mais chances de seguir vivo deixado à própria sorte do que colocado em minhas mãos.

Isso é coisa que devia ser óbvia para todo mundo: quem se dispõe a realizar uma tarefa deve ter alguma qualificação para ela. Por mínima que seja. Do contrário, é melhor deixar as coisas caminharem por si só já que a interferência humana, nesses casos, costuma provocar catástrofes incomensuráveis.

E, se isso é verdade quanto a assuntos de menor importância (como a cirurgia no seu pet), quanto mais não o é no que tange a outras um bocadinho mais complexas, como, digamos, a tarefa de transformar o mundo. Então, a resposta básica a ser dada sobre a jovem Greta é, no fundo, uma pergunta: ela realmente entende o mundo que deseja transformar?

Já é conhecido do leitor desse blog[1] que uma das afirmações mais famosas de Marx foi a de que os filósofos, até o século XIX, tinham se limitado a interpretar o mundo, mas o que realmente importava era transformá-lo. A afirmação até que tem seu charme e capta a atenção (a Greta que o diga). Mas, pensando dois segundos nela, percebe-se que o que tem de charmosa tem igualmente de estapafúrdia. Tentar transformar o mundo sem antes conhecê-lo é como operar cirurgicamente um animalzinho sem saber nada de operações cirúrgicas… e nem de animaizinhos.

Qual o resultado dessa tolice? Penso que Chesterton já criou a melhor das analogias para exemplificar o que se espera num cenário como esse:

Suponhamos que surja em uma rua grande comoção a respeito de alguma coisa, digamos, um poste de iluminação a gás, que muitas pessoas influentes desejam derrubar. Um monge de batina cinza, que é o espírito da Idade Média, começa a fazer algumas considerações sobre o assunto, dizendo à maneira árida da Escolástica: “Consideremos primeiro, meus irmãos, o valor da luz. Se a luz for em si mesma boa…”. Nesta altura, o monge é, compreensivelmente, derrubado. Todo mundo corre para o poste e o põe abaixo em dez minutos, cumprimentando-se mutuamente pela praticidade nada medieval. Mas, com o passar do tempo, as coisas não funcionam tão facilmente. Alguns derrubaram o poste porque queriam a luz elétrica; outros, porque queriam o ferro do poste; alguns mais, porque queriam a escuridão, pois seus objetivos eram maus. Alguns se interessavam pouco pelo poste, outros, muito; alguns agiram porque queriam destruir os equipamentos municipais. Outros porque queriam destruir alguma coisa. Então, aos poucos e inevitavelmente, hoje, amanhã, ou depois de amanhã, voltam a perceber que o monge, afinal, estava certo, e que tudo depende de qual é a filosofia da luz. Mas o que poderíamos ter discutido sob a lâmpada a gás, agora devemos discutir no escuro.[2]

Acho que deu para entender…

Não me perguntem se Greta Thunberg percebe que sua geração e ela própria estão fazendo precisamente o que Marx exigiria que fizessem. Não há como eu possa saber. E, ainda que houvesse, eu também teria preguiça de pesquisar sobre esse ponto. Digo somente uma coisa: percebendo ela ou não, pouco importa. O que importa é que, querendo operar um animalzinho sem os conhecimentos mínimos, estão todos condenando o pobre coitado a uma morte dolorosa. Só que, no caso, a morte a dor serão suportadas não por um pet que, por simpático que seja, hoje é e amanhã deixa de ser. Antes, serão suportadas pelas futuras gerações de seres humanos, supondo, claro, que chegarão a existir. Pois sempre há o risco da humanidade não suportar o pós-cirúrgico…


[1] https://mmjusblog.wordpress.com/2019/09/23/marx-e-o-segredo-do-sucesso/

[2] G. K. Chesterton, Hereges, Ed. Ecclesiae, p. 35

A Alegria do Natal

É chegada a hora de dizermos a todos “Feliz Natal” e quantos de nós já não recebemos esse tipo de mensagem em antigos cartões de natal e mais atualmente em mensagens de whatsapp em tantos grupos de que participamos. Um Feliz Natal!

Por quê? Por que desejamos às pessoas um feliz natal?

Por que a felicidade e a alegria estão tão próximas do Natal a ponto de desejarmos um feliz natal às vezes a pessoas que mal conhecemos?

E aqui vai um pouco de história, mas com pingos de curiosidade.

O primeiro cartão de natal enviado na história não foi um cartão entregue pelo correio. Não! O primeiro cartão de natal enviado na história foi um cartão enviado pelo próprio Deus por meio de seus anjos.

Naquela noite santa, os pastores nos arredores de Belém receberam uma notícia. Um anjo apareceu a eles. E quando aparece um anjo qual é a reação do ser humano ao ver um anjo? Alegria? Felicidade? Não, nada disso!!!

Em todas as passagens bíblicas em que há a notícia de aparição de anjos, existe a ideia de pavor, de temor. Por exemplo, quando do anúncio da gravidez de Santa Isabel, apareceu-lhe então um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do perfume. Vendo-o, Zacarias ficou perturbado, e o temor assaltou-o.

Assim, não foi diferente quando do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois havia nos arredores uns pastores, que vigiavam e guardavam o seu rebanho nos campos durante as vigílias da noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu ao redor deles, e tiveram grande temor (Lc 2, 8-9).

Mas o anjo disse: não temais !

E por que não é de se temer?

O anjo disse: “Eis que eu vos anuncio uma boa nova que será ALEGRIA para todo o povo”. A palavra que consta do original grego é “εὐαγγελίζομαι”, que traz em si o significado de anunciar algo de bom.[1] O latim é tão importante que nem ousou traduzir: “ECCE ENIM EVANGELIZO VOBIS GAUDIM MAGNUM”.

Perceberam de onde vem a mensagem de alegria no natal?

A alegria do natal advém do anúncio do nascimento de Jesus no meio de nós.

Nada é à toa. A boa notícia é essa e é ela que traz alegria a todos: nasceu para nós todos um Salvador, que é Cristo Senhor. Nossa grande alegria.

No Evangelho de Mateus (2,9b-12) sobre a alegria lemos: “E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino. Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma grande alegria. Quando entraram na casa, viram o Menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram…”

Tenhamos, pois, presentes que neste natal, e em tantos outros que celebraremos em nossas vidas, festejaremos o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo no meio de nós. Não é aniversário. É o mistério da encarnação.

E por que Cristo veio para nós?

Para que soubéssemos o quanto Deus ama os homens e para que, ao sabê-lo, ardêssemos no amor daquele que nos amou primeiro e para que amássemos o próximo, por ordem e exemplo daquele que se fez próximo por amar quem não estava próximo, mas vagava ao longe.

Jesus Cristo, Deus e Homem, é a demonstração do amor divino por nós. Um exemplo para nós da humildade humana.

Pela encarnação, Deus penetra a realidade total da existência humana de sua concepção e nascimento até a morte, como um ser humano qualquer. Jesus aniquila-se em sua divindade, fazendo-se pobre e necessitado da atenção e do carinho humano. Ele não nasceu em berço esplêndido ou num palácio. Ele nasceu na pior das circunstâncias: numa estrebaria, ao lado de animais e numa das épocas mais frias do ano em Belém. Mas Deus quis assim “E o Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós”.

Não é a alegria da troca de presentes, das músicas, das luzes, do panetone ou de um Papai Noel, que nem existe. É Jesus, verdadeira e profunda alegria e que nenhum acontecimento nem ninguém pode nos tirar.

É a alegria da eternidade que entra no tempo, pois esse é o momento que a eternidade entra no tempo. Deus se encarna no corpo de uma pessoa humana.

Alegremo-nos, pois no Senhor e Nele exultemos e louvemo-lO não apenas com os lábios, mas com nossos corações! Sursum corda! Verbum caro factum est!!!

Feliz Natal !!!


[1] A raiz desse verbo é a mesma que, em português, gerou a palavra “Evangelho”.

Direitos humanos e direito natural

Palestra proferida para o IEP-Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa, em 11 de novembro de 2021.

Por Ricardo Henry Marques Dip

Não é infrequente deparar-nos em nossos tempos com algum uso intercambiável −ou, quando não, ao menos muito acercado− dos termos direitos naturais e direitos humanos, a cuja aproximação, além disso, concorre o termo direitos fundamentais. Alguns concebem os direitos fundamentais sob o modo de uma realização histórica dos direitos naturais; outros referem-se às perspectivas iusnaturalistas dos direitos humanos; há quem entenda que a expressão mesma direitos humanos é apenas um modismo contemporâneo, porque seria ela um sinônimo do termo direitos naturais; há ainda quem seja proclive a suprimir a referência aos direitos naturais, inclinando-se simpliciter a substituí-la pelo termo direitos humanos; ou, encerrando essas indicações recrutadas a título meramente ilustrativo, há como que um positivismo iusnaturalista −ou seja, um positivismo de direitos naturais, reduzidos a serem só possivelmente os direitos fundamentais expressos nos ordenamentos particulares. Tenha-se ainda em conta que, desde a segunda metade do século XX, uma parte considerável do pensamento católico −não só o dos leigos, mas também o de uma parcela não negligenciável de integrantes da hierarquia eclesial− inclinou-se à defesa e à promoção dos direitos humanos, fenômeno que José Miguel Gambra designou como o batismo desses direitos; muito longe está-se, pois, da condenação que o Papa Pio VI, na Encíclica Adeo nota (23-4-1791), infligira aos direitos humanos da Declaração francesa de 1789 por serem “diciassette articoli (…) contrari alla religione e alla società”, e às sucessivas impugnações pontificais desde a Quanta cura e do Syllabus de Pio IX, passando pelas acusações de Leão XIII à civilização moderna, pela doutrina contramodernista do Papa S.Pio X −assinaladamente na Encíclica Pascendi e ao condenar o movimento do Sillon−,  até chegar, em meados do século XX,  às reiterações críticas do Papa Pio XII, tal esta passagem, a título ilustrativo, da Alocução destinada aos juristas italianos, em 6 de novembro de 1949: “L’errore del razionalismo moderno è consistito appunto nella pretesa di voler costruire il sistema dei diritti umani e la teoria generale del diritto, considerando la natura dell’uomo come un ente per sè stante, al quale manchi qualsiasi necessario riferimento ad un Essere superiore, dalla cui volontà creatrice e ordinatrice dipende nell’essenza e nell’azione”.

              Vem a propósito do tema a distinção desfiada por Antonio Perez Luño, que, sem desconhecer o usus loquendi −que leva a uma sinonímia prática destes termos direitos humanos, direitos fundamentais e direitos naturais−, chega, no entanto, a uma proclividade doutrinal e normativa em corresponder o termo direitos fundamentais para denominar os direitos naturais positivados no âmbito interno dos vários estados, ao passo em que o nome direitos humanos seria mais usual para os direitos naturais positivados nas declarações e convenções internacionais. Essa referência de Perez Luño sugere reconhecerem-se os direitos naturais como conteúdo quer dos direitos fundamentais, quer dos direitos humanos; e em dada medida isto não consona com a realidade, porque fosse esse conteúdo nota absoluta para essas distinções terminológicas, já não se saberia por quais motivos, aqui num único exemplo, o direito de antena, previsto na legislação constitucional portuguesa, pôde já estimar-se fundamental.

          Sem embargo de uma sobreposição factual frequente de hipóteses de direitos que a um só tempo se considerem naturais, humanos e fundamentais, não parece possa afirmar-se sua equivalência essencial. Essa impossibilidade pode escancarar-se num exemplo gráfico, quando se tenha em conta que, à altura da Declaração universal dos direitos humanos, pela Organização das Nações Unidas, em 1948, a inviolabilidade da vida humana era tida por direito inalienável do homem, ao passo em que agora, no espectro dos chamados direitos humanos reprodutivos, incluem alguns um suposto direito humano ao aborto, pondo em manifesto xeque a identificação absoluta dos direitos humanos com os direitos naturais.  Se percorrermos, além disso, algumas indicações da série que, de direitos humanos fundamentalizados em diferentes países, recolheu o pensador argentino Juan Fernando Segovia, vamos encontrar desde o direito à prática esportiva, à ginástica e à atividade física (em Cuba, Gana, Nicarágua, Portugal, Suíça, Turquia e Uganda) até os direitos específicos dos artistas (no Panamá, na Turquia); do direito dos inquilinos contra alugueres abusivos (na Polônia e na Suíça) ao direito dos concubinos em equiparar-se às famílias legalmente constituídas (em Angola, no Equador, na Guatemala, em Nicarágua, no Paraguai); dos direitos dos cientistas (na Hungria), aos quais se outorga exclusividade para decidir em questões de verdades das ciências, ao direito do ócio (na Espanha, na Holanda, no Peru); do direito ao regozijo cultural e social (na Bélgica) ao direito contra a fome (na Nicarágua); do direito de acesso à informação eletrônica (na Grécia) ao direito de acesso às bibliotecas (na Libéria), etc.

          Dostoievski, nas páginas de Os demônios, profetizara de algum modo a trivialização dos direitos humanos, ao dizer que seu mínimo era o de possuir um guarda-chuva. Não se recuse, é verdade, que do fenômeno atual dessa banalização provenha a vantagem de ter contribuído a uma dada consciência popularizada acerca do direito −ou, sobretudo e mais exatamente, dos direitos (subjetivos)− e até ao de sua elevação a um plano de supralegalidade. Todavia, os tributos que se pagam por essa estendida popularidade são o da avulsão de muitos novos direitos humanos e o da cada vez mais notória erosão de seu consenso de base.

          Pode pensar-se, em abono dessa eclosão de novos direitos humanos, que seu florescimento depois da Segunda Guerra Mundial correspondeu a uma reação iusnaturalista aos crimes de Estado perpetrados sobretudo −mas não só− pela Alemanha nazista, e decerto não faltarão bons motivos para diagnosticar alguns signos do antigo direito natural genuinamente cristão nesta retomada contemporânea da ideia de substantividade universal do direito.  Calha, entretanto, que esses signos de enraizamento dos direitos humanos à concepção (que pode dizer-se) clássica do direito natural merecem uma prudente aproximação distintiva, porque, se bem seja fato que o rol dos direitos catalogados, por exemplo, em 1948, na Declaração universal da Organização das Nações Unidas, não conflite com as noções próprias do iusnaturalismo tradicional, essa conformidade expressiva emergiu no plano de um consenso meramente prático, assim o admitiu Jacques Maritain, afirmando que esse concerto sobre os direitos humanos apenas se concluíra com a condição de que ninguém perguntasse sobre seu por quê. Era, pois, de todo adivinhável que, mais cedo ou mais tarde, símile consenso não fundacional levasse paulatinamente a resultados dissonantes entre si. Bastaria percorrer os nomes da comissão de expertos que a Unesco recrutou para elaborar o catálogo de direitos humanos da ONU, e, prontamente, ver-se-ia por notório que seu consenso se apoiava em um ecleticismo fundacional, com a consequente prognose muito reservada quanto a seu êxito, Com efeito, a consideração de que a ideologia dos direitos humanos os converteu numa espécie de leito de Procusto (na metáfora de Contreras e Poole) parece dar bastante razão aos que desfiam crítica a Bobbio e Maritain por entenderem ser apenas de praticarem-se os direitos humanos, sem que importe justificá-los (assim, Danilo Castellano).

          Não é já exagero falar em diáspora fundacional dos direitos humanos e até cabe entender, posta essa pluralidade de seus alicerces teóricos, o motivo pela qual esses direitos terminariam, como terminaram, por fundamentalizar-se, especialmente na esfera constitucional, suprindo a intensa labilidade de suas raízes movediças e, em muitos aspectos, contraditórias entre si. Ou seja, a multiplicidade (tantas vezes) conflitiva de fundamentos acarretou o aperturismo conceitual dos direitos humanos atuais, e sua livre determinação objetiva  fomentou a busca de alguma sorte de fonte, ainda que meramente manifestativa, como se dá com sua positivação particular nas constituições dos estados. Se essa fundamentalização, todavia e por mais que em não poucas vezes afeiçoada a proclamações de sua aceitação mundial, pôde exprimir, per accidens, alguns direitos efetivamente universais, o fato é que, hoje, o mundo convive com uma nacionalização dos direitos humanos, que não parece ter mais limites para conterem-se do que a só imaginação criativa de quem tenha poderes para impô-los ou reclamá-los como exercício irrestrito da autonomia individual, é dizer, da liberdade negativa.

          Seria injusto, é verdade, recusar algum mérito no projeto de restaurar uma ética para instruir e animar um direito que, sob a pauta ideológica do normativismo da primeira metade do século XX, clausulara-se aos valores, e deve louvar-se a superação teórica da ideia −como a referiu Radbruch− de que “ordens são ordens”, de que “a lei é a lei”, pois essa concepção de que a lei valia por ser lei “foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as normas mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas”. Bem por isso, ao chegar a seu quinto minuto de filosofia pós-guerra, Radbruch advertia que “há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo”. 

          Sem deixar, pois, de admitir o bem que havia na reação antinormativista dos meados do século XX ao buscar incluir no gênero normativo a classe dos princípios, normas finalísticas, destinadas ao melhor dos mundos possíveis, o fato é que essa busca ficou a meio caminho: sua visão de uma ordem jurídica universal contentava-se com uma visão racionalista do direito natural, cujos supostos exatamente reincidiam num positivismo substituinte do anterior. Talvez seja de fato possível diagnosticar uma síndrome que parece acometer parcela considerável dos juristas, nisto que incapazes de perceber o direito à margem das letrinhas dos diários das leis, e isso poderá explicar o motivo de a proclividade especulativa refratária ao normativismo kelseniano se ter acomodado à ideia de princípios transpositivos, é dizer, de algum modo indeterminados, mas postos o mais possível a salvo de intervenções ablatórias: daí a atribuição de força normativa às constituições, imputando-se ao novo direito constitucional o papel que o iusnaturalismo dito clássico reservara ao direito natural.  Enfim, os velhos segmentos do direito subconstitucional não somente passaram a subordinar-se às constituições, senão que, gradativamente, inclinaram-se a sujeitar-se a ela mais e mais, na medida em que elas paulatinamente se tornaram extensas e difusas, subtraindo espaços normativos que antes eram próprios das órbitas infraconstitucionais.

          Essa constitucionalização ou fundamentalização de princípios, por mais tentasse resguardá-los contra interferências supressivas no plano legislativo, perseverou sob o domínio da livre determinação de conteúdo dos direitos humanos, o que passou a sugerir procedimentos de substantivação por um órgão jurisdicional que completasse as normas abertas e garantisse, assim, esses direitos humanos até mais além dos propriamente tornados fundamentais. Esse órgão judicial, em palavras de Cristina Queiroz, operará ao modo de um “substituto funcional da Revolução”, transmudando, de fato, a supremacia legicêntrica  em uma supremacia judicial, escorada nas sentenças dos tribunais.

          Assim essa tendência de fundamentalização dos direitos humanos −ou seja, sua constitucionalização em um grau de superioridade formal no ordenamento jurídico−,  ao desviar-se pela trilha da codeterminação judiciária tinha de redundar logicamente no numerus apertus dos direitos humanos, de modo que não apenas as constituições estariam aptas a, formalmente, recepcionar novos direitos fundamentais −que não cessam de ter novas gerações ou dimensões−,  senão que, além disso, haveria, como já há, o reconhecimento de direitos fundamentais não constitucionalizados. Se, de uma parte, pode pensar-se em que o novo constitucionalismo corresponderia a uma forma histórica de ressurgimento do direito natural, por meio da positivação de princípios referíveis à dignidade da pessoa humana, cabe, de outra parte, considerar se a reserva estatal de determinação e sobredeterminação das normas não levaria apenas, na expressão de Robert Dahl, a um “novo normativismo”, a um normativismo de sistema aberto, no qual as normas são ora mandatos precisos e claros −equivale a dizer, são regras−, ora, diversamente, mandatos incompletos, princípios; mas sempre normas. Ou seja, tem de perguntar-se se o novo direito natural, com sua roupagem de direitos humanos, não é já somente uma espécie de positivismo, o positivismo (agora, sobretudo) judicial, em que o direito se ostenta como um grande código revestido por togas.

              Não parece, entretanto, que se possa resolver o tema dos direitos humanos com um simples acordo em torno de conveniências práticas ou mediante sua positivação em leis humanas ou por via judicial. É que, com rigor, os direitos humanos devem fundar-se, de algum modo, objetivamente, na natureza humana, e isto demanda um acercamento metafísico e não um consenso ou uma imperação de vontades ocasionais, porque a falta de ancoragem numa base objetiva universal leva, com maior ou menor rapidez, à anarquia ou ao absolutismo.

              E assim parece bem que, em relação ao direito natural clássico, distingam-se os atuais direitos humanos menos por alguma consonância ocasional de sua listagem com as res iustæ da ética iusnaturalista, mas por meio de uma resposta fundacional ao problema antropológico: quæ sit hominis natura, para aqui repetir a interrogação de Cicero em De finibus bonorum et malorum. Em outras palavras, o que decidiria sobre a caracterização dos direitos humanos estaria posto na definição do homem: “la natura o l’essenza del diritto [disse o Papa Pio XII] non può essere derivata se non dalla natura stessa dell’uomo”.  Se essa definição do homem é a de um ente apenas material e com vontade autônoma, tem-se aí a consequente configuração dos direitos humanos ao modo imanentista e voluntarista −o que se acomoda à predominante expressão contemporânea desses direitos; se, diversamente, definir-se o homem como pessoa dotada de corpo e alma espiritual, entendendo-se a espiritualidade da alma não somente como uma faculdade racional, mas também como um sujeito que é imagem e semelhança de Deus, os direitos correspondentes apresentam-se como oriundos de um princípio transcendente.

              Decerto, entretanto, não bastaria uma referência nominal à natureza humana −em que se assentam a doutrina do direito natural clássico, mas, não diversamente, ideologias de variado espectro e até opostas entre si, como as de Locke, Hobbes e Rousseau. Tem nisto muita razão Juan Fernando Segovia, ao dizer que, nos tempos pós-modernos, “el genio inventivo sigue alimentando nuevos derechos para un ser humano que no ha terminado aún de moldearse a sí mismo”. A solução real do problema parece estar, designadamente, em decidir ou pela imanência ou pela transcendência da natureza humana.

              O  confronto entre esses modelos pode estampar-se nas figuras respectivas do homo imago hominis e do homo imago Dei, com suas consequentes antropologias. É porque, no homem que se entroniza como seu próprio e bastante modelo, ao perder-se o reto conhecimento do que é o homem, do que é a natureza humana e, de modo primal, sua vocação transcendente, perde-se também o reto conhecimento do direito, assim pareceu ao magistério de Pio XII, “le cose divine ed umane, che secondo la definizione di Ulpiano formano l’oggetto più generale della giurisprudenza, sono così intimamente congiunte, che non si possono ignorare le prime, senza perdere la esatta valutazione delle seconde”.

              Vários embates, no fim e ao cabo, parecem desiludir uma equivalência essencial entre os direitos humanos atuais e o direito natural clássico: os enfrentamentos do imanentismo ao transcendentalismo, do voluntarismo à prelação do intelecto, da autonomia ética à heteronomia, do subjetivismo ao realismo temperado. Uma personagem de Fiódor Dostoiévski, em Os demônios, Kírillov, resume, graficamente, esses embates: “É um absurdo alguém reconhecer que Deus não existe e no mesmo instante não reconhecer que é um Deus…”, e talvez, quanto à esfera do direito, seja possível, sobre a divergência entre fundamentos estritamente antropológicos e fundamentos teocêntricos e teotrópicos, reconstruir essa sentença de Kírillov: “É um absurdo alguém negar que Deus seja o fundamento último do direito e no mesmo instante não reconhecer que os direitos não sejam mais do que a liberdade humana ilimitada de quem possua a potestade de os impor ou exigir”.   

Combater a ditadura do relativismo e mostrar uma visão conservadora do Direito e de temas, ainda que indiretamente, a ele relacionados.