A mulher que fugiu de Sodoma

Certa manhã, um sol lusíada dourou a ilha da Madeira que balouçava no mar alto como tela num cavalete. Aquilo era uma estrofe verde de Camões ressoando no ar.

A citação acima foi tirada de um trecho do romance “A mulher que fugiu de Sodoma”, de José Geraldo Vieira. Mário, protagonista do romance, está passando pela ilha da Madeira enquanto se dirigia a Paris, onde tentaria reconstruir sua vida após destruí-la pelo vício do jogo. Como o leitor pode perceber, é uma passagem belíssima, própria de quem tem talento suficiente para uma literatura imorredoura. E, de fato, no romance, José Geraldo deixa claro que não é um escritor qualquer, produzindo alguns dos mais impressionantes trechos de literatura que eu já tive o prazer de ler, porém – talvez por ser das suas primeiras obras –, misturando-os com muitas passagens banais, e alguns até mesmo constrangedoras.

O romance se divide em três partes. Na primeira delas, somos apresentados aos dois personagens principais – o próprio Mário e Lúcia, sua esposa – e ao drama humano que vai perpassar a narrativa: a impossibilidade de que uma alma de grandeza ímpar – a de Lúcia – aceite conviver com uma que se corrompeu por um vício vil – a de Mário. Ela, como a família de Ló ao ser avisada pelos anjos, foge de seu antigo mundo com firme resolução sem cometer o erro pueril de olhar para trás.

Se o rompimento do casal é traumático e se a fuga de Lúcia é satisfatoriamente conduzida, a oscilação do texto, que ora atinge o sublime e ora flerta com o tolo, é desconcertante.

Dou dois exemplos.

Após a narrativa comovente da morte de um menino apelidado de “Segundo Clichê” – morte essa de suma importância dentro da trama – o narrador se perde num elogio fúnebre carregado de sentimentalismo simplesmente desnecessário, do qual cito apenas um pequeno trecho:

Pobre Segundo Clichê… Tu, que muita vez dormiste na soleira das casas comerciais do largo do Machado, tonto de sono e de fadiga, com os teus jornais esparramados pelo chão; tu, que, como quarto teu, tinhas apenas esse quarto onde tua mãe passava a ferro; tu que te sentias tão bem, depois do teu trabalho, deitado e estirado entre trastes, ferros de engomar, latas, bacias, caixas de papelão, sapatos velhos e roupas alheias — dormes, agora, sossegado sob essa colcha que cheira a poções e a óleo canforado.

Dificilmente poderia ser pior… Mesmo porque esse elogio fúnebre – algo entre o apelativo e o sociológico de beira de esquina – sequer tem razão de ser. Fosse ele eliminado, e nada da trama se perderia, pois, quando o menino morre, o leitor já sabe que era pobre, trabalhador, amado pela família e de responsabilidade rara para a idade que tinha. Todo o drama humano real e concreto de se perder uma criança sem a necessária assistência a que podia ter acesso tinha sido muito bem exposto ao leitor pela narrativa em si.

Outro exemplo se dá logo mais adiante, quando Mário, retornando para casa após uma noite de jogatinas fracassadas, depara-se com trabalhadores urbanos, essas “figuras híbridas, metade gigantes metade escravos, que, em grupo, consertam, na hora plácida das noites estivais, o asfalto das ruas e os trilhos da Light.” A descrição dessa casta de desgraçados, que já é das mais açucaradas para o meu gosto, torna-se logo intragável:

São descendentes e herdeiros dos escravos que levantaram as pirâmides, dos prisioneiros que remaram, algemados, nas galeras do Mar Interno, dos mercenários que represaram mares junto aos istmos históricos, dos párias que construíram os arcos do triunfo e os templos de altos frontões triangulares. São da tribo dos Êxodos modernos, desses que descongestionam as docas de Hamburgo e de Liverpool, que povoam como formigas os estaleiros navais, desses, que, como térmitas, existem em chusmas cegas nas usinas do Ruhr, nos altos fornos da Flandres, nas minas do País de Gales e nos eldorados irônicos do Transvaal.

Bem… Reconheço que a ideia básica por detrás dessas analogias é das mais interessantes: pinçar um elemento típico da vida carioca de seu tempo (no caso, dos trabalhadores braçais revolucionando a face da cidade a qualquer hora do dia e da noite) tendo como pano de fundo tanto a história universal quanto o cotidiano de outras grandes cidades da época. O ideal, porém, seria que tal comparação se desse de forma orgânica na boca de um personagem, ou mesmo na de muitos. A escolha de se fazê-la pela boca do narrador torna a passagem não apenas pedante, mas até mesmo forçada, fazendo com que leitor se sinta lendo um mais texto de sociologia do que um de literatura.

Mas, se, na primeira parte do romance, o texto é repleto dessas oscilações, na segunda, José Geraldo mostra verdadeiramente todo o seu talento.

Em Paris, Mario, com esperança de se reabilitar perante a esposa, muda de vida e retoma a rotina de um homem honrado e responsável. Com bastante maestria, o autor mostra, sem forçar a pena, a reconstrução da vida do protagonista, jogando as luzes necessárias tanto em seus esforços sinceros quanto nos pontos fracos que ele, contudo, vai deixando em aberto e por meio dos quais o antigo vício encontrará um caminho de volta ao interior de sua alma. Mário, aqui, é a verdadeira encarnação da mulher de Ló, que, percebendo a necessidade premente de abandonar seu mundo antigo para não ser consumida pelas chamas, resolve, contudo, olhar para trás. Esse pequeno apego mostra-se fatal, e o que poderia ser uma fuga bem sucedida para uma vida nova revela-se uma tragédia tão profunda quanto a que seria simplesmente se deixar ficar em Sodoma.

Através desses pontos fracos, Mario é aos poucos reintroduzido no mundo da jogatina e, como viciado em plena recaída, vai paulatinamente perdendo o controle de si mesmo, até lançar-se num abismo material e moral – vivendo momentos que chegam a ser desesperadores – pior do que aquele que levou ao fim de seu casamento. Vemos nele a concretização da passagem bíblica do demônio que, expulso de um indivíduo, ao retornar, encontrando a antiga casa arrumada, vai chamar outros sete demônios para novamente possuí-lo, tornando o estado final do homem pior do que o anterior.

Nessa segunda parte, os detalhes das descrições e a profundidade com que José Geraldo narra a decadência de Mário são dignos – e não estou exagerando! – de um romance de Dostoiévski. E isso já diz muito sobre a genialidade do autor.

Já na terceira parte, contudo, parece que o fôlego do autor acaba: depois de mergulhar, com detalhes exuberantes, o leitor no mundo de um viciado que se degrada, José Geraldo como que encerra a história com certa pressa. Quem conhece a Missa Solemnis, pro Die Acclamationis Johannis VI, de Neukomm, vai entender o que eu quero dizer. Ao se ouvir a composição, tem-se a impressão de que se poderia estar diante de uma obra-prima da música universal, mas que se estraga pela rapidez da parte final, que torna, com sua superficialidade, desarmonioso o conjunto. O encerramento do arco dramático de Lúcia chega a causar espécie: no último capítulo, ela vive, de forma abrupta uma nova fuga, agora, do lar de magnatas que a acolheram após separar-se de Mário.

Outra vez, estamos diante de uma mulher resoluta que, definitivamente, não olha para trás. Mas, ao contrário da primeira fuga, existe aqui uma mudança rápida e radical em seu espírito, como se Lúcia desse um salto de uma certeza – a de que vivia na casa de amigos nobres que a amavam – para a certeza oposta – a de que eles, ainda que a amassem, queriam usá-la de alguma forma – sem que a mudança estivesse justificada na trama. O movimento dela, prematuro, simplesmente não convence e deixa de fazer jus à grandeza da personagem.

No balanço geral, entre trechos geniais e tolos, entre cenas descritas com detalhes importantíssimos e outras que, sinceramente, parecem inflar a narrativa sem nenhuma razão verdadeiramente importante – como a longa descrição de uma corrida de cavalo vista pelos olhos de Nuno de Almada –, entre escolhas narrativas geniais e outras inverossímeis ao extremo, o livro é, ao meu ver, mais do que recomendável. Se o leitor souber perdoar a obra pelos seus pontos fracos, poderá aproveitar os pontos fortes, que são tão raros em nossa literatura, que talvez, exceção feita à obra de José Geraldo, não se encontrem em nenhum outro lugar.

As Consequências de Tudo

Em nossos dois primeiros artigos, exploramos um pouco dois conceitos estranhos que povoam o pensamento de Dworkin: o juiz Hércules e a interpretação criativa. Ou, se o leitor preferir: o logos do direito e o seu poder de fiat. Agora, queremos dar um passo adiante par fechar o raciocínio, explorando as consequências que advém de tais conceitos.

Na melhor tradição ocidental, a lei era vista como um ato da razão. O legislador, aplicando sua razão a situações reais, extraia uma norma que continha, em si, a justa solução para a generalidade dos casos. Porém, em se tratando de razão prática, quanto mais se desce do geral  para o particular, mais exceções se vão encontrando. Assim, o juiz, ao julgar, na maior parte das vezes, limita-se a aplicar a lei, mas, se o caso particular o justificar, pode excepcionar essa aplicação e dar a ele solução diversa, mas que realiza a mesma justiça que seria desejada pelo legislador caso tivesse previsto aquela situação singular.

No sistema de Dworkin, há uma mudança radical. A lei, de plano, torna-se apenas um elemento a ser levado em conta pelo julgador, devendo sempre ser contraposta com os princípios fundadores de uma determinada sociedade, com a jurisprudência e, a bem da verdade, com sua própria evolução histórica. Além disso, o entendimento do texto da lei é aberto, podendo o magistrado inserir nele significados que o legislador não previu ou não quis prever. E, a rigor, podendo mesmo inserir significados que o legislador expressamente quis evitar.

Dessa forma, a lei perde quase que totalmente seu caráter vinculante e, ao menos nos hard cases, transforma-se numa mera sugestão dada pelo legislador, uma dica, que o juiz pode ou não acatar. E se o juiz opta por aplicá-la, no fundo, ele o faz por estar convencido de que a norma prevista é, ao cabo de tudo, a solução mais coerente a ser dada ao caso concreto, e não porque esteja, efetivamente, obrigado a tanto. O legislador, assim perde sua importância na vida política da sociedade, sendo seu lugar ocupado pela magistratura.

Uma segunda consequência: se o juiz cria o direito a ser aplicado, e se, necessariamente, ele o faz ao julgar um caso concreto, então, nesse arranjo, o direito torna-se posterior ao fato. No fundo, em nossas relações jurídicas, jamais temos a certeza de estar agindo em conformidade com o direito ou contrariamente a ele, porque, a rigor, o direito que as vai reger ainda não existe. Passará a existir apenas quando Hércules se manifestar, o que nos joga a todos num mar de insegurança jurídica, coisa que, aliás, é perceptível mesmo aos brasileiros mais simples.

É verdade que, para nós, magistrados, a coisa toda é muito tentadora. Nossa importância, nessa visão de direito, cresce enormemente. O protagonismo passa a ser nosso. O problema é que a quebra do status vinculante da lei e a atomização dos atores com poder de criar o direito leva a uma situação quase de anomia e, portanto, de imprevisibilidade absoluta. E nenhuma sociedade pode sobreviver ao caos jurídico que daí decorre. Cedo ou tarde, virá alguma reação e ninguém pode prever a qual lugar exatamente o Poder Judiciário será relegado quando ela vier. O que hoje é atrativo, amanhã pode se revelar, para o próprio Poder Judiciário, simplesmente catastrófico .

Melhor, então, voltarmos à visão clássica. E, como mera ilustração, cito um trecho da Suma Teológica:

É melhor que todas as coisas se ordenem por lei do que deixar ao arbítrio dos juízes. E isso por três razões: Em primeiro lugar, porque é mais fácil achar poucos sábios, que bastem para estabelecer leis retas que muitos, que seriam requeridos para julgar retamente casa caso. Em segundo, porque aqueles que estabelecem as leis, já de muito tempo consideram o que deve ser estabelecido por leis, mas os juízos sob fatos singulares fazem-se a partir de casos subitamente aparecidos. Mais facilmente um homem pode ver o que é reto a partir da consideração de muitos casos do que a partir de um fato único. Em terceiro lugar, porque os legisladores julgam no universal e sobre coisas futuras, mas os homens que presidem aos julgamentos julgam sobre coisas presentes, em relação às quais são afetados por amor, por ódio ou por alguma cobiça, e assim, se deprava o julgamento.

Uma vez que a justiça viva do juiz não se encontra em muitos e é flexível, assim foi necessário que, em todos os casos em que era possível, a lei determinasse o que devia ser julgado, e deixasse pouquíssimas coisas ao arbítrio dos homens.[1]

Santo Tomás parece ter escrito esse texto para rebater as excentricidades de Dworkin… com setecentos anos de antecedência. O que é uma medida razoável para que tenhamos uma ideia da superioridade intelectual de um sobre o outro.


[1] Suma Teológica, I Secção da II Parte – questão 95, artigo segundi.

A Preferência Nacional

Josephine Baker

A guerra entre Rússia e Ucrânia acaba de completar dois meses. Ontem (24/04), houve eleições na França, cujo resultado impacta diretamente a política externa brasileira. Na China, novas medidas de lockdown assumem tons tão draconianos que, há alguns meses, seriam inimagináveis. A economia do mundo inteiro derrapa. No Brasil, já se vive o clima pré-eleitoral, há novas ameaças de choque entre instituições, a inflação ameaça disparar e o país é assolado por outro surto de dengue.

Apesar disso tudo, quem acessou os principais portais de notícias nos últimos dias foi brindado com fotografias e matérias sobre… o carnaval fora de época e o sucesso das rainhas de bateria! Não é surreal que, com tantas coisas de suma importância acontecendo nós, brasileiros, percamos tanto tempo e demos tanta importância a algo tão banal e tolo?

Esse deslocamento quase que absoluto entre a importância real dos acontecimentos e a forma pela qual nós os avaliamos parece ser uma tônica do comportamento do nosso povo. Há uma passagem deliciosa na saga O Tempo e o Vento que comprova esse fato com fina ironia.

O personagem principal do romance, o médico Rodrigo Cambará (não confundir com o famoso capitão Rodrigo, de quem ele é bisneto) recebe, em 1.925, uma carta de Terêncio Prates, amigo seu que vivia em Paris e que se mostra preocupadíssimo com os rumos que via o mundo tomar. “Estamos presenciando um cataclismo social em toda a Europa”, escreve em tom de desânimo. E segue: “É o caos. Não há mais fé, nem moral, nem Ética e nem mesmo estética.” Continua citando exemplos dessa decadência generalizada: “As mulheres perdem o pudor, cantam canções bandalhas, dançam danças lúbricas, desnudam-se em público, fumam, bebem, sim senhor, embriagam-se como homens”; “encontra-se em Paris (…) uma mulata norte-americana que se exibe num destes cabarés completamente nua, apenas com uma tanga de bananas[1]. Lamenta que os europeus, antes acostumados à grande música, agora ouviam “essa ‘coisa’ cacofônica, barulhenta e negroide que é ‘jazz band’”. Na literatura, as coisas também não iam bem: “O que se vê agora por aqui é uma literatura pseudo-moderna, que não consigo estimar nem ao menos entender”. Prenunciando acontecimentos que atingiriam seu ápice décadas depois, descreve que “a mocidade parece ter tomado o freio nos dentes e saído a apedrejar homens e instituições, a rasgar e a espezinhar as velhas bandeiras tradicionais, quebrar as vidraças das academias”.

E, por fim, arremata a carta com uma boa dose de acerto quanto às causas da crise: “E sabes a quem cabe, em boa parte, a culpa de tudo isso? A dois tipos de mentalidade que estão procurando impor-se no mundo. A da Rússia, com seu bolchevismo materialista e iconoclasta, e a dos Estados Unidos, com sua irreverência esportiva e sua arrogância de ‘noveau riche’”. E, com não menos acerto, aponta qual a saída para ela: “contra o ateísmo russo e o mercantilismo calvinista dos ianques terá de erguer-se a força moral e histórica da nossa Igreja”.

Pois bem.

O Dr. Rodrigo Cambará lê a carta para um círculo de amigos e, terminada a leitura, esperando ver quais seriam suas considerações diante de acontecimentos tão graves, ouve, de um deles (Neco Rosa) a seguinte pergunta: “Como é mesmo a história da mulata que dança pelada?

O mundo pegando fogo e o que interessou o sujeito foi apenas o detalhe da mulata dançando sem roupas. Quase um século se passou. Mas os portais de notícia dos últimos dias não deixam margens para dúvidas: a desproporção entre a importância real dos fatos e a tábua de preferência dos brasileiros continua rigorosamente a mesma.


[1] Trata-se de Josephine Baker que, tanto sucesso fez, foi sepultada no próprio Panteão de Paris.

Interpretação Criativa

Pai, foste cavaleiro. 

Hoje a vigília é nossa. 

Dá-nos o exemplo inteiro 

E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada, 

Novos infiéis vençam, 

A bênção como espada, 

A espada como benção!

(Fernando Pessoa).

§ 7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.

(Lei 11.101/06, artigo 6º, §7º-A).

O que o leitor pensaria se alguém lhe dissesse que os dois textos acima devem ser lidos ambos sob a mesma clave interpretativa? Julgaria a afirmação razoável? Pois um dos mais famosos juristas dos últimos tempos faz exatamente essa sugestão.

 Como dito em nosso último artigo, o juiz ideal para Ronald Dworkin, mais do que um super-herói, é um deus com um poder específico: o da interpretação criativa.

O jurista afirma que a interpretação “conversacional” costumeiramente utilizada pelos magistrados quando se debruçam sobre textos legais não é a mais indicada para a tarefa. E por quê? Bem, porque, numa interpretação conversacional, o que prepondera é o significado do texto que o emissor da mensagem (no caso: o legislador) quis passar. Em outras palavras, o intérprete se esforça por tentar entender quais as intenções do legislador ao firmar, por exemplo: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” Para o jurista americano, seria quase impossível entender-se exatamente o que está por trás de um texto tão “complexo”. De fato, ao falar de Hermes, o juiz que ainda tenta empregar essa interpretação tão obsoleta, ele afirma:

Já é muito difícil descobrir as intenções de amigos, colegas, inimigos e amantes. Como poderia ele sonhar em entender as intenções de estranhos que viveram no passado e que talvez já estejam todos mortos? E como poderia ele ter certeza de que, ao final das contas, há alguma intenção útil a ser descoberta?[1]

Em outras palavras, o fato de termos dificuldades em nos entendemos uns aos outros seria prova da inutilidade de se tentar entender a mensagem que o legislador quis nos passar ao redigir uma lei. A comunicação humana, segundo Dworkin, é quase impossível. É claro que os livros dele são exceção à regra e seus leitores podem efetivamente entender as ideias que visam transmitir. Os demais textos, contudo, devem todos ser lidos em clave diversa. 

E qual seria, então, essa clave? Simples: o operador do direito deve interpretar a lei como se interpreta um texto literário. Deve ler a Lei de Falências com a mesma abertura de alma com que lê Fernando Pessoa.

Ora, numa boa obra literária, o texto traz, em si, diversos significados com os quais o próprio autor quis enriquecê-lo. A pluralidade semântica é a marca da boa literatura. Mas o leitor, respeitando essa pluralidade – e esse é um ponto fundamental para Dworkin – pode encontrar no texto significados outros, que nem mesmo o autor imaginaria nele existirem. De forma que o leitor, explicitando esses novos significados, torna o texto mais profundo do que o autor jamais sonharia. Nessa interpretação, portanto, os significados pretendidos pelo autor e aqueles dados pelo leitor têm a mesma importância.

Seria brilhante, se não fossem dois problemas.

Em primeiro lugar, a intepretação criativa advogada por Dworkin se dá em dois momentos: no primeiro, o intérprete capta todos os significados desejados pelo autor do texto; no segundo, empresta ao texto significados novos de forma a enriquecê-lo. A compreensão do que autor do texto quer dizer é a condição prévia para a construção de novos significados. O primeiro passo da interpretação criativa, portanto, nada mais é do que uma interpretação conversacional, coisa que Dworkin reputava, no início de sua argumentação, como praticamente impossível.

Além disso, essa interpretação conversacional embutida na interpretação criativa traz uma dificuldade a mais quando comparada com aquela que é tradicionalmente usada por juízes. Isso porque, nessa última, pressupõe-se que o legislador quis dar um comando e que, portanto, por debaixo do texto, existe um único significado a ser descoberto. Já na interpretação criativa, buscam-se nela todos os significados possíveis por detrás da letra da lei, como se as palavras do legislador tivessem sido empregadas com a mesma abertura semântica desejada por Fernando Pessoa em seus poemas.

Com todo o respeito aos que apreciam a ideia, trata-se de uma tolice rematada montada sobre uma contradição evidente, Mas, por tola e contraditória que seja a ideia, ela serve, ao cabo de tudo, a um propósito: o de libertar o intérprete das amarras da letra da lei, dando-lhe poderes para construir, ele próprio, o direito a ser aplicado ao caso concreto.

Os resultados disso serão tratados em outro artigo.


[1] No original: It is hard enough to discover the intentions of friends and colleagues and adversaries and lovers. How can he hope to discover the intentions of strangers in the past, who may allbe dead? How can he be sure there were any helpful intentions to be discovered? (Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Belknap Harvard, p. 317)

Hércules, Herbert e Hermes

Um dos pontos mais interessantes da obra do conhecido jurista Ronald Dworkin é que ele criou, para melhor ilustrar e explicar suas teses, três personagens, todos juízes: Hércules, Herbert e Hermer. Cada um deles encarna um tipo diferente de magistrado, sendo desnecessário dizer-se que, para o autor, o tipo ideal está representado no primeiro. Vamos traçar as características gerais de cada um.

Comecemos por Herbert. Trata-se de um juiz comum, do tipo clássico. Daqueles que, ao julgar seus casos, acredita mesmo estar adstrito às normas existentes, agindo discricionariamente apenas na medida em que tais normas o permitem. Nos dizeres de Dworkin, ele adota uma teoria do exercício da magistratura segundo a qual os “juízes decidem os casos em duas etapas: primeiramente, encontram o limite exigido pelo direito posto e, então, exercem sua discricionariedade para legislar sobre questões que a lei não alcança[1].

E Hércules? A descrição dele dada por Dworkin é reveladora: “Inventei, para esses objetivos, um jurista de habilidade, erudição, paciência e perspicácia sobre-humanos, a quem chamarei de Hércules.”[2] É verdadeiramente um super-herói, com um superpoder especial: o da interpretação criativa.

A postura de Hércules diante de um caso a ser julgado é completamente diferente da do pobre Herbert. Ele não dá importância alguma a quaisquer limites prévios ao agir. Como diz Dworkin, Hércules “parte de seu próprio julgamento para determinar quais direitos legais as partes perante ele têm” sem se dobrar às convicções da população em geral e – suprema imparcialidade – sem nem mesmo permitir que as suas próprias interfiram em suas decisões.[3]

Em outras palavras, o que o direito é ou deixa de ser depende, exclusivamente, de como Hércules o entende. Ele é, em essência, a fonte do direito.

O nome desse personagem ímpar não foi escolhido ao acaso (Dworkin o afirma textualmente). As habilidades de Hércules, são, de fato, sobre-humanas. Ele, por exemplo, conhece todas as normas e toda a jurisprudência acumulada sobre cada uma delas. Ao julgar uma demanda, ele leva em conta a integralidade desse arcabouço. E, se o caso for difícil, usa de sua inteligência ilimitada para, levando em conta todas as normas e todas as decisões anteriores sobre casos semelhantes, decidir a questão, criando o direito a ser aplicado ao caso.

Herbert se submete ao direito; Hércules o cria. Seu único limite é ter que observar todas as normas e toda a jurisprudência já acumulada sobre a questão. É como um pedreiro que, ao colocar seu próprio tijolo na construção de um muro, sabe que está fazendo o muro crescer, mas respeita todos os tijolos que os demais pedreiros, vindos antes dele, também colocaram. Mas isso é fácil. Afinal, ao abordar os textos legais e jurisprudenciais que o “vinculam”, ele é livre para interpretá-los como quiser e adicionar significados àquilo que está escrito. Trata-se de uma “vinculação” bastante peculiar, portanto…

Uma vez que Hércules cria significado aos textos legais e jurisprudenciais, percebe-se que, mais do que um semi-deus grego, ele, na verdade, ocupa, na trama do direito, a mesma posição que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ocupa na fé cristã: ele é o Logos por meio do qual o direito se faz.

E Hermes? Bem, nos dizeres de Dworkin, esse é um juiz que tem as mesmas habilidades notáveis de Hércules, mas que ainda aceita a tese de que os textos legais e jurisprudenciais devem ser lidos buscando-se entender o que o legislador e os julgadores do passado efetivamente quiseram dizer. Hermes rejeita a interpretação criativa e, assim, rejeita a posição de Logos do sistema. Tinha tudo para ser como Hércules, mas, falhando em dar o passo final e se livrar de entraves linguísticos, acaba se limitando quase a um mero Herbert. Tem lá seus superpoderes, mas apresenta uma falha de… hermenêutica. Como o leitor vê, Dworkin sabe ser criativo.

É obvio que qualquer juiz, entre Herbert, Hermes e Hércules, preferiria ser como esse. O primeiro é um tolo; o segundo, um fraco; o terceiro, um deus.

Ser como Hércules é muito tentador. E, de fato, muitos, hoje, perfazem o papel do juiz dworkiniano (permitam-me esse neologismo) perfeito sem o saber. Mas a proliferação de deuses dentro do Poder Judiciário também tem o seu preço. Isso será, contudo, abordado num próximo texto.


[1] No original: “…judges decide cases in two steps: they find the limit of what the explicit law requires, and they then exercise an independent discretion to legislate on issues which the law does not reach.” (Dworkin, Ronald. Taking Laws Seriously – kindle version)

[2] No original: “I have invented, for this purpose, a lawyer of superhuman skill, learning, patience and acumen, whom I shall call Hercules.” (id.)

[3] No original: “He uses his own judgment to determine what legal rights the parties before him have, and when that judgment is made nothing remains to submit to either his own or the public’s convictions.” (id.).

Greta e os Transformadores do Mundo

Algumas pessoas me perguntam o que eu acho da figura de Greta Thunberg, a simpática sueca que deseja, humildemente, transformar o mundo. Por ter uma grande preguiça em responder a essa pergunta, achei por bem escrever o presente texto para livrar-me da tarefa de uma vez por todas.

Começo dizendo – por estranho que possa parecer – que não sei nada sobre veterinária. E sei menos ainda sobre técnicas cirúrgicas. Por isso, se algum de vocês, um dia, precisar de meus préstimos para fazer uma cirurgia de emergência naquele pet que tanto amam, aconselho que não insistam quando ouvirem, logo de cara, minha negativa e não queiram me convencer do contrário. Creiam: o animalzinho terá mais chances de seguir vivo deixado à própria sorte do que colocado em minhas mãos.

Isso é coisa que devia ser óbvia para todo mundo: quem se dispõe a realizar uma tarefa deve ter alguma qualificação para ela. Por mínima que seja. Do contrário, é melhor deixar as coisas caminharem por si só já que a interferência humana, nesses casos, costuma provocar catástrofes incomensuráveis.

E, se isso é verdade quanto a assuntos de menor importância (como a cirurgia no seu pet), quanto mais não o é no que tange a outras um bocadinho mais complexas, como, digamos, a tarefa de transformar o mundo. Então, a resposta básica a ser dada sobre a jovem Greta é, no fundo, uma pergunta: ela realmente entende o mundo que deseja transformar?

Já é conhecido do leitor desse blog[1] que uma das afirmações mais famosas de Marx foi a de que os filósofos, até o século XIX, tinham se limitado a interpretar o mundo, mas o que realmente importava era transformá-lo. A afirmação até que tem seu charme e capta a atenção (a Greta que o diga). Mas, pensando dois segundos nela, percebe-se que o que tem de charmosa tem igualmente de estapafúrdia. Tentar transformar o mundo sem antes conhecê-lo é como operar cirurgicamente um animalzinho sem saber nada de operações cirúrgicas… e nem de animaizinhos.

Qual o resultado dessa tolice? Penso que Chesterton já criou a melhor das analogias para exemplificar o que se espera num cenário como esse:

Suponhamos que surja em uma rua grande comoção a respeito de alguma coisa, digamos, um poste de iluminação a gás, que muitas pessoas influentes desejam derrubar. Um monge de batina cinza, que é o espírito da Idade Média, começa a fazer algumas considerações sobre o assunto, dizendo à maneira árida da Escolástica: “Consideremos primeiro, meus irmãos, o valor da luz. Se a luz for em si mesma boa…”. Nesta altura, o monge é, compreensivelmente, derrubado. Todo mundo corre para o poste e o põe abaixo em dez minutos, cumprimentando-se mutuamente pela praticidade nada medieval. Mas, com o passar do tempo, as coisas não funcionam tão facilmente. Alguns derrubaram o poste porque queriam a luz elétrica; outros, porque queriam o ferro do poste; alguns mais, porque queriam a escuridão, pois seus objetivos eram maus. Alguns se interessavam pouco pelo poste, outros, muito; alguns agiram porque queriam destruir os equipamentos municipais. Outros porque queriam destruir alguma coisa. Então, aos poucos e inevitavelmente, hoje, amanhã, ou depois de amanhã, voltam a perceber que o monge, afinal, estava certo, e que tudo depende de qual é a filosofia da luz. Mas o que poderíamos ter discutido sob a lâmpada a gás, agora devemos discutir no escuro.[2]

Acho que deu para entender…

Não me perguntem se Greta Thunberg percebe que sua geração e ela própria estão fazendo precisamente o que Marx exigiria que fizessem. Não há como eu possa saber. E, ainda que houvesse, eu também teria preguiça de pesquisar sobre esse ponto. Digo somente uma coisa: percebendo ela ou não, pouco importa. O que importa é que, querendo operar um animalzinho sem os conhecimentos mínimos, estão todos condenando o pobre coitado a uma morte dolorosa. Só que, no caso, a morte a dor serão suportadas não por um pet que, por simpático que seja, hoje é e amanhã deixa de ser. Antes, serão suportadas pelas futuras gerações de seres humanos, supondo, claro, que chegarão a existir. Pois sempre há o risco da humanidade não suportar o pós-cirúrgico…


[1] https://mmjusblog.wordpress.com/2019/09/23/marx-e-o-segredo-do-sucesso/

[2] G. K. Chesterton, Hereges, Ed. Ecclesiae, p. 35

A Alegria do Natal

É chegada a hora de dizermos a todos “Feliz Natal” e quantos de nós já não recebemos esse tipo de mensagem em antigos cartões de natal e mais atualmente em mensagens de whatsapp em tantos grupos de que participamos. Um Feliz Natal!

Por quê? Por que desejamos às pessoas um feliz natal?

Por que a felicidade e a alegria estão tão próximas do Natal a ponto de desejarmos um feliz natal às vezes a pessoas que mal conhecemos?

E aqui vai um pouco de história, mas com pingos de curiosidade.

O primeiro cartão de natal enviado na história não foi um cartão entregue pelo correio. Não! O primeiro cartão de natal enviado na história foi um cartão enviado pelo próprio Deus por meio de seus anjos.

Naquela noite santa, os pastores nos arredores de Belém receberam uma notícia. Um anjo apareceu a eles. E quando aparece um anjo qual é a reação do ser humano ao ver um anjo? Alegria? Felicidade? Não, nada disso!!!

Em todas as passagens bíblicas em que há a notícia de aparição de anjos, existe a ideia de pavor, de temor. Por exemplo, quando do anúncio da gravidez de Santa Isabel, apareceu-lhe então um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do perfume. Vendo-o, Zacarias ficou perturbado, e o temor assaltou-o.

Assim, não foi diferente quando do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois havia nos arredores uns pastores, que vigiavam e guardavam o seu rebanho nos campos durante as vigílias da noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu ao redor deles, e tiveram grande temor (Lc 2, 8-9).

Mas o anjo disse: não temais !

E por que não é de se temer?

O anjo disse: “Eis que eu vos anuncio uma boa nova que será ALEGRIA para todo o povo”. A palavra que consta do original grego é “εὐαγγελίζομαι”, que traz em si o significado de anunciar algo de bom.[1] O latim é tão importante que nem ousou traduzir: “ECCE ENIM EVANGELIZO VOBIS GAUDIM MAGNUM”.

Perceberam de onde vem a mensagem de alegria no natal?

A alegria do natal advém do anúncio do nascimento de Jesus no meio de nós.

Nada é à toa. A boa notícia é essa e é ela que traz alegria a todos: nasceu para nós todos um Salvador, que é Cristo Senhor. Nossa grande alegria.

No Evangelho de Mateus (2,9b-12) sobre a alegria lemos: “E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino. Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma grande alegria. Quando entraram na casa, viram o Menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram…”

Tenhamos, pois, presentes que neste natal, e em tantos outros que celebraremos em nossas vidas, festejaremos o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo no meio de nós. Não é aniversário. É o mistério da encarnação.

E por que Cristo veio para nós?

Para que soubéssemos o quanto Deus ama os homens e para que, ao sabê-lo, ardêssemos no amor daquele que nos amou primeiro e para que amássemos o próximo, por ordem e exemplo daquele que se fez próximo por amar quem não estava próximo, mas vagava ao longe.

Jesus Cristo, Deus e Homem, é a demonstração do amor divino por nós. Um exemplo para nós da humildade humana.

Pela encarnação, Deus penetra a realidade total da existência humana de sua concepção e nascimento até a morte, como um ser humano qualquer. Jesus aniquila-se em sua divindade, fazendo-se pobre e necessitado da atenção e do carinho humano. Ele não nasceu em berço esplêndido ou num palácio. Ele nasceu na pior das circunstâncias: numa estrebaria, ao lado de animais e numa das épocas mais frias do ano em Belém. Mas Deus quis assim “E o Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós”.

Não é a alegria da troca de presentes, das músicas, das luzes, do panetone ou de um Papai Noel, que nem existe. É Jesus, verdadeira e profunda alegria e que nenhum acontecimento nem ninguém pode nos tirar.

É a alegria da eternidade que entra no tempo, pois esse é o momento que a eternidade entra no tempo. Deus se encarna no corpo de uma pessoa humana.

Alegremo-nos, pois no Senhor e Nele exultemos e louvemo-lO não apenas com os lábios, mas com nossos corações! Sursum corda! Verbum caro factum est!!!

Feliz Natal !!!


[1] A raiz desse verbo é a mesma que, em português, gerou a palavra “Evangelho”.

Direitos humanos e direito natural

Palestra proferida para o IEP-Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa, em 11 de novembro de 2021.

Por Ricardo Henry Marques Dip

Não é infrequente deparar-nos em nossos tempos com algum uso intercambiável −ou, quando não, ao menos muito acercado− dos termos direitos naturais e direitos humanos, a cuja aproximação, além disso, concorre o termo direitos fundamentais. Alguns concebem os direitos fundamentais sob o modo de uma realização histórica dos direitos naturais; outros referem-se às perspectivas iusnaturalistas dos direitos humanos; há quem entenda que a expressão mesma direitos humanos é apenas um modismo contemporâneo, porque seria ela um sinônimo do termo direitos naturais; há ainda quem seja proclive a suprimir a referência aos direitos naturais, inclinando-se simpliciter a substituí-la pelo termo direitos humanos; ou, encerrando essas indicações recrutadas a título meramente ilustrativo, há como que um positivismo iusnaturalista −ou seja, um positivismo de direitos naturais, reduzidos a serem só possivelmente os direitos fundamentais expressos nos ordenamentos particulares. Tenha-se ainda em conta que, desde a segunda metade do século XX, uma parte considerável do pensamento católico −não só o dos leigos, mas também o de uma parcela não negligenciável de integrantes da hierarquia eclesial− inclinou-se à defesa e à promoção dos direitos humanos, fenômeno que José Miguel Gambra designou como o batismo desses direitos; muito longe está-se, pois, da condenação que o Papa Pio VI, na Encíclica Adeo nota (23-4-1791), infligira aos direitos humanos da Declaração francesa de 1789 por serem “diciassette articoli (…) contrari alla religione e alla società”, e às sucessivas impugnações pontificais desde a Quanta cura e do Syllabus de Pio IX, passando pelas acusações de Leão XIII à civilização moderna, pela doutrina contramodernista do Papa S.Pio X −assinaladamente na Encíclica Pascendi e ao condenar o movimento do Sillon−,  até chegar, em meados do século XX,  às reiterações críticas do Papa Pio XII, tal esta passagem, a título ilustrativo, da Alocução destinada aos juristas italianos, em 6 de novembro de 1949: “L’errore del razionalismo moderno è consistito appunto nella pretesa di voler costruire il sistema dei diritti umani e la teoria generale del diritto, considerando la natura dell’uomo come un ente per sè stante, al quale manchi qualsiasi necessario riferimento ad un Essere superiore, dalla cui volontà creatrice e ordinatrice dipende nell’essenza e nell’azione”.

              Vem a propósito do tema a distinção desfiada por Antonio Perez Luño, que, sem desconhecer o usus loquendi −que leva a uma sinonímia prática destes termos direitos humanos, direitos fundamentais e direitos naturais−, chega, no entanto, a uma proclividade doutrinal e normativa em corresponder o termo direitos fundamentais para denominar os direitos naturais positivados no âmbito interno dos vários estados, ao passo em que o nome direitos humanos seria mais usual para os direitos naturais positivados nas declarações e convenções internacionais. Essa referência de Perez Luño sugere reconhecerem-se os direitos naturais como conteúdo quer dos direitos fundamentais, quer dos direitos humanos; e em dada medida isto não consona com a realidade, porque fosse esse conteúdo nota absoluta para essas distinções terminológicas, já não se saberia por quais motivos, aqui num único exemplo, o direito de antena, previsto na legislação constitucional portuguesa, pôde já estimar-se fundamental.

          Sem embargo de uma sobreposição factual frequente de hipóteses de direitos que a um só tempo se considerem naturais, humanos e fundamentais, não parece possa afirmar-se sua equivalência essencial. Essa impossibilidade pode escancarar-se num exemplo gráfico, quando se tenha em conta que, à altura da Declaração universal dos direitos humanos, pela Organização das Nações Unidas, em 1948, a inviolabilidade da vida humana era tida por direito inalienável do homem, ao passo em que agora, no espectro dos chamados direitos humanos reprodutivos, incluem alguns um suposto direito humano ao aborto, pondo em manifesto xeque a identificação absoluta dos direitos humanos com os direitos naturais.  Se percorrermos, além disso, algumas indicações da série que, de direitos humanos fundamentalizados em diferentes países, recolheu o pensador argentino Juan Fernando Segovia, vamos encontrar desde o direito à prática esportiva, à ginástica e à atividade física (em Cuba, Gana, Nicarágua, Portugal, Suíça, Turquia e Uganda) até os direitos específicos dos artistas (no Panamá, na Turquia); do direito dos inquilinos contra alugueres abusivos (na Polônia e na Suíça) ao direito dos concubinos em equiparar-se às famílias legalmente constituídas (em Angola, no Equador, na Guatemala, em Nicarágua, no Paraguai); dos direitos dos cientistas (na Hungria), aos quais se outorga exclusividade para decidir em questões de verdades das ciências, ao direito do ócio (na Espanha, na Holanda, no Peru); do direito ao regozijo cultural e social (na Bélgica) ao direito contra a fome (na Nicarágua); do direito de acesso à informação eletrônica (na Grécia) ao direito de acesso às bibliotecas (na Libéria), etc.

          Dostoievski, nas páginas de Os demônios, profetizara de algum modo a trivialização dos direitos humanos, ao dizer que seu mínimo era o de possuir um guarda-chuva. Não se recuse, é verdade, que do fenômeno atual dessa banalização provenha a vantagem de ter contribuído a uma dada consciência popularizada acerca do direito −ou, sobretudo e mais exatamente, dos direitos (subjetivos)− e até ao de sua elevação a um plano de supralegalidade. Todavia, os tributos que se pagam por essa estendida popularidade são o da avulsão de muitos novos direitos humanos e o da cada vez mais notória erosão de seu consenso de base.

          Pode pensar-se, em abono dessa eclosão de novos direitos humanos, que seu florescimento depois da Segunda Guerra Mundial correspondeu a uma reação iusnaturalista aos crimes de Estado perpetrados sobretudo −mas não só− pela Alemanha nazista, e decerto não faltarão bons motivos para diagnosticar alguns signos do antigo direito natural genuinamente cristão nesta retomada contemporânea da ideia de substantividade universal do direito.  Calha, entretanto, que esses signos de enraizamento dos direitos humanos à concepção (que pode dizer-se) clássica do direito natural merecem uma prudente aproximação distintiva, porque, se bem seja fato que o rol dos direitos catalogados, por exemplo, em 1948, na Declaração universal da Organização das Nações Unidas, não conflite com as noções próprias do iusnaturalismo tradicional, essa conformidade expressiva emergiu no plano de um consenso meramente prático, assim o admitiu Jacques Maritain, afirmando que esse concerto sobre os direitos humanos apenas se concluíra com a condição de que ninguém perguntasse sobre seu por quê. Era, pois, de todo adivinhável que, mais cedo ou mais tarde, símile consenso não fundacional levasse paulatinamente a resultados dissonantes entre si. Bastaria percorrer os nomes da comissão de expertos que a Unesco recrutou para elaborar o catálogo de direitos humanos da ONU, e, prontamente, ver-se-ia por notório que seu consenso se apoiava em um ecleticismo fundacional, com a consequente prognose muito reservada quanto a seu êxito, Com efeito, a consideração de que a ideologia dos direitos humanos os converteu numa espécie de leito de Procusto (na metáfora de Contreras e Poole) parece dar bastante razão aos que desfiam crítica a Bobbio e Maritain por entenderem ser apenas de praticarem-se os direitos humanos, sem que importe justificá-los (assim, Danilo Castellano).

          Não é já exagero falar em diáspora fundacional dos direitos humanos e até cabe entender, posta essa pluralidade de seus alicerces teóricos, o motivo pela qual esses direitos terminariam, como terminaram, por fundamentalizar-se, especialmente na esfera constitucional, suprindo a intensa labilidade de suas raízes movediças e, em muitos aspectos, contraditórias entre si. Ou seja, a multiplicidade (tantas vezes) conflitiva de fundamentos acarretou o aperturismo conceitual dos direitos humanos atuais, e sua livre determinação objetiva  fomentou a busca de alguma sorte de fonte, ainda que meramente manifestativa, como se dá com sua positivação particular nas constituições dos estados. Se essa fundamentalização, todavia e por mais que em não poucas vezes afeiçoada a proclamações de sua aceitação mundial, pôde exprimir, per accidens, alguns direitos efetivamente universais, o fato é que, hoje, o mundo convive com uma nacionalização dos direitos humanos, que não parece ter mais limites para conterem-se do que a só imaginação criativa de quem tenha poderes para impô-los ou reclamá-los como exercício irrestrito da autonomia individual, é dizer, da liberdade negativa.

          Seria injusto, é verdade, recusar algum mérito no projeto de restaurar uma ética para instruir e animar um direito que, sob a pauta ideológica do normativismo da primeira metade do século XX, clausulara-se aos valores, e deve louvar-se a superação teórica da ideia −como a referiu Radbruch− de que “ordens são ordens”, de que “a lei é a lei”, pois essa concepção de que a lei valia por ser lei “foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as normas mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas”. Bem por isso, ao chegar a seu quinto minuto de filosofia pós-guerra, Radbruch advertia que “há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo”. 

          Sem deixar, pois, de admitir o bem que havia na reação antinormativista dos meados do século XX ao buscar incluir no gênero normativo a classe dos princípios, normas finalísticas, destinadas ao melhor dos mundos possíveis, o fato é que essa busca ficou a meio caminho: sua visão de uma ordem jurídica universal contentava-se com uma visão racionalista do direito natural, cujos supostos exatamente reincidiam num positivismo substituinte do anterior. Talvez seja de fato possível diagnosticar uma síndrome que parece acometer parcela considerável dos juristas, nisto que incapazes de perceber o direito à margem das letrinhas dos diários das leis, e isso poderá explicar o motivo de a proclividade especulativa refratária ao normativismo kelseniano se ter acomodado à ideia de princípios transpositivos, é dizer, de algum modo indeterminados, mas postos o mais possível a salvo de intervenções ablatórias: daí a atribuição de força normativa às constituições, imputando-se ao novo direito constitucional o papel que o iusnaturalismo dito clássico reservara ao direito natural.  Enfim, os velhos segmentos do direito subconstitucional não somente passaram a subordinar-se às constituições, senão que, gradativamente, inclinaram-se a sujeitar-se a ela mais e mais, na medida em que elas paulatinamente se tornaram extensas e difusas, subtraindo espaços normativos que antes eram próprios das órbitas infraconstitucionais.

          Essa constitucionalização ou fundamentalização de princípios, por mais tentasse resguardá-los contra interferências supressivas no plano legislativo, perseverou sob o domínio da livre determinação de conteúdo dos direitos humanos, o que passou a sugerir procedimentos de substantivação por um órgão jurisdicional que completasse as normas abertas e garantisse, assim, esses direitos humanos até mais além dos propriamente tornados fundamentais. Esse órgão judicial, em palavras de Cristina Queiroz, operará ao modo de um “substituto funcional da Revolução”, transmudando, de fato, a supremacia legicêntrica  em uma supremacia judicial, escorada nas sentenças dos tribunais.

          Assim essa tendência de fundamentalização dos direitos humanos −ou seja, sua constitucionalização em um grau de superioridade formal no ordenamento jurídico−,  ao desviar-se pela trilha da codeterminação judiciária tinha de redundar logicamente no numerus apertus dos direitos humanos, de modo que não apenas as constituições estariam aptas a, formalmente, recepcionar novos direitos fundamentais −que não cessam de ter novas gerações ou dimensões−,  senão que, além disso, haveria, como já há, o reconhecimento de direitos fundamentais não constitucionalizados. Se, de uma parte, pode pensar-se em que o novo constitucionalismo corresponderia a uma forma histórica de ressurgimento do direito natural, por meio da positivação de princípios referíveis à dignidade da pessoa humana, cabe, de outra parte, considerar se a reserva estatal de determinação e sobredeterminação das normas não levaria apenas, na expressão de Robert Dahl, a um “novo normativismo”, a um normativismo de sistema aberto, no qual as normas são ora mandatos precisos e claros −equivale a dizer, são regras−, ora, diversamente, mandatos incompletos, princípios; mas sempre normas. Ou seja, tem de perguntar-se se o novo direito natural, com sua roupagem de direitos humanos, não é já somente uma espécie de positivismo, o positivismo (agora, sobretudo) judicial, em que o direito se ostenta como um grande código revestido por togas.

              Não parece, entretanto, que se possa resolver o tema dos direitos humanos com um simples acordo em torno de conveniências práticas ou mediante sua positivação em leis humanas ou por via judicial. É que, com rigor, os direitos humanos devem fundar-se, de algum modo, objetivamente, na natureza humana, e isto demanda um acercamento metafísico e não um consenso ou uma imperação de vontades ocasionais, porque a falta de ancoragem numa base objetiva universal leva, com maior ou menor rapidez, à anarquia ou ao absolutismo.

              E assim parece bem que, em relação ao direito natural clássico, distingam-se os atuais direitos humanos menos por alguma consonância ocasional de sua listagem com as res iustæ da ética iusnaturalista, mas por meio de uma resposta fundacional ao problema antropológico: quæ sit hominis natura, para aqui repetir a interrogação de Cicero em De finibus bonorum et malorum. Em outras palavras, o que decidiria sobre a caracterização dos direitos humanos estaria posto na definição do homem: “la natura o l’essenza del diritto [disse o Papa Pio XII] non può essere derivata se non dalla natura stessa dell’uomo”.  Se essa definição do homem é a de um ente apenas material e com vontade autônoma, tem-se aí a consequente configuração dos direitos humanos ao modo imanentista e voluntarista −o que se acomoda à predominante expressão contemporânea desses direitos; se, diversamente, definir-se o homem como pessoa dotada de corpo e alma espiritual, entendendo-se a espiritualidade da alma não somente como uma faculdade racional, mas também como um sujeito que é imagem e semelhança de Deus, os direitos correspondentes apresentam-se como oriundos de um princípio transcendente.

              Decerto, entretanto, não bastaria uma referência nominal à natureza humana −em que se assentam a doutrina do direito natural clássico, mas, não diversamente, ideologias de variado espectro e até opostas entre si, como as de Locke, Hobbes e Rousseau. Tem nisto muita razão Juan Fernando Segovia, ao dizer que, nos tempos pós-modernos, “el genio inventivo sigue alimentando nuevos derechos para un ser humano que no ha terminado aún de moldearse a sí mismo”. A solução real do problema parece estar, designadamente, em decidir ou pela imanência ou pela transcendência da natureza humana.

              O  confronto entre esses modelos pode estampar-se nas figuras respectivas do homo imago hominis e do homo imago Dei, com suas consequentes antropologias. É porque, no homem que se entroniza como seu próprio e bastante modelo, ao perder-se o reto conhecimento do que é o homem, do que é a natureza humana e, de modo primal, sua vocação transcendente, perde-se também o reto conhecimento do direito, assim pareceu ao magistério de Pio XII, “le cose divine ed umane, che secondo la definizione di Ulpiano formano l’oggetto più generale della giurisprudenza, sono così intimamente congiunte, che non si possono ignorare le prime, senza perdere la esatta valutazione delle seconde”.

              Vários embates, no fim e ao cabo, parecem desiludir uma equivalência essencial entre os direitos humanos atuais e o direito natural clássico: os enfrentamentos do imanentismo ao transcendentalismo, do voluntarismo à prelação do intelecto, da autonomia ética à heteronomia, do subjetivismo ao realismo temperado. Uma personagem de Fiódor Dostoiévski, em Os demônios, Kírillov, resume, graficamente, esses embates: “É um absurdo alguém reconhecer que Deus não existe e no mesmo instante não reconhecer que é um Deus…”, e talvez, quanto à esfera do direito, seja possível, sobre a divergência entre fundamentos estritamente antropológicos e fundamentos teocêntricos e teotrópicos, reconstruir essa sentença de Kírillov: “É um absurdo alguém negar que Deus seja o fundamento último do direito e no mesmo instante não reconhecer que os direitos não sejam mais do que a liberdade humana ilimitada de quem possua a potestade de os impor ou exigir”.   

DISCURSO DE SUA SANTIDADE PAPA PIO XII AOS PARTICIPANTES DA VI CONVENÇÃO NACIONAL DE ESTUDO DA UNIÃO DOS JURISTAS CATÓLICOS ITALIANOS* (SOBRE A CULPA E A PENA).

Discurso de Sua Santidade PAPA PIO XII
AOS PARTICIPANTES DA VI CONVENÇÃO NACIONAL 
DE ESTUDO DA UNIÃO DOS JURISTAS CATÓLICOS ITALIANOS*

Acolhei, ilustres Senhores, a Nossa saudação de boas-vindas. Dirigimo-nos a vossa digna Assembleia com os mesmos sentimentos de alegria e confiança com os quais vos recebemos no ano passado. A questão que hoje tomamos em exame foi-Nos relatada por um dos vossos, o insigne Professor Carnelutti. É a função da pena, o redimir o culpado mediante a penitência; questão que Nós gostaríamos de formular assim: a culpa e a pena na sua mútua conexão. Gostaríamos, desse modo, de traçar genericamente o caminho do homem desde o estado de não culpabilidade, através do fato da culpa, até o estado de culpa e de pena (reatus culpae et poenae[1]); e vice-versa, o retorno deste estado -por meio do arrependimento e da expiação- àquele de libertação da culpa e da pena. Nós poderemos então ver mais claramente qual é a origem da pena, qual é a sua essência, qual é a função, qual forma essa deve tomar para conduzir o culpado à sua libertação.

  1. – O CAMINHO PARA A CULPA E PARA A PENA

Ocorre aqui fazer duas advertências.

Antes de tudo, o problema da culpa e da pena é um problema de pessoa, e isso em um dúplice aspecto. O caminho para a culpa inicia-se pela pessoa do sujeito ativo, pelo seu “Eu”. Na soma dos atos, que provêm da pessoa como centro de ação, devem-se considerar aqui apenas aqueles que se baseiam em uma determinação consciente e voluntária; atos, a saber, que o Eu podia realizar ou não realizar, que realiza porque ele próprio livremente o deliberou. Esta função central do Eu para si mesmo – ainda que operante sob influências de naturezas diversas – é um elemento necessário, se se quer falar de verdadeira culpa e de verdadeira pena.

O fato culpável é, porém, sempre também uma posição de pessoa contra pessoa, tanto se o objeto imediato da culpa é uma coisa, como no furto, quanto se é uma pessoa, como no homicídio: além disso, o Eu da pessoa, que se torna culpável, dirige-se contra a Autoridade superior, portanto, em conclusão, sempre contra a autoridade de Deus. Em que Nós, que temos em vista o genuíno problema da culpa e da pena propriamente ditas, prescindimos da culpa meramente jurídica e da sua consequente penalidade.

É, pois, de se observar que a pessoa e a função pessoal do culpado formam uma estreita unidade, a qual, por sua vez, apresenta diferentes aspectos. Refere-se, ao mesmo tempo, aos campos psicológico, jurídico, ético e religioso. Estes aspectos se podem, contudo, considerar-se também separadamente; mas, na realidade, culpa e pena estão entre si tão conectadas que apenas no seu complexo é possível formar-se um conceito justo sobre o culpado e sobre a questão da culpa e da pena. Não se pode, portanto, sequer tratar este problema unilateralmente, apenas sob o aspecto jurídico.

O caminho para a culpa é, portanto, este: o espírito do homem se encontra na seguinte posição: diante de um fazer ou de um omitir, que a ele se apresenta como simplesmente obrigatório, como um absoluto “tu deves”, uma exigência incondicionada de agir com pessoal determinação. A esta exigência o homem recusa-se a obedecer: rejeita o bem, adota o mal. À interna resolução, quando essa não se exaure em si mesma, segue-se a ação externa. Dessa forma, o ato culpável é realizado em seus elementos interno e externo.

Natureza e vários aspectos do ato culpável

No que se refere ao lado subjetivo da culpa, para um reto juízo, deve-se considerar não somente o fato exterior, mas também as influências, provenientes do interior e do exterior, que cooperaram para a resolução do culpado, como: disposições inatas ou adquiridas, impulsos ou impedimentos, marcas da educação, irradiações das pessoas e das coisas em meio às quais vive, fatores circunstanciais, e, de modo particular, a intensidade habitual e atual do querer, a assim chamada “energia criminal”, que contribuiu à execução do fato culpável.  

Considerado em seu fim, o fato culpável é um arrogante desprezo da Autoridade, que ordena a manutenção da ordem daquilo que é justo e bom, e que é a fonte, a guardiã, a tutora e a vingadora da ordem mesma. E uma vez que toda Autoridade humana não pode senão de Deus derivar, todo fato culpável é uma oposição contra Deus mesmo, contra o seu supremo direito e contra a sua suma majestade. Este aspecto religioso está imanente e essencialmente conjugado com o fato culpável.

Fim deste fato é também a comunidade de direito público, se e enquanto ele coloca em perigo e viola a ordem estabelecida pelas leis. Todavia, nem todo verdadeiro ato culpável, como foi supra descrito, tem o caráter de culpa de direito público. O poder público deve ocupar-se apenas daquelas ações culpáveis que ofendem a regular convivência na ordem fixada pelas leis. Daqui a regra acerca da culpa jurídica: Nulla culpa sine lege[2]Mas uma tal violação, se é de fato em si mesma um verdadeiro ato culpável, é sempre também uma violação da norma ética e religiosa. A partir disso, segue-se que aquelas leis humanas, as quais se encontrem em contradição com as leis divinas, não podem formar a base para um verdadeiro fato culpável de direito público.

Ao conceito de fato culpável liga-se um outro: de que o seu autor torna-se merecedor de pena (reatus poenae[3]). O problema da pena, pois, tem assim princípio em cada caso, no momento em que o homem torna-se culpado. A pena é a reação, requerida pelo direito e pela justiça, à culpa: são como golpe e contragolpe. A ordem violada pelo ato culpável exige reintegração e restabelecimento do equilíbrio turbado. É função própria do direito e da justiça a de guardar e preservar a correspondência entre o dever, de uma parte, e o direito, de outra, e de restabelecê-la, se lesada for. A pena não toca por si o fato culpável, mas o seu autor, a sua pessoa, o seu Eu, que, com consciente determinação, realizou a ação culpável. Do mesmo modo, a punição não vem como que por um abstrato ordenamento jurídico, mas pela pessoa concreta investida da legítima Autoridade. Como a ação culpável, assim também a punição coloca frente a frente pessoa a pessoa.

Sentido e finalidade da pena

A pena propriamente dita não pode, portanto, ter outro sentido e finalidade senão aquele há pouco enunciado: o de reconduzir novamente na ordem do dever o violador do direito, que a havia deixado. Esta ordem do dever é necessariamente uma expressão da ordem do ser, da ordem do verdadeiro e do bom, única a ter o direito de existência, em oposição ao erro e ao mal, que representam aquilo que deve não ser.  A pena cumpre o seu ofício ao seu modo, enquanto obriga o culpado, em razão do ato realizado, a um sofrimento, isto é, à privação de um bem e à imposição de um mal. Porém, para que este sofrimento seja uma pena, é essencial sua conexão causal com a culpa.

  1. – O ESTADO DE CULPA E DE PENA

Acrescentamos que o culpado criou com o seu ato um estado que por si não cessa com o cessar do fato mesmo. Ele permanece alguém que violou consciente e voluntariamente uma norma obrigatória (reatus culpae[4]) e com isso incorreu na pena (reatus poenae[5]). Este estado pessoal perdura, também na sua posição frente à Autoridade da qual ele depende, ou seja, à Autoridade humana de direito público, porquanto esta tem parte no correspondente processo penal, e, além disso, e sempre, frente à suprema Autoridade divina. Forma-se assim um durável estado de culpa e de pena, que indica uma particular condição do culpado diante da Autoridade ofendida e desta para o culpado (cf. S. Tom. S. Th. 3 p. q. 69 a. 2 obj. 3 et ad 3).

Tentou-se, partindo do conceito de que tempo e espaço, formalmente enquanto tais, não sejam simplesmente realidades, mas instrumentos e formas do pensamento, extrair-se a conclusão de que depois da cessação do fato culpável e da pena mesma não se possa mais falar de uma sua qualquer permanência na realidade, na ordem real, e, portanto, de um estado de culpa e de pena. Se assim fosse, dever-se-ia renunciar ao princípio: «Quod factum est infectum fieri nequit»[6]. Aplicado a um fato espiritual – e tal é em si mesmo o ato culpável -, aquele princípio se basearia – assim se afirma – sobre uma falsa avaliação e sobre um errado uso do conceito de «tempo» – Ultrapassaríamos os limites deste Nosso discurso se aqui quiséssemos tratar a questão do espaço e do tempo. Bastará notar que o espaço e o tempo são não uma simples forma do pensamento, mas têm um fundamento na realidade. De todo modo, a consequência que se quer extrair contra a existência de um estado de culpa, não vale. Sem dúvida, a queda do homem na culpa ocorre sobre esta terra em um determinado lugar e em um determinado tempo, mas essa não é uma qualidade daquele lugar e daquele tempo, e, pois, a sua cessação não está ligada à cessação de um «aqui» e de um «agora».

Tudo o que expusemos refere-se à essência do estado de culpa e de pena. Por outro lado, no que diz respeito à Autoridade superior, à qual o culpado negou a devida subordinação e obediência, sua indignação e desaprovação se dirigem não apenas contra o fato, mas contra o próprio autor, contra a sua pessoa por causa de seu ato.

Ao ato da culpa junta-se imediatamente, como já se acenou, não a pena mesma, mas a culpabilidade e a punibilidade do próprio ato.  Não obstante a isso, não está excluída uma pena, na qual se incorra, em virtude de uma lei, automaticamente, no momento do ato culpável. No direito canônico se conhecem as poenae latae sententiae ipso facto commissi delicti incurrendae[7]No direito civil uma tal pena é rara, e mesmo desconhecida em alguns ordenamentos. Sempre, pois, este automático incorrer na pena supõe uma verdadeira e grave culpa.

Os pressupostos de toda sentença penal

Em regra, portanto, a pena é infligida pela Autoridade competente. Isso pressupõe: uma lei penal vigente; uma legítima investidura da autoridade penal, e nela o seguro conhecimento do ato por punir, tanto pelo lado objetivo, vale dizer, na realização do delito tipificado pela lei, quanto pelo lado subjetivo, vale dizer, pelo que se refira à culpabilidade do réu, à sua gravidade e extensão.

Este conhecimento necessário para emanar uma sentença penal é, ante ao tribunal de Deus, Juiz Supremo, perfeitamente claro e infalível, e havê-lo indicado não pode ser sem interesse para o jurista. Deus estava presente ao homem na resolução interna e na realização externa do fato culpável, a tudo plenamente penetrando, com o seu olhar, até aos últimos pormenores; tudo está diante dEle, agora como no momento da ação. Mas este conhecimento – em absoluta plenitude e em soberana segurança, em cada instante da vida e sobre cada ação humana – é próprio apenas de Deus. Por isso, cabe unicamente a Deus o último juízo sobre o valor de um homem e a decisão sobre a sua sorte definitiva. Ele pronuncia este juízo da forma em que encontra o homem no momento no qual o chama à eternidade. Todavia, há um juízo infalível de Deus também durante a vida terrena, e não apenas sobre todo o conjunto, mas ainda sobre cada ato singular culpável e cada pena correspondente; pois, de fato, em não poucos casos, Ele a executa já durante a vida do homem, não obstante a sempre pronta disposição divina à remissão e ao perdão.

A certeza moral nos juízos humanos

O juiz humano o qual -diversamente- não tem a onipresença e a onisciência de Deus, tem o dever de formar, antes de proferir a sentença judicial, uma certeza moral, é dizer, que exclua toda dúvida razoável e séria acerca do fato exterior e da culpabilidade interna. Ora, o juiz humano, no entanto, não tem uma imediata visão do estado interior do imputado, como estava no momento da ação; ao contrário, no mais das vezes, não está em grau de reconstruí-lo com plena clareza a partir dos elementos de prova, e, por vezes, nem pela própria confissão do culpado. Mas esta falta e impossibilidade não devem ser exageradas, como se fosse de ordinário impossível ao juiz humano conseguir uma suficiente segurança e, portanto, um sólido fundamento para a sentença. Segundo cada caso, o juiz não deixará de consultar especialistas renomados sobre a capacidade e responsabilidade do presumido réu e de considerar os resultados das modernas ciências psicológicas, psiquiátricas e caracteriológicas. Se, não obstante a todas estas ponderações, permanece ainda uma dúvida importante e séria, nenhum juiz consciencioso prolatará uma sentença de condenação, tanto mais quando se trata de uma pena irremediável, como a pena de morte.

Na maior parte dos delitos, o comportamento exterior manifesta já suficientemente o sentimento interno, a partir do qual se originou. Portanto, em regra, pode-se – e, antes, às vezes deve-se – a partir do exterior deduzir uma conclusão substancialmente exata, se não se quer tornar impossíveis as ações jurídicas entre os homens. Por outro lado, não se deve ainda esquecer que nenhuma sentença humana decide -em última instância e definitivamente- a sorte de um homem, mas somente o juízo de Deus, tanto pelos atos individuais quanto pela vida inteira. Então, para tudo aquilo em que os juízes humanos são falhos, o Juiz supremo restabelecerá o equilíbrio, primeiro, imediatamente após a morte, no juízo definitivo sobre a vida inteira de um homem e, em seguida, mais tarde e plenamente, diante de todos, no último juízo universal. Não que isso dispense o juiz de uma conscienciosa e exata cautela na investigação; mas é algo grandioso saber que haverá uma última adequação da culpa e da pena, que nada deixará a desejar para a sua perfeição.  

Quem é encarregado da assistência ao condenado no cárcere preventivo não descuide de considerar qual o peso e qual o sofrimento que já a própria investigação (processo) causa ao detento, ainda quando não se aplicam métodos de investigação que não podem de modo algum ser admitidos.  Estes sofrimentos não são ordinariamente calculados na pena que será finalmente imposta, mesmo porque dificilmente isso poderia conseguir-se. Permanece, no entanto, a consciente recordação.

No campo jurídico externo, é decisiva para o pleno estado da culpa e da pena, a sentença do tribunal.

Algumas propostas de reforma

Entre vós, ilustres Senhores, manifestou-se o desejo de que se introduza pela via legislativa algum arrefecimento do vínculo que liga o juiz aos artigos do Código Penal, já não no sentido da atividade do pretor no direito romano  «adiuvandi, supplendi vel corrigendi iuris civilis gratia»[8], mas no sentido de uma mais livre apreciação dos fatos objetivos para além das normas jurídicas gerais circunscritas pelo poder legislativo; de modo a que também no direito penal se possa aplicar uma certa «analogia iuris», e o poder discricionário do juiz experimente uma ampliação dos limites até agora vigentes. Crê-se que por tal caminho haveria uma notável simplificação das leis penais e uma considerável diminuição do número dos delitos, e conseguir-se-ia fazer com que o povo compreendesse melhor aquilo que o Estado considera como merecedor de pena e por quais motivos.

A tal conceito (concepção), pode-se sem dúvida reconhecer algum fundamento. De qualquer forma, os fins para os quais se fez tal proposta, isto é, a simplificação das normas legais; a valoração não apenas do estrito direito formal, mas também da equidade e do são espontâneo juízo; a maior adequação do direito penal ao sentimento do povo; estes fins – dizemos – não dão lugar a objeções. A dificuldade deveria surgir não tanto pelo aspecto teórico quanto pela forma de sua realização, a qual, por um lado, deveria conservar as garantias do regramento vigente, e, por outro, considerar as novas necessidades e os razoáveis desejos de reforma. O direito canônico oferece exemplos em tal sentido, como se releva nos cân.  2220-2223 do C. I. C.

Variedade e eficácia das penas

Quanto ao que se refere às várias espécies de penas (penas concernentes à honra [a capacidade jurídica], os bens patrimoniais, a liberdade pessoal, o corpo e a vida – as penas corporais não estão compreendidas no direito italiano), nesta Nossa exposição Nos restringiremos a considerá-las apenas enquanto nelas se manifestam a natureza e a finalidade da pena. Como, porém, conforme já assinalamos, alguns não são da mesma opinião a respeito do sentido e do fim da pena, a consequência é que diversa é também a sua atitude quanto às diferentes penas.

Até um certo grau pode ser verdadeiro que a pena do cárcere ou da reclusão, devidamente aplicada, é a mais apta a obter o retorno do culpado à reta ordem e à vida da comunidade. Mas disso não decorre que essa seja a única boa e justa. Vem aqui a propósito o quanto Nós mesmos dissemos em Nosso discurso sobre direito penal internacional de 3 de Outubro de 1953, quanto à teoria da retribuição (cf. Discursos e Radiomensagens, vol.  15, pg. 351-353). A pena retributiva é, embora não por todos, rejeitada por muitos, mesmo se é proposta como não exclusiva, mas junto às penas medicinais. Nós afirmamos, então, que não seria justo rechaçar, em linha de princípio e totalmente, a função da pena retributiva. Enquanto o homem está sobre a terra, também essa pode e deve servir à sua salvação definitiva, quando ele próprio de outra maneira não oponha obstáculo à eficácia salutar da própria pena. Tal eficácia de fato não está de modo algum em oposição à função de equilíbrio e de reintegração da ordem turbada, a qual já indicamos como essencial à pena.

Execução da pena

A inflição de uma pena encontra o seu cumprimento natural com a sua própria execução, assim considerada como a efetiva privação de um bem ou a imposição positiva de um mal, determinadas pela legítima Autoridade como reação ao ato culpável.  É uma conformação não imediatamente da culpa, mas da turbação da ordem jurídica. O ato culpável manifestou na pessoa do réu algum elemento que não está de acordo com o bem comum e com uma ordenada convivência social. Tal elemento deve ser removido do réu. Este processo de remoção é comparável à intervenção médica no organismo, intervenção que pode ser muito dolorosa, especialmente quando se devem atingir não apenas os sintomas, mas a própria causa da doença. O bem do réu, e talvez mais ainda da comunidade, exige que o membro doente torne a ser são. Mas como a cura do enfermo, assim também a aplicação da pena requer um claro diagnóstico não somente sintomático, mas também etiológico, uma terapia adequada ao mal, uma cuidadosa prognose e uma apropriada profilaxia complementar.

As reações do condenado…

Qual caminho o réu deva tomar, indica-se pelo senso objetivo e pela finalidade da pena, bem como pela intenção, no mais das vezes conforme, da Autoridade punidora. É o caminho da consciência do mal feito, que lhe causou a pena; o caminho da aversão e do repúdio do próprio ato; a via do arrependimento, da expiação e da purificação, do propósito eficaz para o futuro. É o caminho que o condenado deve tomar. A questão, porém, é qual via ele tomará de fato. Com o olhar dirigido a tal questão, pode ser útil considerar o sofrimento causado pela pena segundo os diversos aspectos que essa apresenta; o psicológico, o jurídico, o moral e o religioso, embora normalmente estes vários aspectos estejam -na verdade- como unidos em um só.

…no aspecto psicológico…

Psicologicamente, a natureza reage espontaneamente contra o mal concreto da pena, de modo tanto mais veemente quanto mais profundo é o sofrimento que atinge a natureza do homem em geral, ou o temperamento particular do indivíduo. A isso acompanha, também espontaneamente, o dirigir-se e o fixar-se da atenção do réu sobre o ato culpável, causa da pena, cuja conexão é viva diante de seu espírito ou que, em todo caso, faz-se Agora em Primeira linha presente à sua consciência.

Após tais comportamentos mais ou menos involuntários, aparece a reação consciente e deliberada do Eu, centro e fonte de todas as funções pessoais. Esta reação mais alta pode ser uma aceitação voluntária positiva, assim como manifestada nas palavras do bom ladrão na Cruz: «Digna factis recipimus»: «Recebemos aquilo que mereciam as nossas ações» (Luc. 23,41). Pode ser também uma passiva resignação; ou, ao invés, um profundo exacerbamento, um total desmoronamento íntimo; mas também um soberbo endurecimento, que às vezes chega até a um enrijecimento no mal; ou, finalmente, uma impotente revolta interna e externa quase selvagem. Tal reação psicológica toma diversas formas, caso se trate de uma pena durável, ou, ao contrário, de uma pena restrita -quanto ao tempo- a um único momento, mas que, em suas altura e profundidade, ultrapassa toda medida de tempo, como a pena de morte.

…no âmbito jurídico…

Juridicamente, a execução da pena significa a ação efetiva e válida do poder superior e mais forte da comunidade jurídica (ou melhor, de quem detém a autoridade na comunidade jurídica) sobre o violador do direito, que, na sua vontade obstinada e contrária à lei, transgrediu culposamente a ordem jurídica estabelecida, e está agora obrigado a submeter-se às prescrições dessa mesma ordem, – para o maior bem da comunidade e do próprio réu. Com isso, aparece claramente o conceito e a necessidade do direito penal.

De outro lado, a justiça exige que na execução das disposições da lei penal seja evitado todo agravamento das penas sancionadas na sentença, todo arbítrio e toda a dureza, todo maltrato e toda provocação. A Autoridade superior tem o dever de vigiar a execução da pena e de dar-lhe a forma correspondente à sua finalidade, não no rígido cumprimento de suas particulares prescrições e parágrafos, mas em possível adaptação à pessoa sujeita à pena mesma. Já a seriedade e o decoro da autoridade penal e de seu exercício sugerem naturalmente, à Autoridade Pública, reconhecer a sua principal função no contato com a pessoa do réu.  Deverá, pois, julgar segundo as circunstâncias particulares, se os misteres do cargo poderão plenamente ser providos por meio de seus próprios órgãos. No mais das vezes, senão sempre, uma parte deverá ser confiada a outros, especialmente o verdadeiro e próprio cuidado das almas. 

Foi proposto por alguns que seria oportuno fundar uma Congregação religiosa ou um Instituto secular, ao qual seja cometida a assistência psicológica dos encarcerados na mais vasta medida. Sem dúvida, já há muito tempo boas religiosas têm levado um raio de sol e os benefícios da caridade cristã às penitenciárias femininas; e é esta para Nós uma ocasião muito oportuna para dirigir-lhes uma palavra de reconhecimento e de gratidão. Aquela proposta Nos parece digna de toda consideração, e aliás exprimimos a esperança não apenas de que uma fundação similar – juntamente aos órgãos religiosos e eclesiásticos já ativos naquelas casas – deixem operar as energias que surgem pela fé cristã, mas também que todos os resultados seguros provenientes das investigações e das experiências psicológicas, psiquiátricas, pedagógicas e sociológicas sejam usados em benefício dos prisioneiros. Isso naturalmente supõe nos que são chamados a aplicá-las, uma plena formação profissional.

Ninguém que esteja de algum modo familiarizado com a realidade da execução da pena nutrirá utópicas esperanças de êxitos importantes. A boa vontade do condenado, que não se pode obter à força, deve ir ao encontro das influências exteriores. Queira a Providência divina despertá-la e dirigí-la com a sua graça!

…no aspecto moral…

O aspecto ético da execução da pena e do sofrimento que essa acarreta está relacionado com as finalidades e com os princípios que devem determinar as disposições da vontade do condenado.

Sofrer nesta vida terrena significa quase um volver o espírito do exterior ao interior; é um caminho que distancia da superfície e conduz à profundidade. Assim considerado, o sofrer é, para o homem, de um alto valor moral. A sua aceitação voluntária, supondo a reta intenção, é uma obra preciosa. «Patientia opus perfectum habet[9]», escreve o Apóstolo S. Tiago (1, 4). Isso vale também para o sofrimento causado pela pena. Esse sofrimento pode ser um progresso na vida interior. Segundo a sua Própria natureza, é uma reparação e um restabelecimento da ordem social culposamente violada mediante a pessoa e na pessoa do réu que a deseja. A essência do retorno ao bem consiste propriamente não na aceitação voluntária do sofrimento, mas no distanciamento da culpa. A isso pode conduzir o próprio sofrimento, e a conversão da culpa pode, por sua vez, conferir ao sofrimento um valor moral mais alto, e facilitar e elevar a sua eficácia ética.  Assim, o sofrimento pode levar ao heroísmo moral, à paciência heroica e à expiação.

No campo da reação moral, também não faltam, porém, reações contrárias. Frequentemente o valor ético da pena não é sequer conhecido; com frequência, é consciente e deliberadamente rejeitado. O réu não deseja reconhecer nem admitir qualquer culpa sua, não quer de modo algum submeter-se e curvar-se ao bem, não deseja nenhuma expiação ou penitência pelas culpas pessoais.

…no elemento religioso…

E agora uma breve palavra sobre o aspecto religioso do sofrimento causado pela pena.

Toda culpa moral do homem – ainda que cometida materialmente apenas no âmbito das legítimas leis humanas, e atualmente punida pelos homens segundo o direito positivo humano – é sempre também uma culpa perante Deus, e de Deus atrai sobre si um juízo penal.  Não é do interesse da autoridade pública simplesmente não lhe fazer caso. A Sagrada Escritura ensina (Rom. 13, 2-4) que a autoridade humana, no âmbito da sua competência, outra coisa não é, no cumprimento da pena, senão a executora da justiça divina. «Dei enim, minister est, vindex in iram ei, qui malum agit»[10].

Este elemento religioso da execução da pena encontra na pessoa do réu a sua expressão e a sua realização, porquanto ele se humilha sob a mão de Deus que pune por meio dos homens; aceita, pois, o sofrimento como vindo de Deus, oferece-o a Deus como parcial desconto do débito que tem diante dEle. Uma pena assim suportada torna-se para o réu sobre esta terra uma fonte de purificação interior, de plena conversão, de fortalecimento para o futuro, de proteção contra toda recaída. Um sofrimento assim suportado com fé, arrependimento e amor é santificado pelas dores de Cristo e acompanhado pela sua graça. Este sentido religioso e sacro do sofrimento causado pela pena é-nos revelado nas palavras do bom ladrão ao seu companheiro de crucifixão: «Digna factis recipimus»: «Recebemos aquilo que mereciam as nossas ações», e na oração ao agonizante Redentor: «Domine, menzento mei, cum veneris in regnum tuum» «Senhor, recorda-te de mim quando entrares na glória do teu reino»; oração que, posta sobre a balança de Deus, trouxe ao pecador arrependido a garantia do Senhor: «Hodie mecum eris in paradiso» «Hoje estará comigo no paraíso» (Luc. 23, 41-43): praticamente a primeira indulgência plenária, pelo próprio Cristo concedida.

Todos aqueles que caíram sob os golpes da humana justiça, possam sofrer a pena que lhes foi infligida não por pura obrigatoriedade, não sem Deus e sem Cristo, não revoltados contra Deus, não espiritualmente fraturados em sua dor; mas, por meio disso, seja possível abrir-se-lhes o caminho que conduz à santidade!


*Discursos e Radiomensagens de Sua Santitade Pio XII, XVI,  Décimo Sexto ano do Pontificado, 2 de março de 1954 –  1º de março de 1955, pp. 277 – 289 Tipografia Poliglota Vaticana

Original em Italiano disponível em: Alla unione dei giuristi cattolici italiani (5 dicembre 1954) | PIO XII (vatican.va)

Tradução: Daniel Serpentino

Revisão: Alexandre Semedo de Oliveira e Domenico Sturiale


[1] Livremente traduzido como “Estado de culpa e de pena”.

[2] “Não há pena sem lei”

[3] Livremente traduzido como “réu passível de pena”.

[4] “Estado de culpa”

[5] “Estado de pena”

[6] “O que está feito não pode ser desfeito”.

[7] Pena incursa automaticamente pelo crime cometido

[8] “confirmar, suplementar ou corrigir o direito civil”.

[9] “A paciência realiza a obra perfeita”.

[10] “É ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal.”

Combater a ditadura do relativismo e mostrar uma visão conservadora do Direito e de temas, ainda que indiretamente, a ele relacionados.