Discurso de Sua Santidade PAPA PIO XII
AOS PARTICIPANTES DA VI CONVENÇÃO NACIONAL
DE ESTUDO DA UNIÃO DOS JURISTAS CATÓLICOS ITALIANOS*
Acolhei, ilustres Senhores, a Nossa saudação de boas-vindas. Dirigimo-nos a vossa digna Assembleia com os mesmos sentimentos de alegria e confiança com os quais vos recebemos no ano passado. A questão que hoje tomamos em exame foi-Nos relatada por um dos vossos, o insigne Professor Carnelutti. É a função da pena, o redimir o culpado mediante a penitência; questão que Nós gostaríamos de formular assim: a culpa e a pena na sua mútua conexão. Gostaríamos, desse modo, de traçar genericamente o caminho do homem desde o estado de não culpabilidade, através do fato da culpa, até o estado de culpa e de pena (reatus culpae et poenae[1]); e vice-versa, o retorno deste estado -por meio do arrependimento e da expiação- àquele de libertação da culpa e da pena. Nós poderemos então ver mais claramente qual é a origem da pena, qual é a sua essência, qual é a função, qual forma essa deve tomar para conduzir o culpado à sua libertação.
- – O CAMINHO PARA A CULPA E PARA A PENA
Ocorre aqui fazer duas advertências.
Antes de tudo, o problema da culpa e da pena é um problema de pessoa, e isso em um dúplice aspecto. O caminho para a culpa inicia-se pela pessoa do sujeito ativo, pelo seu “Eu”. Na soma dos atos, que provêm da pessoa como centro de ação, devem-se considerar aqui apenas aqueles que se baseiam em uma determinação consciente e voluntária; atos, a saber, que o Eu podia realizar ou não realizar, que realiza porque ele próprio livremente o deliberou. Esta função central do Eu para si mesmo – ainda que operante sob influências de naturezas diversas – é um elemento necessário, se se quer falar de verdadeira culpa e de verdadeira pena.
O fato culpável é, porém, sempre também uma posição de pessoa contra pessoa, tanto se o objeto imediato da culpa é uma coisa, como no furto, quanto se é uma pessoa, como no homicídio: além disso, o Eu da pessoa, que se torna culpável, dirige-se contra a Autoridade superior, portanto, em conclusão, sempre contra a autoridade de Deus. Em que Nós, que temos em vista o genuíno problema da culpa e da pena propriamente ditas, prescindimos da culpa meramente jurídica e da sua consequente penalidade.
É, pois, de se observar que a pessoa e a função pessoal do culpado formam uma estreita unidade, a qual, por sua vez, apresenta diferentes aspectos. Refere-se, ao mesmo tempo, aos campos psicológico, jurídico, ético e religioso. Estes aspectos se podem, contudo, considerar-se também separadamente; mas, na realidade, culpa e pena estão entre si tão conectadas que apenas no seu complexo é possível formar-se um conceito justo sobre o culpado e sobre a questão da culpa e da pena. Não se pode, portanto, sequer tratar este problema unilateralmente, apenas sob o aspecto jurídico.
O caminho para a culpa é, portanto, este: o espírito do homem se encontra na seguinte posição: diante de um fazer ou de um omitir, que a ele se apresenta como simplesmente obrigatório, como um absoluto “tu deves”, uma exigência incondicionada de agir com pessoal determinação. A esta exigência o homem recusa-se a obedecer: rejeita o bem, adota o mal. À interna resolução, quando essa não se exaure em si mesma, segue-se a ação externa. Dessa forma, o ato culpável é realizado em seus elementos interno e externo.
Natureza e vários aspectos do ato culpável
No que se refere ao lado subjetivo da culpa, para um reto juízo, deve-se considerar não somente o fato exterior, mas também as influências, provenientes do interior e do exterior, que cooperaram para a resolução do culpado, como: disposições inatas ou adquiridas, impulsos ou impedimentos, marcas da educação, irradiações das pessoas e das coisas em meio às quais vive, fatores circunstanciais, e, de modo particular, a intensidade habitual e atual do querer, a assim chamada “energia criminal”, que contribuiu à execução do fato culpável.
Considerado em seu fim, o fato culpável é um arrogante desprezo da Autoridade, que ordena a manutenção da ordem daquilo que é justo e bom, e que é a fonte, a guardiã, a tutora e a vingadora da ordem mesma. E uma vez que toda Autoridade humana não pode senão de Deus derivar, todo fato culpável é uma oposição contra Deus mesmo, contra o seu supremo direito e contra a sua suma majestade. Este aspecto religioso está imanente e essencialmente conjugado com o fato culpável.
Fim deste fato é também a comunidade de direito público, se e enquanto ele coloca em perigo e viola a ordem estabelecida pelas leis. Todavia, nem todo verdadeiro ato culpável, como foi supra descrito, tem o caráter de culpa de direito público. O poder público deve ocupar-se apenas daquelas ações culpáveis que ofendem a regular convivência na ordem fixada pelas leis. Daqui a regra acerca da culpa jurídica: Nulla culpa sine lege[2]. Mas uma tal violação, se é de fato em si mesma um verdadeiro ato culpável, é sempre também uma violação da norma ética e religiosa. A partir disso, segue-se que aquelas leis humanas, as quais se encontrem em contradição com as leis divinas, não podem formar a base para um verdadeiro fato culpável de direito público.
Ao conceito de fato culpável liga-se um outro: de que o seu autor torna-se merecedor de pena (reatus poenae[3]). O problema da pena, pois, tem assim princípio em cada caso, no momento em que o homem torna-se culpado. A pena é a reação, requerida pelo direito e pela justiça, à culpa: são como golpe e contragolpe. A ordem violada pelo ato culpável exige reintegração e restabelecimento do equilíbrio turbado. É função própria do direito e da justiça a de guardar e preservar a correspondência entre o dever, de uma parte, e o direito, de outra, e de restabelecê-la, se lesada for. A pena não toca por si o fato culpável, mas o seu autor, a sua pessoa, o seu Eu, que, com consciente determinação, realizou a ação culpável. Do mesmo modo, a punição não vem como que por um abstrato ordenamento jurídico, mas pela pessoa concreta investida da legítima Autoridade. Como a ação culpável, assim também a punição coloca frente a frente pessoa a pessoa.
Sentido e finalidade da pena
A pena propriamente dita não pode, portanto, ter outro sentido e finalidade senão aquele há pouco enunciado: o de reconduzir novamente na ordem do dever o violador do direito, que a havia deixado. Esta ordem do dever é necessariamente uma expressão da ordem do ser, da ordem do verdadeiro e do bom, única a ter o direito de existência, em oposição ao erro e ao mal, que representam aquilo que deve não ser. A pena cumpre o seu ofício ao seu modo, enquanto obriga o culpado, em razão do ato realizado, a um sofrimento, isto é, à privação de um bem e à imposição de um mal. Porém, para que este sofrimento seja uma pena, é essencial sua conexão causal com a culpa.
- – O ESTADO DE CULPA E DE PENA
Acrescentamos que o culpado criou com o seu ato um estado que por si não cessa com o cessar do fato mesmo. Ele permanece alguém que violou consciente e voluntariamente uma norma obrigatória (reatus culpae[4]) e com isso incorreu na pena (reatus poenae[5]). Este estado pessoal perdura, também na sua posição frente à Autoridade da qual ele depende, ou seja, à Autoridade humana de direito público, porquanto esta tem parte no correspondente processo penal, e, além disso, e sempre, frente à suprema Autoridade divina. Forma-se assim um durável estado de culpa e de pena, que indica uma particular condição do culpado diante da Autoridade ofendida e desta para o culpado (cf. S. Tom. S. Th. 3 p. q. 69 a. 2 obj. 3 et ad 3).
Tentou-se, partindo do conceito de que tempo e espaço, formalmente enquanto tais, não sejam simplesmente realidades, mas instrumentos e formas do pensamento, extrair-se a conclusão de que depois da cessação do fato culpável e da pena mesma não se possa mais falar de uma sua qualquer permanência na realidade, na ordem real, e, portanto, de um estado de culpa e de pena. Se assim fosse, dever-se-ia renunciar ao princípio: «Quod factum est infectum fieri nequit»[6]. Aplicado a um fato espiritual – e tal é em si mesmo o ato culpável -, aquele princípio se basearia – assim se afirma – sobre uma falsa avaliação e sobre um errado uso do conceito de «tempo» – Ultrapassaríamos os limites deste Nosso discurso se aqui quiséssemos tratar a questão do espaço e do tempo. Bastará notar que o espaço e o tempo são não uma simples forma do pensamento, mas têm um fundamento na realidade. De todo modo, a consequência que se quer extrair contra a existência de um estado de culpa, não vale. Sem dúvida, a queda do homem na culpa ocorre sobre esta terra em um determinado lugar e em um determinado tempo, mas essa não é uma qualidade daquele lugar e daquele tempo, e, pois, a sua cessação não está ligada à cessação de um «aqui» e de um «agora».
Tudo o que expusemos refere-se à essência do estado de culpa e de pena. Por outro lado, no que diz respeito à Autoridade superior, à qual o culpado negou a devida subordinação e obediência, sua indignação e desaprovação se dirigem não apenas contra o fato, mas contra o próprio autor, contra a sua pessoa por causa de seu ato.
Ao ato da culpa junta-se imediatamente, como já se acenou, não a pena mesma, mas a culpabilidade e a punibilidade do próprio ato. Não obstante a isso, não está excluída uma pena, na qual se incorra, em virtude de uma lei, automaticamente, no momento do ato culpável. No direito canônico se conhecem as poenae latae sententiae ipso facto commissi delicti incurrendae[7]. No direito civil uma tal pena é rara, e mesmo desconhecida em alguns ordenamentos. Sempre, pois, este automático incorrer na pena supõe uma verdadeira e grave culpa.
Os pressupostos de toda sentença penal
Em regra, portanto, a pena é infligida pela Autoridade competente. Isso pressupõe: uma lei penal vigente; uma legítima investidura da autoridade penal, e nela o seguro conhecimento do ato por punir, tanto pelo lado objetivo, vale dizer, na realização do delito tipificado pela lei, quanto pelo lado subjetivo, vale dizer, pelo que se refira à culpabilidade do réu, à sua gravidade e extensão.
Este conhecimento necessário para emanar uma sentença penal é, ante ao tribunal de Deus, Juiz Supremo, perfeitamente claro e infalível, e havê-lo indicado não pode ser sem interesse para o jurista. Deus estava presente ao homem na resolução interna e na realização externa do fato culpável, a tudo plenamente penetrando, com o seu olhar, até aos últimos pormenores; tudo está diante dEle, agora como no momento da ação. Mas este conhecimento – em absoluta plenitude e em soberana segurança, em cada instante da vida e sobre cada ação humana – é próprio apenas de Deus. Por isso, cabe unicamente a Deus o último juízo sobre o valor de um homem e a decisão sobre a sua sorte definitiva. Ele pronuncia este juízo da forma em que encontra o homem no momento no qual o chama à eternidade. Todavia, há um juízo infalível de Deus também durante a vida terrena, e não apenas sobre todo o conjunto, mas ainda sobre cada ato singular culpável e cada pena correspondente; pois, de fato, em não poucos casos, Ele a executa já durante a vida do homem, não obstante a sempre pronta disposição divina à remissão e ao perdão.
A certeza moral nos juízos humanos
O juiz humano o qual -diversamente- não tem a onipresença e a onisciência de Deus, tem o dever de formar, antes de proferir a sentença judicial, uma certeza moral, é dizer, que exclua toda dúvida razoável e séria acerca do fato exterior e da culpabilidade interna. Ora, o juiz humano, no entanto, não tem uma imediata visão do estado interior do imputado, como estava no momento da ação; ao contrário, no mais das vezes, não está em grau de reconstruí-lo com plena clareza a partir dos elementos de prova, e, por vezes, nem pela própria confissão do culpado. Mas esta falta e impossibilidade não devem ser exageradas, como se fosse de ordinário impossível ao juiz humano conseguir uma suficiente segurança e, portanto, um sólido fundamento para a sentença. Segundo cada caso, o juiz não deixará de consultar especialistas renomados sobre a capacidade e responsabilidade do presumido réu e de considerar os resultados das modernas ciências psicológicas, psiquiátricas e caracteriológicas. Se, não obstante a todas estas ponderações, permanece ainda uma dúvida importante e séria, nenhum juiz consciencioso prolatará uma sentença de condenação, tanto mais quando se trata de uma pena irremediável, como a pena de morte.
Na maior parte dos delitos, o comportamento exterior manifesta já suficientemente o sentimento interno, a partir do qual se originou. Portanto, em regra, pode-se – e, antes, às vezes deve-se – a partir do exterior deduzir uma conclusão substancialmente exata, se não se quer tornar impossíveis as ações jurídicas entre os homens. Por outro lado, não se deve ainda esquecer que nenhuma sentença humana decide -em última instância e definitivamente- a sorte de um homem, mas somente o juízo de Deus, tanto pelos atos individuais quanto pela vida inteira. Então, para tudo aquilo em que os juízes humanos são falhos, o Juiz supremo restabelecerá o equilíbrio, primeiro, imediatamente após a morte, no juízo definitivo sobre a vida inteira de um homem e, em seguida, mais tarde e plenamente, diante de todos, no último juízo universal. Não que isso dispense o juiz de uma conscienciosa e exata cautela na investigação; mas é algo grandioso saber que haverá uma última adequação da culpa e da pena, que nada deixará a desejar para a sua perfeição.
Quem é encarregado da assistência ao condenado no cárcere preventivo não descuide de considerar qual o peso e qual o sofrimento que já a própria investigação (processo) causa ao detento, ainda quando não se aplicam métodos de investigação que não podem de modo algum ser admitidos. Estes sofrimentos não são ordinariamente calculados na pena que será finalmente imposta, mesmo porque dificilmente isso poderia conseguir-se. Permanece, no entanto, a consciente recordação.
No campo jurídico externo, é decisiva para o pleno estado da culpa e da pena, a sentença do tribunal.
Algumas propostas de reforma
Entre vós, ilustres Senhores, manifestou-se o desejo de que se introduza pela via legislativa algum arrefecimento do vínculo que liga o juiz aos artigos do Código Penal, já não no sentido da atividade do pretor no direito romano «adiuvandi, supplendi vel corrigendi iuris civilis gratia»[8], mas no sentido de uma mais livre apreciação dos fatos objetivos para além das normas jurídicas gerais circunscritas pelo poder legislativo; de modo a que também no direito penal se possa aplicar uma certa «analogia iuris», e o poder discricionário do juiz experimente uma ampliação dos limites até agora vigentes. Crê-se que por tal caminho haveria uma notável simplificação das leis penais e uma considerável diminuição do número dos delitos, e conseguir-se-ia fazer com que o povo compreendesse melhor aquilo que o Estado considera como merecedor de pena e por quais motivos.
A tal conceito (concepção), pode-se sem dúvida reconhecer algum fundamento. De qualquer forma, os fins para os quais se fez tal proposta, isto é, a simplificação das normas legais; a valoração não apenas do estrito direito formal, mas também da equidade e do são espontâneo juízo; a maior adequação do direito penal ao sentimento do povo; estes fins – dizemos – não dão lugar a objeções. A dificuldade deveria surgir não tanto pelo aspecto teórico quanto pela forma de sua realização, a qual, por um lado, deveria conservar as garantias do regramento vigente, e, por outro, considerar as novas necessidades e os razoáveis desejos de reforma. O direito canônico oferece exemplos em tal sentido, como se releva nos cân. 2220-2223 do C. I. C.
Variedade e eficácia das penas
Quanto ao que se refere às várias espécies de penas (penas concernentes à honra [a capacidade jurídica], os bens patrimoniais, a liberdade pessoal, o corpo e a vida – as penas corporais não estão compreendidas no direito italiano), nesta Nossa exposição Nos restringiremos a considerá-las apenas enquanto nelas se manifestam a natureza e a finalidade da pena. Como, porém, conforme já assinalamos, alguns não são da mesma opinião a respeito do sentido e do fim da pena, a consequência é que diversa é também a sua atitude quanto às diferentes penas.
Até um certo grau pode ser verdadeiro que a pena do cárcere ou da reclusão, devidamente aplicada, é a mais apta a obter o retorno do culpado à reta ordem e à vida da comunidade. Mas disso não decorre que essa seja a única boa e justa. Vem aqui a propósito o quanto Nós mesmos dissemos em Nosso discurso sobre direito penal internacional de 3 de Outubro de 1953, quanto à teoria da retribuição (cf. Discursos e Radiomensagens, vol. 15, pg. 351-353). A pena retributiva é, embora não por todos, rejeitada por muitos, mesmo se é proposta como não exclusiva, mas junto às penas medicinais. Nós afirmamos, então, que não seria justo rechaçar, em linha de princípio e totalmente, a função da pena retributiva. Enquanto o homem está sobre a terra, também essa pode e deve servir à sua salvação definitiva, quando ele próprio de outra maneira não oponha obstáculo à eficácia salutar da própria pena. Tal eficácia de fato não está de modo algum em oposição à função de equilíbrio e de reintegração da ordem turbada, a qual já indicamos como essencial à pena.
Execução da pena
A inflição de uma pena encontra o seu cumprimento natural com a sua própria execução, assim considerada como a efetiva privação de um bem ou a imposição positiva de um mal, determinadas pela legítima Autoridade como reação ao ato culpável. É uma conformação não imediatamente da culpa, mas da turbação da ordem jurídica. O ato culpável manifestou na pessoa do réu algum elemento que não está de acordo com o bem comum e com uma ordenada convivência social. Tal elemento deve ser removido do réu. Este processo de remoção é comparável à intervenção médica no organismo, intervenção que pode ser muito dolorosa, especialmente quando se devem atingir não apenas os sintomas, mas a própria causa da doença. O bem do réu, e talvez mais ainda da comunidade, exige que o membro doente torne a ser são. Mas como a cura do enfermo, assim também a aplicação da pena requer um claro diagnóstico não somente sintomático, mas também etiológico, uma terapia adequada ao mal, uma cuidadosa prognose e uma apropriada profilaxia complementar.
As reações do condenado…
Qual caminho o réu deva tomar, indica-se pelo senso objetivo e pela finalidade da pena, bem como pela intenção, no mais das vezes conforme, da Autoridade punidora. É o caminho da consciência do mal feito, que lhe causou a pena; o caminho da aversão e do repúdio do próprio ato; a via do arrependimento, da expiação e da purificação, do propósito eficaz para o futuro. É o caminho que o condenado deve tomar. A questão, porém, é qual via ele tomará de fato. Com o olhar dirigido a tal questão, pode ser útil considerar o sofrimento causado pela pena segundo os diversos aspectos que essa apresenta; o psicológico, o jurídico, o moral e o religioso, embora normalmente estes vários aspectos estejam -na verdade- como unidos em um só.
…no aspecto psicológico…
Psicologicamente, a natureza reage espontaneamente contra o mal concreto da pena, de modo tanto mais veemente quanto mais profundo é o sofrimento que atinge a natureza do homem em geral, ou o temperamento particular do indivíduo. A isso acompanha, também espontaneamente, o dirigir-se e o fixar-se da atenção do réu sobre o ato culpável, causa da pena, cuja conexão é viva diante de seu espírito ou que, em todo caso, faz-se Agora em Primeira linha presente à sua consciência.
Após tais comportamentos mais ou menos involuntários, aparece a reação consciente e deliberada do Eu, centro e fonte de todas as funções pessoais. Esta reação mais alta pode ser uma aceitação voluntária positiva, assim como manifestada nas palavras do bom ladrão na Cruz: «Digna factis recipimus»: «Recebemos aquilo que mereciam as nossas ações» (Luc. 23,41). Pode ser também uma passiva resignação; ou, ao invés, um profundo exacerbamento, um total desmoronamento íntimo; mas também um soberbo endurecimento, que às vezes chega até a um enrijecimento no mal; ou, finalmente, uma impotente revolta interna e externa quase selvagem. Tal reação psicológica toma diversas formas, caso se trate de uma pena durável, ou, ao contrário, de uma pena restrita -quanto ao tempo- a um único momento, mas que, em suas altura e profundidade, ultrapassa toda medida de tempo, como a pena de morte.
…no âmbito jurídico…
Juridicamente, a execução da pena significa a ação efetiva e válida do poder superior e mais forte da comunidade jurídica (ou melhor, de quem detém a autoridade na comunidade jurídica) sobre o violador do direito, que, na sua vontade obstinada e contrária à lei, transgrediu culposamente a ordem jurídica estabelecida, e está agora obrigado a submeter-se às prescrições dessa mesma ordem, – para o maior bem da comunidade e do próprio réu. Com isso, aparece claramente o conceito e a necessidade do direito penal.
De outro lado, a justiça exige que na execução das disposições da lei penal seja evitado todo agravamento das penas sancionadas na sentença, todo arbítrio e toda a dureza, todo maltrato e toda provocação. A Autoridade superior tem o dever de vigiar a execução da pena e de dar-lhe a forma correspondente à sua finalidade, não no rígido cumprimento de suas particulares prescrições e parágrafos, mas em possível adaptação à pessoa sujeita à pena mesma. Já a seriedade e o decoro da autoridade penal e de seu exercício sugerem naturalmente, à Autoridade Pública, reconhecer a sua principal função no contato com a pessoa do réu. Deverá, pois, julgar segundo as circunstâncias particulares, se os misteres do cargo poderão plenamente ser providos por meio de seus próprios órgãos. No mais das vezes, senão sempre, uma parte deverá ser confiada a outros, especialmente o verdadeiro e próprio cuidado das almas.
Foi proposto por alguns que seria oportuno fundar uma Congregação religiosa ou um Instituto secular, ao qual seja cometida a assistência psicológica dos encarcerados na mais vasta medida. Sem dúvida, já há muito tempo boas religiosas têm levado um raio de sol e os benefícios da caridade cristã às penitenciárias femininas; e é esta para Nós uma ocasião muito oportuna para dirigir-lhes uma palavra de reconhecimento e de gratidão. Aquela proposta Nos parece digna de toda consideração, e aliás exprimimos a esperança não apenas de que uma fundação similar – juntamente aos órgãos religiosos e eclesiásticos já ativos naquelas casas – deixem operar as energias que surgem pela fé cristã, mas também que todos os resultados seguros provenientes das investigações e das experiências psicológicas, psiquiátricas, pedagógicas e sociológicas sejam usados em benefício dos prisioneiros. Isso naturalmente supõe nos que são chamados a aplicá-las, uma plena formação profissional.
Ninguém que esteja de algum modo familiarizado com a realidade da execução da pena nutrirá utópicas esperanças de êxitos importantes. A boa vontade do condenado, que não se pode obter à força, deve ir ao encontro das influências exteriores. Queira a Providência divina despertá-la e dirigí-la com a sua graça!
…no aspecto moral…
O aspecto ético da execução da pena e do sofrimento que essa acarreta está relacionado com as finalidades e com os princípios que devem determinar as disposições da vontade do condenado.
Sofrer nesta vida terrena significa quase um volver o espírito do exterior ao interior; é um caminho que distancia da superfície e conduz à profundidade. Assim considerado, o sofrer é, para o homem, de um alto valor moral. A sua aceitação voluntária, supondo a reta intenção, é uma obra preciosa. «Patientia opus perfectum habet[9]», escreve o Apóstolo S. Tiago (1, 4). Isso vale também para o sofrimento causado pela pena. Esse sofrimento pode ser um progresso na vida interior. Segundo a sua Própria natureza, é uma reparação e um restabelecimento da ordem social culposamente violada mediante a pessoa e na pessoa do réu que a deseja. A essência do retorno ao bem consiste propriamente não na aceitação voluntária do sofrimento, mas no distanciamento da culpa. A isso pode conduzir o próprio sofrimento, e a conversão da culpa pode, por sua vez, conferir ao sofrimento um valor moral mais alto, e facilitar e elevar a sua eficácia ética. Assim, o sofrimento pode levar ao heroísmo moral, à paciência heroica e à expiação.
No campo da reação moral, também não faltam, porém, reações contrárias. Frequentemente o valor ético da pena não é sequer conhecido; com frequência, é consciente e deliberadamente rejeitado. O réu não deseja reconhecer nem admitir qualquer culpa sua, não quer de modo algum submeter-se e curvar-se ao bem, não deseja nenhuma expiação ou penitência pelas culpas pessoais.
…no elemento religioso…
E agora uma breve palavra sobre o aspecto religioso do sofrimento causado pela pena.
Toda culpa moral do homem – ainda que cometida materialmente apenas no âmbito das legítimas leis humanas, e atualmente punida pelos homens segundo o direito positivo humano – é sempre também uma culpa perante Deus, e de Deus atrai sobre si um juízo penal. Não é do interesse da autoridade pública simplesmente não lhe fazer caso. A Sagrada Escritura ensina (Rom. 13, 2-4) que a autoridade humana, no âmbito da sua competência, outra coisa não é, no cumprimento da pena, senão a executora da justiça divina. «Dei enim, minister est, vindex in iram ei, qui malum agit»[10].
Este elemento religioso da execução da pena encontra na pessoa do réu a sua expressão e a sua realização, porquanto ele se humilha sob a mão de Deus que pune por meio dos homens; aceita, pois, o sofrimento como vindo de Deus, oferece-o a Deus como parcial desconto do débito que tem diante dEle. Uma pena assim suportada torna-se para o réu sobre esta terra uma fonte de purificação interior, de plena conversão, de fortalecimento para o futuro, de proteção contra toda recaída. Um sofrimento assim suportado com fé, arrependimento e amor é santificado pelas dores de Cristo e acompanhado pela sua graça. Este sentido religioso e sacro do sofrimento causado pela pena é-nos revelado nas palavras do bom ladrão ao seu companheiro de crucifixão: «Digna factis recipimus»: «Recebemos aquilo que mereciam as nossas ações», e na oração ao agonizante Redentor: «Domine, menzento mei, cum veneris in regnum tuum» «Senhor, recorda-te de mim quando entrares na glória do teu reino»; oração que, posta sobre a balança de Deus, trouxe ao pecador arrependido a garantia do Senhor: «Hodie mecum eris in paradiso» «Hoje estará comigo no paraíso» (Luc. 23, 41-43): praticamente a primeira indulgência plenária, pelo próprio Cristo concedida.
Todos aqueles que caíram sob os golpes da humana justiça, possam sofrer a pena que lhes foi infligida não por pura obrigatoriedade, não sem Deus e sem Cristo, não revoltados contra Deus, não espiritualmente fraturados em sua dor; mas, por meio disso, seja possível abrir-se-lhes o caminho que conduz à santidade!
*Discursos e Radiomensagens de Sua Santitade Pio XII, XVI, Décimo Sexto ano do Pontificado, 2 de março de 1954 – 1º de março de 1955, pp. 277 – 289 Tipografia Poliglota Vaticana
Original em Italiano disponível em: Alla unione dei giuristi cattolici italiani (5 dicembre 1954) | PIO XII (vatican.va)
Tradução: Daniel Serpentino
Revisão: Alexandre Semedo de Oliveira e Domenico Sturiale
[1] Livremente traduzido como “Estado de culpa e de pena”.
[2] “Não há pena sem lei”
[3] Livremente traduzido como “réu passível de pena”.
[4] “Estado de culpa”
[5] “Estado de pena”
[6] “O que está feito não pode ser desfeito”.
[7] Pena incursa automaticamente pelo crime cometido
[8] “confirmar, suplementar ou corrigir o direito civil”.
[9] “A paciência realiza a obra perfeita”.
[10] “É ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal.”