A Revolta Metafísica Em Ato

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Parte I: https://mmjusblog.wordpress.com/2017/07/28/e-sereis-como-deus/

 

Como visto em nosso artigo anterior, a narrativa da criação e da queda de nossos primeiros pais (especialmente de nossa primeira mãe) revela-nos coisas essenciais acerca da natureza que nos cerca e, especialmente, diz muito sobre nós mesmos. Deus, sendo o Bem absoluto, nada podia criar que não fosse bom, razão pela qual a criação é boa. O ser e o dever ser das coisas coincidem. As  proibições, os mandamentos e as permissões divinas enraízam-se na natureza dos seres das coisas e não num capricho voluntarista do Criador. Contudo, a partir da aceitação por Eva do engano da serpente, passou a haver, no ser humano, uma dúvida acerca da bondade de Deus e de toda criação; com frequência, cremos que as coisas não são como deveriam ser e pensamos que os imperativos morais são fruto de um voluntarismo divino; e, sobretudo, há em nós o desejo de sermos como o próprio Deus.

Pois bem.

A ideologia de gênero afirma que a pessoa constrói, no transcurso de sua vida, o gênero ao qual pertencerá, podendo, inclusive, decidir não pertencer a gênero algum, pelo que não há algo como macho e fêmea (זָכָר וּנְקֵבָה). Os papéis de homem e de mulher são construtos sociais e é necessário desconstruí-los para livrar o homem de podações absurdas fundadas, em última análise, não na natureza, não no ser das coisas, mas na vontade do corpo social. No fundo, trata-se de uma versão laica da mesma revolta metafísica.

A realidade, contudo, é claramente diversa. A existência de dois sexos em toda a criação é algo evidente e negá-lo, portanto, é abrir mão da realidade. Salvo, é claro, se alguém estiver disposto a comprar a ideia de que existem papeis sociais construídos na sociedade das vacas e dos bois, dos porcos e das porcas, dos cães e das cadelas…

Acho que poucos chegariam a tanto.

Mas atualmente não se pode excluir possibilidade alguma, por mais ridícula que seja. Recordo, novamente, que, conforme já esclarecido em outro artigo, o homem moderno está treinado para fechar os olhos à realidade e para apegar-se às teorias mais absurdas. Comporta-se, em suma, como um louco num hospício. Se há gente disposta a apegar-se à teoria queer, talvez um dia surja alguém levantando a bandeira da desconstrução dos papeis tradicionais de bois e de vacas; máxime se tal for necessário para satisfazer algum desejo tolo e infantil.

Além disso, há, ainda, o apelo à revolta metafísica que herdamos de nossa primeira mãe. Em maior ou menor grau, todos estamos revoltados com nossa própria realidade e, pudéssemos, mudaríamos algo nela. Em graus extremos, há muitos seres humanos que estão revoltados com o fato de terem nascido homem ou mulher. São pessoas que sentem uma ruptura radical entre o que são e o que deveriam ser. É a esse público que a ideologia de gênero apela, vendendo-lhe a esperança de ser possível recompor essa ruptura imaginária, mas na qual acreditam profundamente.

Enquanto houver algum ser humano pisando na Terra, haverá pessoas revoltadas com o ser das coisas; sobretudo, haverá algumas especialmente revoltadas com o seu próprio ser, crendo que deveriam ser coisa diversa do que são. Infelizmente, nunca faltará massa de manobra para loucuras como a ideologia de gênero.

Penso ser necessário, a esta altura, dar alguns exemplos desta revolta metafísica para ilustrar o que temos exposto. São alguns poucos casos, pinçados em meio a muitos outros.

FIGURA 01:[1]

Alienígena

 

FIGURA 02:[2]

 

Mulher cavalo

FIGURA 03:[3]

Mulher gato

 

 

No primeiro exemplo, tem-se um jovem americano que já gastou uma pequena fortuna para transformar-se num alienígena. Mas não num alienígena qualquer. O desejo dele é o de ser um alienígena assexuado. Sem a chave da revolta metafísica já mencionada, seria um verdadeiro mistério que alguém deseja ser algo que nunca viu e que, com a máxima probabilidade, não existe.

No segundo caso, tem-se uma pessoa que nasceu homem e, posteriormente, “transformou-se” numa mulher. Agora, quer mesmo é ser um cavalo. Escolhemos esse exemplo para mostrar ao leitor que a revolta consigo mesmo é algo que simplesmente não cessa com a “mudança” de sexo que muitos desejam e que se incentiva mais e mais. A revolta com a natureza está em nós e faz parte do ser humano, razão pela qual não  é dando-se asas à revolta que se resolverão os problemas de pessoas como esta.

Por fim, a terceira é uma mulher que afirma estar na espécie errada. Ela diz ser um gato. Anda de quatro, tem medo de cachorro; sente horror de água e comunica-se com miados. Mas, por mais que esteja convencida de estar na espécie errada, o certo é que está na espécie certa; é o que deve ser. Jamais, por exemplo, terá pelos de gato, unhas de gato e nunca gerará gatinhos. Aliás, já viveu mais do que pode viver um gato e dificilmente gostaria de ser um bichaninho e ter a expectativa de vida de um deles.

Haveria muitos outros casos. Há mulheres dragão; há homens sereia (ou sereio, sei lá); há homens zebra; há de tudo um pouco. O que os une, e o que une tais casos àqueles de pessoas que querem rejeitar como mero construto o sexo em que nasceram, é que todos levam a extremos uma revolta existente em cada ser humano.

Talvez algum leitor argumente que os exemplos acima são casos patológicos. Eu replicaria dizendo que tal leitor está correto, mas que tal percepção apela, perceba ele ou não, à normalidade das coisas. Apenas quem está ancorado na noção do normal é que pode afirmar que determinado fenômeno é doentio. E a definição do que seja um comportamento humano normal ou será arbitrária ou se sustentará na natureza mesma do homem. E em nenhum dos dois casos um ideólogo do gênero estará à vontade.

Em outras palavras, um defensor da ideologia de gênero não pode argumentar que tais casos são doentios, pois ele defende, em suma, que a pessoa é o que quer ser. No máximo, pode-se dizer que poucos, hoje, chegariam aos extremos acima e que, assim, casos como os exemplificados são excepcionais. Mas, o que é excepcional hoje, pode ser a regra de amanhã se não houver uma correspondência no real das coisas para medir-se o que é normal e o que não é.

Assim, nem o alienígena assexuado, nem a mulher cavalo e nem a menina gato podem ser considerados, dentro dos cânones da ideologia de gênero, como anormalidades. Mas, ainda que alguém se diga uma égua e que queira copular com um cavalo, o fato inconcusso, ao final das contas, é que essa pessoa segue sendo um ser humano igual a todos os demais; ou macho ou fêmea. E ao menos a maioria seguirá percebendo o óbvio e tratando a pessoa por aquilo que ela é, e não por aquilo que ela pensa que deveria ser.

Ora, se tais casos são manifestações de uma revolta e trazem como consequência um alheamento da realidade, é óbvio que uma sociedade minimamente saudável se esforçaria por conter a primeira e por ajudar estas pobres pessoas a retornar à segunda. Seria de se esperar que desde o cidadão comum até os legisladores e os magistrados, todos trabalhassem para que a revolta metafísica que há em nós fosse devidamente contida.

Mas nossa sociedade está longe de ser saudável. Por isso, ao invés de se combater a revolta metafísica de que falamos, cada vez mais tenta-se forçar o homem comum a aceitar como válida uma opção que é, claramente, equivocada. Tal tem sido o papel dos ideólogos de gênero, que usam dos meios de comunicação social para tanto. Para completar a tragédia, legisladores e juízes estão elegendo a revolta metafísica, e, portanto, a aversão à realidade que ela contém, como valor a ser tutelado.

As razões mais profundas pelas quais tanto os legisladores quanto os magistrados estão aceitando teoria tão absurda a ponto de tutelar suas consequências mais drásticas, contudo, não podem ser explicadas apenas com a influência dos meios de comunicação social. Parece-me que a aceitação da ideologia de gênero entre eles é mais afoita do que aquela que se verifica no homem comum, que, a rigor, é mais propenso a se deixar influenciar pelos meios mencionados.

Por isso, penso que a explicação deve ser buscada em outro local. Conforme já insinuado, legisladores e juízes aceitam tão facilmente a ideologia de gênero em grande parte por causa daquele desejo antigo latente em todos os descendentes de Eva: o de ser como Deus.

Mas isso será objeto do último post da série.

 

Parte III: A Tutela da Revolta e a Ascenção do Estado Totalitário.

 

[1] Fonte da imagem: http://cenapop.virgula.uol.com.br/2017/03/02/130068-americano-gasta-r-150-mil-em-cirurgias-para-se-transformar-em-alienigena/

[2] Fonte da imagem: http://blogreflexoes.wixsite.com/reflexoes/single-post/2015/12/06/Nasceu-Homem-Virou-Mulher-e-Agora-Quer-Ser-Cavalo

[3] Fonte da imagem: http://blogs.oglobo.globo.com/pagenotfound/post/jovem-diz-que-nasceu-na-especie-errada-e-insiste-que-e-gata.html

E Sereis Como Deus.

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Já há algum tempo, escrevi um artigo intitulado “Como Loucos no Hospício”, no qual tive a intenção de expor, sucintamente, como a mente do homem ocidental moderno funciona: exatamente como a de um louco, vivendo alheio à realidade e apegando-se a ideias sem a menor preocupação de confrontá-las com o mundo em sua volta. Ao final do texto, prometi uma continuação, visto que a loucura do mundo moderno é tal que, de fato, muitos há que pensam ser como Deus, julgando-se capazes mesmo de alterar a realidade que os cerca.

 

A continuação prometida, contudo, foi adiada por algum tempo. E, dado o avanço cada vez mais avassalador da chamada ideologia de gênero, entendi por bem abordar o assunto sob esta ótica, mesmo porque, até o presente momento, o ser humano não conseguiu criar nada que seja mais flagrantemente contrário à realidade; nada, portanto, que seja mais louco.

 

Para abordar assunto tão vasto e complexo, servir-me-ei, num primeiro momento, da narrativa bíblica da Criação e da Queda dos homens; depois, num segundo texto, abordarei mais de perto a revolta metafísica sem a qual a ideologia de gênero não encontraria eco no coração dos homens; e, num terceiro, falarei mais detalhadamente sobre a atuação do Estado na questão, especialmente sobre a atuação de juízes, que, sem saber, gostando disso ou não, atuam sob a antiquíssima mentira de que podemos, ao final da contas, agir como se fôssemos deuses.

 

A primeira parte é essencial para o desenvolvimento das outras duas. Aqueles que têm fé não encontrarão problemas com a abordagem dada. Aos que não têm, peço que encarem a narrativa da Criação e da Queda ao menos como mitologia, como eco de uma cultura milenar e que tem muito a nos ensinar acerca de nós mesmos. Assim como aprende-se muito com a mitologia grega, pode-se aprender muito com a narrativa em questão. Mas, se, eventualmente, o leitor for daqueles que pensam que nem mesmo mitologias servem para alguma coisa, então, não perca tempo com a presente leitura. Sua inteligência já se derreteu há muito tempo e não ha nada que eu possa fazer para te ajudar.

 

Feito esse caveat, comecemos.

 

Segundo a narrativa do Gênesis, Deus tudo cria usando a Sua palavra. Ele simplesmente diz, e as coisas são. De fato, a frase utilizada no original para indicar o ato criador é וַיֹּאמֶר אלהים, que, traduzido para o português, seria “e disse Deus”.

 

É assim que Deus cria. O primeiro ser criado foi a luz. No original, Deus disse:

יהי אור ויהי אור    

É muito comum traduzir-se a frase como “faça-se a luz; e a luz foi feita”. Contudo, a palavra utilizada para trazer do nada as criaturas (יְהִי) é o verbo “ser” no imperativo. A melhor tradução do texto, assim, seria “ Deus disse: seja a luz”; e a luz foi”.

 

Este detalhe é extremamente interessante e significativo. Isso porque o verbo “ser” está na raiz do nome de Deus dá a Si próprio (יְהֹוָה), definindo-se, ante um Moisés perplexo, simplesmente como “Aquele que É”. A ideia, portanto, passada pela narrativa é muito sugestiva: o Ser por excelência dá às criaturas o ser que elas têm; essas recebem o ser do Ser e, nEle, têm seu próprio ser sustentado.

 

Mas não é só!

 

À medida que vai criando, Deus avalia a sua criação. E, ao avaliá-la, vê sempre que os seres criados são bons. Há uma cláusula na narrativa que se repete várias vezes como martelo em bigorna:

וַיַּרְא אֱלֹהִים כִּי-טוֹב

E Deus viu que era bom. E, ao final, contemplando a criação inteira, Deus vê que tudo é muito bom (טוֹב מְאֹד). Novamente, a ideia passada é das mais interessantes: se tudo recebe o ser de Deus, se cada coisa em si é boa e se o conjunto da criação é muito bom, então, o Criador é bom em grau absoluto. O Ser por excelência é bom, e os seres criados são também bons cada qual ao seu modo. E, se Deus é bom e tudo fez bem, então o ser das coisas é exatamente como deveria ser. Há, entre o ser e o dever ser do mundo criado uma correspondência, tal qual o Ser e o Dever Ser em Deus coincidem: tudo é o que deve ser, pois tudo é bom e tudo vem do Ser bom por excelência. Se Deus, por exemplo, nos fez “homem e mulher” ( זָכָר וּנְקֵבָה) fez-nos assim porque assim é o que deveríamos ser.

 

Contudo, um belo dia, a serpente aproximou-se de Eva e conversou com ela. A primeira frase articulada por sua língua bipartida é, novamente, interessantíssima: “É verdade que Deus os proibiu de comer de todas as árvores do jardim?” Bastava isso para que a primeira mulher repelisse o animal peçonhento para longe, pois, claramente, a pergunta tinha de capciosa aquilo que tinha de mentirosa. A própria Eva o percebeu, visto que corrigiu imediatamente a serpente, afirmando que Deus os havia proibido de comer apenas de uma das árvores do jardim, pois, no dia em que o fizessem, morreriam. Assim, ao corrigi-la, nossa primeira mãe professou saber e entender que a proibição de que comessem de uma única árvore não representava um ato arbitrário de Deus, mas uma projeção do amor que Ele tinha para com Sua criatura: não deviam comer para mão morrer. Sabia, em suma, que o bem e o mal não são arbitrários, que não derivam de um voluntarismo de Deus, que decide, sem critérios, proibir isto, permitir aquilo e ordenar aquilo outro. Ao contrário, as ordens, proibições e permissões de Deus derivam da própria realidade das coisas e existem para nosso próprio bem.

 

É então que o golpe de mestre é dado! A serpente retruca: “Certamente não morrereis. Mas Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal.”

 

Quantas coisas há a serem ditas sobre essa frase! A maldade da serpente é genial, mostrando-se ela como um ser imensamente superior a nós. Estamos diante da própria inteligência angélica usada para a destruição do gênero humano, coisa que, de fato, conseguiu lograr de um certo modo!

 

Ao retrucar a Eva, a serpente utiliza-se, no original hebraico, daquilo que se chama “infinitivo tautológico”: לֹא- מוֹת תְּמֻתוּן. Uma tradução literal seria: “não morrer morrereis”, o que, em português não tem sentido. Mas, em hebraico, é uma das formas de enfatizar determinada ideia. É como se a serpente dissesse: “é absolutamente certo que não morrereis”, dizendo a Eva, com isso, que Deus havia mentido para ela. E não somente que mentira, mas que o fizera descaradamente; não com uma mentira qualquer, mas com uma mentira grosseira. Sugeriu que a proibição divina de comer daquele fruto não repousava na própria natureza das coisas, mas num simples capricho do criador. Deus não queria proteger o homem com ela, mas queria apenas, mantê-lo sob controle, ciumento de suas próprias prerrogativas.

 

Eva aceitou a mentira da serpente e as consequências para ela (e, por ela, para todos nós) foram devastadoras. Pois, se Deus mente, se Suas ordens, proibições e permissões são frutos apenas de Sua vontade caprichosa (de um voluntarismo divino), então, claramente, Ele, o Ser por excelência, é mau e mentiroso. E, sendo-o, a criação não poderia ser boa e verdadeira, pois tudo recebeu dEle seu ser.

 

Ou seja, se o Criador é mau, a criação é má.

 

E, se a criação é má, as coisas não são mais necessariamente como deveriam ser. Em Eva (e, por meio dela, em todos nós), cessou a certeza de que o ser e o dever ser das coisas coincidem. Essa ruptura – que aqui chamarei de revolta metafísica – é algo que podemos experimentar em nós mesmos, pois todos já nos pegamos pensando que, fôssemos nós a fazer isso ou aquilo, faríamos de forma diversa daquela escolhida por Deus.

 

Mas o discurso da serpente, contudo, é ainda mais venenoso.

 

Deus os proibira de comer do fruto da árvore que está no meio do jardim no intuito de proibir que o homem se tornasse “conforme Deus” (כֵּאלֹהִים). Muitas traduções vertem o texto וִהְיִיתֶם כֵּאלֹהִים como “sereis como deuses”. Não está totalmente errado, pois o termo que designa Deus no Antigo Testamento é אֱלֹהִים, que, literalmente, significa “deuses”. Desde a primeira linha das Escrituras, Deus é apresentado como um ser único, porém, no qual há algo de plural (alguns veem nisso uma insinuação da Trindade). Porém, a tradução “sereis como deuses”, dentro do contexto de Gn 3, 5 não se sustenta, pois a serpente está falando com Eva acerca do Deus Criador. É sobre Ele que conversam, e, no início da frase, a primeira afirma que “Deus” (אֱלֹהִים) sabe que, no dia em que dele comerdes, sereis como Deus (כֵּאלֹהִים).”

 

A tentação presente na oferta da serpente, portanto, não é a de que Eva seria uma deusa qualquer; a tentação se referia especificamente a que ela, comendo, seria como o próprio Deus Criador.

 

Ora, a narrativa da criação já assegurara, linhas antes, que Deus, ao criar o homem, criara-lhe “à Sua imagem e semelhança”. Assim, o homem já era, num certo sentido, “conforme Deus”, pois tinha dEle não somente a imagem (o que todas as criaturas têm), mas também Sua semelhança, possuindo razão, vontade e liberdade. Também já conhecia o bem e o mal, tanto que nossos primeiros pais não haviam até então comido do fruto pois sabiam que morreriam se o fizessem. Para eles, portanto, claramente viver é um bem; morrer, um mal.

 

Dessa forma, ao sugerir que, comendo do fruto proibido, o homem seria “como Deus”, a serpente sugeria-lhes que seriam como Deus num sentido superior ao qual já o eram e que conheceriam um bem e um mal até então ocultos. Eva cedeu a tal tentação; quis ser “como Deus”. E, como consequência, nós, seus filhos, até hoje temos, dentro de nós esse mesmo desejo: o de sermos כֵּאלֹהִים.

 

A revolta metafísica e o desejo de sermos כֵּאלֹהִים são a base sobre a qual os ideólogos de gênero (sabendo disso ou não), trabalham: apelando para a primeira, convencem não poucos a querer mudar sua própria natureza; apelando para a segunda, convencem legisladores e juízes de que podem pronunciar uma palavra e alterar a realidade das coisas.

 

Nos próximos posts, pretendo abordar tais assuntos.

 

Mas isso é coisa que fica para o próxima parte.

 

Parte II: A Revolta Metafísica Em Ato.

Parte III: A Tutela da Revolta e a Ascenção do Estado Totalitário.

 

ATÉ LOGO, ESTIMADO PAI!

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Como toda criança, eu quis ter um pai. Alguém que fizesse nosso medo se reduzir ao tamanho de uma formiga. Com asas nas mãos para me carregar nas noites insones. Com uma voz doce para cantar para mim. Alguém que já me amasse desde o ventre materno e que zelasse pela fragilidade da minha vida. Desde então, você deu tudo o que tinha e o que não tinha para mim.

Até a mamãe passou a ser de nós dois e você trabalhava dobrado para eu poder estudar no melhor colégio. Seu amor meio desajeitado me encantava, mas eu sei o quanto eu tumultuei sua vida. Abusei de sua bondade e de sua paciência com meu espírito crítico. E de seu lugar na cama, sempre jogado para a beirada dela. Mas bastou que eu crescesse um pouco para você se sentir recompensado.

Quando me apoiou em ser diplomata e, quando desisti da ideia para ser juiz, sempre me deu a liberdade de iniciativa. E me preparou para a responsabilidade das escolhas que fiz antes mesmo que estivesse pronto para lidar com elas.

Sempre por meio de muito estudo e entrega anímica. Mesmo quando ficava fazendo tarefa atrás da porta, só para ouvir o som das chaves do outro lado, seguido do abraço caloroso que sempre vinha depois. Seu olhar firme e sua postura estóica sempre me serviram de inspiração para seguir em frente.

É certo que fugi do serviço militar, como o diabo foge da cruz. Mas tenho uma coleção invejável de filmes de guerra, a que assistíamos juntos, e um rifle de assalto que, embora não seja de verdade, é de air soft e isso foi suficiente para que nos divertíssemos muito no tiro ao alvo.

Sempre perdi para você no futebol de areia, mas você era minha torcida na superação dos meus limites. Mas ganhei nos livros. Você tinha um mil e eu já passei dos quatro. E, agora, vou herdar e cuidar com carinho dos seus. A Elena, sua neta, ao que parece, herdou seu natural pendor para a história. Teremos, a longo prazo, uma forte concorrente no hábito de leitura.

Quando saí de casa aos 17 anos, rumo às Arcadas do Largo de São Francisco, você acreditou em mim, quando eu mesmo duvidava das minhas habilidades. Quando virei juiz aos 23 e me casei aos 25, você disse que eu poderia ter adiado um pouco mais e chorou tanto que, então, descobri seu coração de soldado.

O mesmo coração de soldado que pulsou efusivamente quando o Pedro, seu primeiro neto, nasceu. Aliás, ele também tem um coração de soldado: ontem, quando você já estava em coma, ele, bravamente, testemunhou, ao meu lado, seu suspiro final. Suas mãos faleceram em contato com as dele. E as minhas também.

É claro que também nos desentendíamos: tipo de música (Sabbath, Iron, Bono, Mozart e Chopin ou Gil, Caetano, Chico, Beethoven e Liszt), shows de rock (avisados sempre de última hora), valor da mesada (invariavelmente baixo), volume do som (no máximo), banana (cozida ou frita), arrumação do quarto (semanal ou semestral), serviço militar (facultativo ou obrigatório), Brasil (sempre o país do futuro), grandes generais (Alexandre ou Rommel), política (monarquia ou república).

Mas só no acidental. No substancial, deu-me um fervoroso amor à pátria, uma educação nas virtudes e na fé católica apostólica romana. Tudo isso virou baliza para os caminhos que enfrento diariamente. Com você, eu aprendi a importância de se deixar pegadas das quais pudesse me orgulhar depois.

Com a Regina ao meu lado, essas pegadas ganharam em sentido, alcance e número. Por isso, de certa forma, você foi minha medida em muitas coisas e, assim, seu amor me ajudou a achar meu lugar no mundo: lugar de filho, pai e, um dia, de avô nessa grande aventura da vida.

Você foi cedo demais! Mas entendo: quis ir para junto de seus pais justamente no mês em que eles se foram num passado já longíquo. Até nisso, você deu exemplo de amor familiar. Obrigado e “Selva”! Requiescat in pace!

PS: meus filhos e seus netos – Pedro, Cauã, João Vitor, Elena e Letizia – agradecem também. Sobretudo a Letizia, que teve a felicidade de estar em nossa última foto juntos, quando você falava que iria escrever mais um livro. E escreveu mesmo. Na urdidura de cada um de nossos corações.

André Gonçalves Fernandes, Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador e membro da Academia Campinense de Letras.

Leviatã Disse Não

Baal
Fonte da imagem: http://juliosevero.blogspot.com.br/2009/04/os-modernos-adoradores-de-baal.html

 

No mundo antigo, a vida humana era coisa barata. Valia muito pouco e, mesmo em recantos mais civilizados, como na Grécia, a situação não era muito diferente, sendo célebre o direito dos pais espartanos em descartar os filhos recém nascidos caso os julgassem pouco aptos a servir à causa da Cidade. Em outras grandes civilizações, o sacrifício de crianças era coisa do dia a dia das pessoas, que as entregavam aos pés de Baal em rituais que hoje chamaríamos de demoníacos (e que, na concepção deste pobre escriba, eram-no de fato).

Mas, os tempos mudaram. Num recanto escondido do Império Romano, um pequeno povo havia recebido um mandamento diferente, pelo qual matar outro ser humano era coisa proibida. A vida humana era dádiva de Deus e, em virtude de sua origem divina, tinha um valor até então desconhecido pelos demais povos. Posteriormente, com o cristianismo, essa concepção radicalmente nova (e, acrescento eu, completamente absurda de um ponto de vista meramente materialista) se expandiu para os confins da Terra. Aos poucos, o ser humano passou a ter um valor não somente porque sua vida era como que um sopro divino mas, também, porque o próprio Deus viera sacrificar-se por ele; não apenas porque Ele o criara, mas porque o amava com um amor que simplesmente foge à nossa capacidade de compreensão. Não haveria, doravante, mais sacrifícios de crianças, nem de velhos, nem de doentes, nem de quem quer que seja. Matá-los passou de coisa comum e esperada a algo abominável e revoltante.

Acostumamo-nos com isso. Acostumamo-nos com a ideia de que, tendo a vida humana um altíssimo valor, mesmo os mais fracos devem ser protegidos. Não somente as crianças, mas os velhos[1] e os doentes também passaram a gozar de um status social que não somente não fora imaginado pelos antigos mas que, caso esses o tivessem imaginado, rechaçá-lo-iam como algo flagrantemente absurdo.

Acostumamo-nos tanto a esse estado de coisas que jamais imaginaríamos que a humanidade pudesse voltar atrás. Tomamos a nossa própria cultura cristã como a régua pela qual medíamos a humanidade inteira e simplesmente não conseguíamos raciocinar no sentido de que, subtraída a base cristã da cultura, o retrocesso nela seria inevitável. Mas bastaria olhar o mundo à nossa volta, bastaria olhar como se comportam até hoje as diversas culturas nas quais a ideia da sacralidade da vida humana ainda não se enraizou para que soubéssemos que, subtraída tal sacralidade, abominações voltariam a fazer parte do nosso dia a dia. Seria fácil percebê-lo, mas quase todos (exceção feita a poucas vozes heroicas, que desde há muito avisavam do perigo que se desenhava no horizonte) preferiram manter-se presos num sonho de progresso contínuo; presos na mentira de que era possível viver a vida mais hedonista imaginável sem que isso cobrasse um preço civilizacional.

Contudo, na semana passada, muitos foram acordados desse sonho da forma mais dolorosa que se poderia imaginar. O Grande Leviatã (agindo, no caso, por meio do Tribunal Europeu de “Direitos Humanos” – seria uma ironia sensacional se não fosse uma trágica realidade) impediu que pais de Charlie Gard envidassem esforços para salvar seu filho da morte. A criança nasceu com rara doença e não existe tratamento conservador capaz de mantê-la viva. Contudo, há tratamento alternativo à disposição e os pais do menino, heroicamente, levantaram uma pequena fortuna para custeá-lo.

Mas Leviatã disse não…

Quem manda na vida e na morte do pequeno Charlie não é ele próprio (mesmo porque ainda um bebê) nem mesmo seus pais. Quem, como outrora os pais espartanos, decide se a criança é apta ou não para habitar esse belo mundo que estamos construindo é o Estado Totalitário, aqui agindo por meio de um tribunal que transcende os Estados Nacionais. E pode decidi-lo ainda que contra a vontade dos pais; e, num futuro próximo, ainda que contra a vontade manifesta do próprio doente já em idade de decidir por si mesmo.

Leviatã, que já pode muito, quer poder cada vez mais e não cessará de avançar até que, ao final, possa tudo.

Como chegamos nisso?

Ora, há séculos expulsamos Deus de nossas vidas.

Ao expulsá-lo, jogamos na lata de lixo a noção de que a vida humana é sagrada, erigindo, como valor máximo de nossas existências, o gozo imediato de todos os prazeres ao nosso alcance.

Se a vida humana não é sagrada e se nossa maior preocupação é com a balada do próximo sábado à noite, cedo ou tarde as crianças (e os velhos, e os doentes, e todos os fracos que nos cercam) passariam a ser vistas mais como um peso e como uma fonte de despesas do que como uma benção divina.

E, sendo assim, cedo ou tarde passaríamos a limitar ao mínimo possível o número de filhos que teríamos, tendo-os apenas na exata medida em que os ter representa a realização de um desejo pessoal dos pais.

Ao aceitarmos a ideia de que os filhos devem ser limitados, aceitaríamos, cedo ou tarde, a de que o aborto, ao final das contas, é um meio legítimo de se obter tal limitação quando tudo o mais falha, dando aos pais o direito de decidir quais filhos viverão e quais serão espartanamente descartados.

Quando demos aos pais o direito de decidir sobre a vida dos filhos, abrimos a possibilidade de que o Estado também o faça (ou mesmo que o faça com exclusividade), visto que, se terceiros podem decidir sobre uma vida alheia, não há razão minimamente consistente para que Leviatã não assuma, ele mesmo, esse papel. Afinal de contas, ele já decide quase tudo para o apatetado homem moderno, que, não tendo que decidir mais nada, pode se dedicar à tarefa de decidir em que local passará as próximas férias. Principalmente porque a Ordem Jurídica já não se refere a um Direito Natural ao qual deva se dobrar, tornando-se, ao final das contas, um mero amontoado de leis emanadas de Leviatã e fundadas apenas no desejo dele.

Se Leviatã pode, contra toda a Ordem Natural, dar aos pais o direito de matar os filhos, pode dar, ora bolas, a si mesmo o direito de fazê-lo. E pode, também, dando um passo adiante, declarar-se o único legitimado a fazê-lo. E (por que não?) pode, por fim, tomar para si o direito de decidir sobre a vida e a morte de todo e qualquer um dos seus súditos, seja pelas razões que forem.

Como se vê, adotados certos princípios, temos que suportar as consequências lógicas que deles defluem. Tais consequências virão cedo ou tarde nos assombrar e, às vezes, nos chocar, como chocaram, agora, com o caso do pobre Charlie Gard.

E, àqueles que se chocaram com o ocorrido e que o acharam um absurdo, digo que não basta simplesmente defendermos o retorno uma ordem de coisas na qual os pais podem decidir sobre a vida dos filhos, mas o Estado não, pois foi justamente essa ordem de coisas que acabou por gerar o absurdo que se visa combater. Seria querer extirpar os efeitos enquanto nos comprazemos nas causas que o geraram.

Não adiantaria, igualmente, apenas lutar contra o aborto sem o abandono da civilização do hedonismo, pois foi essa que acabou por gerar a aceitação geral daquele. Novamente, seria combater os efeitos e lambuzar-se nas causas.

Ou seja, se realmente queremos combater o monstro que está sendo gestado, não temos outra saída senão retrocedermos ao estado de coisas vigentes antes que o primeiro princípio causador da sequência de efeitos estivesse presente.

Se ainda não me entenderam, digo-o com clareza: devemos lutar pela restauração de uma ordem na qual Deus seja, novamente, o centro das coisas.

Tudo o mais é bobagem e vento que passa. Pois a formação de uma sociedade centrada em Deus foi, ao cabo de tudo, o elemento único que nos permitiu elevar-nos acima das civilizações primitivas nas quais, por melhor que fossem sob muitos aspectos, a vida humana nada valia.

Ou começamos a encarar desde logo essa realidade ou o mundo do futuro será, para nós, terrivelmente novo; mas, para um adorador de Baal de 25 séculos atrás, incrivelmente familiar.

 

[1] A necessidade da existência de um estatuto de idosos e de um outro de crianças é sintoma de um tempo doentio e decadente. Isso porque a necessidade de protegê-los por serem mais fracos era algo tão bem aceito na sociedade que não havia razão alguma para impor tal obrigação por via legal. Um dia, pretendemos abordar o assunto de forma mais profunda.

A Eugenia legalizada: Charlie Gard

foto pais charles

Ganhou os jornais a notícia estarrecedora de que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sentenciou à morte o bebê inglês de apenas dez meses, Charlie Gard (http://www.bailii.org/ew/cases/EWHC/Fam/2017/972.html). O pequeno Charlie é portador de uma rara doença genética chamada “síndrome de depleção do DNA mitocondrial” (SDM),  que leva ao mal funcionamento dos órgãos, lesões cerebrais e outros sintomas.

O hospital infantil em que Charlie estava internado em Londres,  Great Ormond Street, declarou que nada mais poderia ser feito por ele, determinando, assim, que os aparelhos que o mantêm vivo sejam desligados a fim de lhe garantir uma morte digna.

Os responsáveis pelo menor, seus pais Chris Gard e Connie Yates, não concordaram  e pretendem retirar o filho do hospital para levá-lo aos Estados Unidos a fim de submetê-lo a uma terapia experimental a ser ministrada por um médico norte-americano, que já concordou em fazê-lo, tendo os pais logrado êxito em arrecadar mais de 1,6 milhão de libras esterlinas para fazer frente ao tratamento a fim de salvaguardar a vida do filho, carne da sua carne.

Como esperar que os pais assistam contemplativamente à morte do próprio filho, um bebê de apenas dez meses, quando há esperança de que a mencionada terapia, para a qual eles já dispõem de recursos, possa salvar-lhe a vida?  Ora, se o direito à conservação da vida constitui direito humano (aquele que todo homem tem em virtude de sua natureza), como o Tribunal Europeu criado para a sua defesa irá ceifar o direito humano absoluto, inegável, irrenunciável, imperativo e evidente do pequeno Charles à tutela desse seu direito?

O triunfo do liberalismo, tão condenado pela Igreja Católica, a coroar o individualismo e o racionalismo levou à positivação de normas jurídicas apartadas da lei natural, culminando no Estado¹ Totalitário.

O aniquilamento da autoridade paterna sobre seus filhos, transferindo a sua tutela para o Estado laico, transformado em “deus”, portanto único legitimado a ditar as regras da sua formação intelectual e moral, e agora até mesmo a decidir se eles vivem ou morrem, insere-se no projeto de destruição da sociedade, eliminando-se os corpos intermediários. Aos genitores, resta o papel secundário de meros expectadores. Serão, todavia, duramente punidos se levarem os filhos para assistir a uma Tourada, se lhes ensinarem o valor das pequenas mortificações, se ousarem puni-los com algumas “palmadas” …

Aos pais garante-se o direito de matar os filhos ainda não nascidos, mas a esses mesmos pais proibe-se o direito de lutar pela vida desses mesmos filhos.

A sutileza satânica reside no fato de que se deve assegurar o direito de Charlie a uma morte digna porque Charlie não é viável, deveria, certamente, na visão do Estado Todo Poderoso, nunca ter nascido. Seus pais são irresponsáveis. Deveriam ter poupado a todos simplesmente abortando Charlie ainda no ventre materno, mas como ousaram garantir o seu direito humano à vida, cabe ao Estado assegurar-se de que um bebê com grandes chances de não sobreviver, seja MORTO. Nisso reside o direito de Charlie.

Tratamentos experimentais devem ser garantidos apenas aos “viáveis”.

O leitor deve ser muito mais solidário com os ovos das tartarugas, objetos de tutela pelo Projeto TAMAR, do que com a vida de Charlie, em relação a qual o projeto estatal visa MATAR.

Que o Deus verdadeiro possa confortar o coração desses pobres pais ao testemunharem o assassinato estatal de seu pequeno filho e que a anunciada morte de Charlie nos leve a refletir sobre as consequências nefastas de um Estado Totalitário como propulsor do aniquilamento da família. A verdadeira Idade das Trevas já se iniciou.

São Pedro e São Paulo, orate pro nobis!

 

1. O termo “Estado” é tomado neste texto em um sentido amplo referente a todo e qualquer poder central com tendência supressórias de corpos intermediários. Não se desconhece, pois, que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos não é, propriamente, órgão de um Estado nacional, mas de uma instituição supraestatal.