POLIAMOR: ENTRE O MAL E O ILEGAL

Poliamor

 

Não faz muito tempo. Na semana seguinte em que resolvi, pela via negativa, uma dúvida registrária de um casal de três pessoas (vulgo “trisal”) que pretendia atribuir eficácia a uma escritura pública de declaração da união estável em que já viviam, o advogado me interpelou: “Mas meus clientes não têm o direito de viver o afeto com o mesmo respeito assegurado aos demais casais, sem que sofram qualquer restrição em sua vontade, pelo simples fato de conviverem numa forma singular de amor?”.

Respondi que, antes de adentrar no assunto, ele entendesse melhor as noções de afeto, amor, dignidade humana e bem comum. Hoje, afeto e amor viraram sinônimos, dignidade humana serve até para justificar “direito ao aborto” e a ideia de bem comum já foi para o ralo na órbita social. E, como resultado disso, paira uma grande confusão, muitas vezes não-intencional, nos modismos em voga que, por tabela, mais cedo ou mais tarde, vão bater nas portas do direito, a fim de exigir uma tutela judicial. Em cena, o poliamor.

É uma tutela de uma realidade que demanda do direito, em termos de resposta, mais do que ele pode dar. Nosso direito não protege as uniões poligâmicas e uma escritura notarial, como aquela citada, que reconhece efeito jurídico de união estável para esse arranjo é ilegal. Pela ordem constitucional (art., 226, §3º) e civil (art.1.723), a monogamia é essencial ao reconhecimento da união estável.

O velho argumento sociologista (“Tais uniões poligâmicas já existem por aí!”) vem à tona, floreado de uma retórica hermenêutica que desconhece, como sugeri ao inconformismo do advogado, o que são o amor, o afeto, a dignidade humana e o bem comum. “Toda forma de amor”, na ótica dessa demanda temerária, desde que amparado pela “vontade de poder” dos envolvidos, deveria gozar da chancela judicial.

O pleito de reconhecimento jurídico da união poligâmica envolve muitos problemas, dos mais elementares, como a bilateralidade do direito e o bem comum, até os mais elaborados, estudados em outros ramos do saber, como a antropologia filosófica e a psicologia. Quando esses dados são escanteados, a criatividade do advogado deixa de militar em favor do brilhantismo e ruma em prol do exotismo.

O direito é uma relação que envolve um débito para com o outro: um indivíduo, um grupo ou toda a sociedade. Eis a bilateralidade já citada. Uma união monogâmica respeita essa dimensão, porque personaliza os filhos, favorece a intensidade de compromisso dos envolvidos entre si e cria sólidas condições para uma reprodução geracional.

Essa justificativa não consiste numa atenta observância de um credo religioso, mas finca suas profundas e nutridas raízes na história da humanidade e na sociologia familiar. Quanto ao bem comum, noção tão antiga quanto a própria filosofia política, seu sentido foi substituído pelo de “interesse geral de caráter instrumental”. Em suma, a mais pura reificação do outro e a união poligâmica é o exemplo mais bem acabado disso em termos de arranjo na intimidade existencial.

Em relação à antropologia e à psicologia, a união poligâmica ignora alguns dados empíricos relevantes. No primeiro caso, num desenho conjugal com mais de duas pessoas, sempre existe a preferida para a satisfação dos desejos sexuais ou a realização de atividades em comum, como cozinhar ou viajar. Assim, todos são instrumentalizados para a saciedade do outro e o indivíduo dominante acaba por escolher um preferido entre os demais. Ao cabo, torna-se uma relação organicamente desigual.

No segundo caso, na cabeça dos indivíduos de um trisal, fica muito difícil distinguir, em seus ânimos interiores, se um modo de agir é baseado efetivamente na vontade ou fica no vai-e-vem das pulsões nascidas da libido ou do tanathos. Em outras palavras, com tanto apelo à mecânica dessas pulsões, resta saber se o indivíduo consegue compreender as motivações existenciais dessas mesmas pulsões.

A chancela judicial da união poliafetiva só presta para a normatização da iniquidade. Na realidade jurídica brasileira, não há espaço para essas uniões, ao menos enquanto o atual regime constitucional e civil permanecer em vigor, baseado na monogamia, único arranjo conjugal que respeita a antropologia, a psicologia, o direito e contribui para o verdadeiro bem comum. Com respeito à divergência, é o que penso.

SUPREMO ATIVISMO

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Atuar juridicamente é sempre interpretar. Por isso, costumo dizer que os juízes são, muito antes de meros “aplicadores” da lei, intérpretes do direito. Obviamente, há interpretações e interpretações. Hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.

Ambas não partem de dois dados bens concretos, isto é, a coisa em si a ser interpretada e o texto da lei dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são manifestações ideológicas desta ou daquela cartilha chanceladas judicialmente.

Foi o que o STF fez ao aceitar a ADPF 442: a partir daquelas versões de interpretação em moda, nossa maior corte resolveu liderar, como locus não institucional, uma discussão sobre o direito de se matar vidas humanas inocentes. Deixou de ser zelador constitucional e virou ditador constitucional.

Sabemos que a maior parte da existência humana é voltada para uma certa práxis. Diariamente, estamos a exercitar a economia da deliberação. Escolhemos isso e não aquilo. Em suma, discriminamos a todo tempo e, algumas vezes, discriminamos injustamente.

O direito, com um saber prático, encerra toda uma atividade existencial que capta e conforma, por sua vez, umas exigências objetivas de justiça, determinando-as aqui e agora. Positivar o direito é estar disposto a conhecer uma verdade prática, inevitavelmente por se fazer, tomada a partir da interpretação da realidade que nos cerca.

O problema dessa tarefa interpretativa está em buscar as chaves de interpretação da realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. Como uma espécie de tributo que o erro dessas chaves presta ao acerto, para que não pareçam terminar num beco sem saída, elas sempre passam a recorrer a artifícios semânticos, procedimentais ou consensuais para intentar a justificação de, sobretudo, realidades que não demandem aprioristicamente uma tutela jurídica ou que portem uma ilicitude moral manifesta.

No caso da ADPF 442, o artificio é o de que “seres humanos não nascidos não são pessoas, mas simples criaturas humanas intraútero”. A CF/88 garante não só a inviolabilidade do direito à vida “extrauterina”, mas do direito à vida intrauterina. Seu artigo 5º não faz diferenciação, porque, para o constituinte originário, todas as vidas importam. É uma cláusula pétrea e nem uma emenda poderia flexibilizá-la ou suprimi-la.

O Código Civil reforça a tutela da vida intrauterina ao estabelecer que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Se a vida é um direito inalienável e os direitos do nascituro são resguardados, à luz da atual ordem jurídica, a vida do feto é protegida por lei.

Menos para as cabeças cujos neurônios estão entupidos de um sociologismo ou de uma ideologia que decreta – tiranicamente – a pena de morte a uma pessoa. O feto é o “novo judeu” e essas cabeças lembram a de um “novo Hitler”: estão todo tempo a se ocupar da “solução final” para a “questão fetal”.

Qualquer alteração no status jurídico do nascituro deve ser feita pela sociedade por meio de seus representantes eleitos para criar e alterar as leis. Se o parlamento tem sido acusado de omissão em relação a alguns temas e a sociedade crê que o aborto seja um deles, cabe aos cidadãos exercer pressão para que aqueles representantes se posicionem sobre a questão: projeto de lei, iniciativa popular ou plebiscito. Como foi na Argentina.

A ADPF 442 deveria ter seu pedido negado de plano para que o tema de fundo fosse tratado pelo parlamento. Mas não foi. Agora, ingressamos no mundo da autocracia da inteligência formada pelas cabeças de um punhado de 11 togados letrados.

Uma Suprema Corte tem muitos papéis, mas rasga seu papel principal quando resolve ingressar no mais pedestre ativismo judicial e reescrever a realidade sem base no texto constitucional e na coisa em si, porque, ao cabo, deixa o cidadão “achado na rua”, abraçado, na própria sorte, aos “entes de razão ideológica”. E a democracia vai parar na sarjeta. Ou na lua. Com respeito à divergência, é o que penso.

 

Todo Poder ao Lumpesinato

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Em decisão recente, o Ministro Barroso, do Supremo Tribunal Federal, resolveu aceitar a legitimidade ativa de uma associação representativa de gays, lésbicas e trangêneros para ajuizar ações de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Na ação em questão, discute-se o direito de que transexuais presos sejam transferidos para presídios femininos e o de presos homossexuais e travestis a um espaço específico dentro de unidades masculinas. Dificilmente questão desta envergadura poderia ser considerada como um “direito fundamental” violado para fins de uma ADPF. Porém, sem que se adentre no mérito da questão, o fato é que a decisão já está levantando debates e merece uma atenção de nossa parte.

 Para os que desconhecem o assunto, esclareço que o rol dos legitimados para tal ação está previsto na Constituição Federal sendo o seguinte: Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Governador de Estado ou do Distrito Federal, Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou (e eis aqui o ponto que nos importa) entidade de classe de âmbito nacional. É justamente sobre essa última figura que a decisão trata.

O centro da questão é que a associação autora da ADPF não é entidade de classe, visto que, por mais que se tente ampliar o conceito do que seja uma “classe”, gays, lésbicas e transgêneros jamais se adequarão a ele. A rigor, seguindo-se a letra da Constituição Federal (e sabemos que a letra dela hoje em dia vale praticamente nada), a associação autora não é parte legítima e a ADPF ajuizada não poderia ser conhecida.

Contudo, o Ministro Barroso argumentou que a missão essencial do Supremo Tribunal Federal é a de “proteger direitos fundamentais” e que a restrição feita pelo constituinte acaba por limitar sua atuação no sentido de bem cumpri-la. Portanto, nada mais natural que o próprio Supremo Tribunal Federal deixe de lado a letra da Constituição Federal para ampliar o rol dos legitimados de forma a permitir uma atuação ainda mais incisiva dos nobres ministros quanto à proteção aos direitos fundamentais do cidadão brasileiro. Além disso, argumenta o ministro, é necessário construir-se um conceito de classe que abarque não apenas grupos ligados por direitos profissionais e econômicos, mas que abranja aqueles que lutam por “direitos fundamentais relacionados à afirmação dignidade, da autonomia, das liberdades, da igualdade e de outros valores essenciais sob o prisma existencial”.

Em outras palavras: é necessário redefinir-se o conceito de classe para abranger grupos que não poderiam ser considerados “classe” em hipótese alguma justamente porque lutam não por interesses específicos mas por interesses os mais genéricos que se possa imaginar.

Haveria muito o que se comentar acerca desta decisão. Penso, por exemplo, não ser exato que a principal missão do Supremo Tribunal Federal seja a de garantir direitos fundamentais com celeridade. Ao contrário, a corte existe precipuamente para proteger e fazer cumprir a Constituição Federal, não para alterá-la sempre que algum de seus membros discorde do constituinte. A defesa dos direitos fundamentais feita pelo Supremo se dá justamente na medida em que a corte protege a Constituição que os prevê, fazendo com que todos a observem. Além disso, no momento político em que vivemos, creio que a decisão, se confirmada em plenário, cria um precedente perigosíssimo. Afinal, em suma, o que se está a fazer é “interpretar” uma limitação constitucional à ação do Supremo Tribunal Federal de forma a erradicar o limite e a ampliar o poder da corte. Em essência, a decisão dá mais poder a todos e a cada um dos ministros do Supremo, e o fato de ser o próprio tribunal a prolatá-la configura um golpe, que, a médio prazo, pode ser mortal, à nossa já capenga divisão entre os poderes.

Mas não é sobre esses pontos que eu desejo tratar (não ao menos nesse artigo). Penso que muitos falarão de tais aspectos e desejo centrar-me em um que, imagino, passará desapercebido mesmo pelos muito mais doutos do que eu: a decisão, de maneira notável, reflete a evolução do pensamento marxista quanto aos agentes da revolução. É precisamente aqui que reside seu potencial mais explosivo.

Segundo Marx, a classe oprimida de seu tempo era formada por trabalhadores. O proletariado era a classe destinada, dada a dialética interna da história na qual acreditava, a assumir o poder e, uma vez assumido, lá permaneceria para sempre. Afinal, os proletários constituíam a “última classe”, a desprovida de todos os meios de produção e, portanto, a única com possibilidade de colocar um fim definitivo à longa sucessão histórica de classes opressoras, sucessão essa que se iniciou quando o homem subjugou a mulher ainda antes da aurora da civilização.

No sistema econômico que ele via, os pobres trabalhadores produziam bens com meios de produção que pertenciam aos burgueses. O trabalho da classe operária é o que infundiria valor em tais bens e os burgueses, vendendo-os e se apropriando do dinheiro da venda, apropriavam-se, em última análise, do trabalho alheio, pagando aos empregados não o que eles mereciam, mas apenas o necessário para que vivessem e se procriassem (o nome “proletariado” não é coisa escolhida ao acaso).

Um mundo deveras terrível e cruel!

Porém, ainda que a ideia tenha sido aceita sem maiores críticas por uma multidão de seguidores por século e meio, tal mundo somente existia na cabeça de Marx. De fato, não é minimamente exata a afirmação de que o trabalho gera valor e, não sendo, não se pode afirmar que o burguês se apropria do trabalho alheio, o que faz ruir o conceito de mais-valia e, com ele, o da própria exploração da classe operária.

Assim, como era de se esperar, fundada numa ideia absurda e completamente fantasiosa, a teoria marxista jamais funcionou e suas previsões jamais se confirmaram. As revoluções comunistas do século XX jamais foram feitas por operários e, a bem da verdade, onde havia um proletariado propriamente dito, o comunismo (ao menos quanto à sua teoria econômica) nunca conseguiu convencer muita gente. Após a segunda guerra, nas principais nações ocidentais, a classe proletária gozava de tal acúmulo de riquezas que, definitivamente, não se poderia esperar dela nenhum impulso revolucionário.

Algo precisava ser feito para manter a marcha da revolução e a máquina dialética da história em movimento. Pensadores marxistas, então, esforçaram-se por encontrar uma nova pedra angular da revolução; e foram buscar uma que fora rejeitada pelo próprio Marx, o pedreiro-mor do comunismo.

De fato, para além do proletariado, havia um outro grupo de pessoas, que Marx aparentemente desprezava: o lumpesinato (lumpenproletariat), que, a rigor, não era considerado como classe por não se dedicar a nenhuma atividade produtiva. Trata-se daquelas pessoas, aparentemente presentes em qualquer agrupamento humano, que vivem à margem da sociedade: prostitutas, andarilhos, criminosos, bêbados, etc..

O lumpesinato não se encaixava muito bem na teoria marxista. Marx via uma sucessão histórica de classes opressoras (homens, senhores de escravos, senhores feudais, burgueses) e oprimidas (mulheres, escravos, servos da gleba, operários), em constante movimento dialético. Já o lumpesinato sempre esteve presente por aí, aparentemente alheio às revoluções da história: nem explorado (visto que não produz nada) nem explorador. Uma subclasse; que, exatamente por isso, não era digna sequer de piedade.

Pois bem.

A partir da década de sessenta do século passado, a nova intelectualidade marxista deixou de lado a ideia do proletariado como classe propulsora da revolução (àquela altura, nada indicava que um dia os proletários verdadeiramente fariam uma revolução) para focar sua atenção justamente no lumpesinato. Os operários estavam vivendo muito bem no mundo capitalista; mas o lumpenproletariat continuava sendo o que sempre fora desde a origem do mundo: um grupo à margem da sociedade e que, portanto, não tinha razões para nutrir nenhuma simpatia por ela.

E, não sendo uma classe econômica, não produzindo o que quer que seja, por definição o lumpesinato não poderia ser pintado como um grupo de explorados. Somente gente economicamente produtiva pode ser explorada. Quem nada produz, nada tem sequer para perder em favor das classes dominantes. E, não sendo identificáveis como explorados, ninguém pode também ser apontado como explorador deles.

O discurso, então, mudou. Deixou-se de lado o antagonismo de classes para centrar-se a crítica das sociedades ocidentais no fato de que sempre se permitiu que o lumpesinato vivesse à margem delas (quando o leitor ouvir novamente a expressão “inclusão social” já saberá do que se trata). Pessoas soltas, sem interesses econômicos a uni-las, e que não constituíam classes, então, passaram a ser tratadas como credoras de toda a sociedade, que, supostamente, nunca olhou por elas ou que não olhou de forma satisfatória.

Com um simples giro na doutrina marxista, erigiu-se um novo grupo de excluídos; um grupo com combustível de insatisfação grande o suficiente para permitir que a máquina de destruição do Ocidente seguisse rodando. Com a vantagem de que, não sendo propriamente uma classe de explorados, não havia também uma classe de exploradores: toda a sociedade podia ser pintada como devedora de uma dívida social para com grupos que, a rigor, jamais deram grandes contribuições para o seu desenvolvimento e que, em alguns casos, foram mesmo um entrave para que tal desenvolvimento acontecesse.

Um milagre de retórica provavelmente sem paralelo na história humana!

Bem, se o leitor está me acompanhando, já sabe aonde eu quero chegar. O constituinte, ao estabelecer os legitimados para propor uma ADPF (e, portanto, para ter acesso direto  e de direito à mais alta corte de justiça do país), fez uma condescendência, comum à social democracia da época, ao marxismo clássico ao permitir que entidades representativas de classes tivessem legitimada para tanto.[1]

Em sua decisão, o Ministro Barroso parece pretender deixar para trás de vez essa noção derivada do marxismo clássico para substituí-la pela de antagonismo social forjada pelos pensadores da década de sessenta do século passado: a novel “classe” a ser protegida é, na verdade, dentro do marxismo tradicional, uma subclasse de pessoas. Daí a necessidade de se reconstruir o conceito de classe para permitir que ele abarque, agora, as subclasses do antigo lumpesinato, com suas demandas intermináveis.

Ao abrir o acesso direto ao Supremo Tribunal Federal a grupos que não se amoldam ao conceito de “classe”, abre-se, igualmente, acesso ao antigo lumpesinato. E, assim, abre -se também o caminho para que as tais “dívidas sociais”, que ele traz consigo, sejam celeremente apresentadas para que todos nós as paguemos, dívidas sociais essas que,  doravante, poderão ganhar o status de “direitos fundamentais”.

Não é certo que o Ministro Barroso, ao decidir como decidiu, tivesse o alcance do teor revolucionário de sua decisão. Porém, o fato é de que, tenha ou não havido tal alcance, a decisão trará, como efeito necessário e incontornável, a acensão futura das demandas do lumpesinato ao STF, com o esgarçamento completo do tecido social brasileiro.

No fundo, é precisamente esse o risco inerente à decisão tomada, pelo que esperamos que, no plenário, o STF a reverta.

[1] Não nos esqueçamos que esse mesmo constituinte, ao moldar as estruturas da Justiça do Trabalho, encampou a figura do juiz “classista” como forma de equilibrar um suposto conflito de classes que então imaginava ser latente em nossa sociedade. O conceito de luta de classes era ainda, portanto, claramente caro quando da Constituição Federal.

ROE VERSUS WADE – SERÁ O FIM?

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(fonte da imagem: https://www.quotemaster.org/Roe+V+Wade)

No dia 27 de junho do corrente ano, Anthony Kennedy, Juiz Associado da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, prestes a completar 82 anos,  anunciou sua aposentadoria após trinta anos em que lá serviu. A Suprema Corte Americana constitui o mais alto tribunal federal daquele país, sendo composta por nove membros.

Assim, abre-se ao presidente Donald Trump a oportunidade de indicar o futuro Juiz Associado.

O leitor pode se perguntar por que a nomeação de um Juiz Associado daquela Suprema Corte pode interessar a nós, brasileiros.

Por primeiro, faz-se mister compreender que a agenda globalista que vai se impondo não apenas em nosso meio, mas em escala mundial, notadamente em matérias que envolvem a família, como união homoafetiva, gênero e aborto teve importante avanço com a chancela da Suprema Corte Americana.

Sendo os Estados Unidos da América o país mais rico e poderoso do mundo, onde, desde 1970 já foram realizados 45,151,389 abortos (https://en.wikipedia.org/wiki/Abortion_statistics_in_the_United_States; acesso em 06/07/2018), não se pode olvidar do impacto que eventual política restritiva a essa prática de assassinato de inocentes causará no mundo.

Há de se ressaltar que pende de julgamento, aqui no Brasil, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 ajuizada pelo PSOL. Com ela, visa-se a ampla liberação da prática abortiva pela via judicial com a exclusão da incidência dos arts. 124 e 126 do Código Penal nos casos de interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas. A ADPF em questão já foi objeto de artigos anteriores neste periódico, inclusive.

O ano de 1970 é emblemático para os militantes da causa “pró aborto”. Foi nesse ano que Norma L. McCorvey (“Jane Roe“) ajuizou demanda no Condado de Dallas (Texas) pelo direito de abortar sob a alegação de que sua  gravidez era resultado de uma violação (estupro), desafiando, assim, a constitucionalidade de uma Lei do Estado do Texas, segundo a qual a prática de aborto era crime, a não ser que ele fosse praticado com o claro propósito de salvaguardar a vida da gestante.

Houve diversos recursos e a demanda chegou à Suprema Corte norte-americana, a qual, em 1973, decidiu que as Leis estaduais sobre aborto, que permitiam a interrupção da gravidez apenas com o intuito de salvar a vida da gestante, eram inconstitucionais, por violação ao disposto na Emenda nº 14 à Constituição norte-americana, assegurando-se o direito da mulher de interromper a gravidez, estabelecendo um critério trimestral para definir o momento em que a gestação poderia ser interrompida.

Em síntese, no caso Roe v. Wade (1973), a Suprema Corte norte-americana reconheceu o direito ao aborto por solicitação da gestante, como consequência do direito à privacidade protegido pela Emenda nº 14 à Constituição norte-americana. Ou seja, o direito ao aborto passou a ser um direito constitucional, um autêntico desdobramento do direito à liberdade individual da mulher de poder dispor a respeito de seu próprio corpo.

Posteriormente, naquele mesmo ano (1973), no caso Doe versus Bolton, referida Corte estendeu a permissão de abortar para qualquer momento da gestação e a consequência catastrófica foi a revogação da maior parte das leis contrárias ao aborto aprovadas em outros Estados.

Interessante ressaltar que “Jane Roe” , na década de 90, abandonou a antiga militância e admitiu ter inventado a história sustentada em seu processo e, em 2003, pediu a reabertura de Roe versus Wade, sem sucesso.

No Brasil, em julgamento ocorrido no dia  29 de novembro de 2016, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, com o voto líder do Ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, nos autos do HC 124.306-RJ, que versava um caso envolvendo funcionários e médicos de uma clínica de aborto em Duque de Caxias (RJ) com prisão preventiva decretada, decidiu descriminalizar o aborto realizado durante o primeiro trimestre de gestação – independentemente do motivo que leve a mulher a interromper a gravidez.

No acórdão em tela, a semelhança da Corte Suprema norte-americana, afirmou-se que a criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: “os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.

Em que pese o Juiz Associado Anthony Kennedy ter sido nomeado apenas em 18 de fevereiro de 1988 pelo Presidente Ronald Regan , fato é que numa Corte polarizada como a norte-americana, o Juiz, de perfil moderado, vinha sendo o voto de minerva, tendo participação decisiva na preservação do precedente do  caso Roe v. Wade.

Com a sua aposentadoria e a promessa eleitoral do Presidente Donald Trump de nomear um juiz “pró-vida”, como parece ter feito ao indicar o Juiz Federal da Corte de Apelações em Washington, Brett M. Kavanaugh, 53 anos, católico, temem os ativistas pró-aborto que a nova configuração da Suprema Corte passe a defender novas restrições ao que chamam “direito constitucional das mulheres ao aborto legal”. A ONG norte-americana Planned Parenthood já traz em sua página oficial “Protect Abortion at Supreme Court” – Send your senators a message now” (https://www.plannedparenthood.org/ acesso em 10/07/2018). Ou seja, já estão conclamando os abortistas a lutar pela preservação do aborto na Suprema Corte, concitando-os a pressionar seus senadores (como no Brasil o indicado deve ser referendado pelo Senado).

O indicado, de perfil conservador, tem uma única incursão na arena do aborto, em caso que envolvia uma menor estrangeira grávida e não-acompanhada, sob custódia do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Na ocasião, Kavanaugh posicionou-se aparentemente contra o direito ao aborto ao criticar a atuação de seus pares que, segundo ele, inventaram “um princípio constitucional tão novo quanto errado: um novo direito para menores imigrantes ilegais detidos pelo Governo dos EUA de obter aborto imediato via pleito individual.” (https://www.nationalreview.com/bench-memos/brett-kavanaugh-trump-supreme-court-nominee/) Ele mesmo não se posicionou, de forma clara, contrariamente ao decidido no precedente de Woe v. Rade (daí ser impossível, por enquanto, ter alguma certeza sobre o que ele fará na Suprema Corte quanto a isso). O que ele fez foi prolatar decisão que, se seguida fosse, acabaria por impedir que a menor em questão praticasse o aborto uma vez que ela, quando efetivamente pudesse fazê-lo, já estaria com 18 semanas de gravidez.

Em razão da forte influência americana e do grande apoio financeiro que entidades como a Planned Parenthood dá a campanhas pró-aborto em todo o mundo, a prevalecer o cenário traçado por esses grupos, haverá um contra-ataque à matança dos inocentes, que poderá vir a influenciar outras nações.

Isso se dará num momento crucial para nós brasileiros em razão do julgamento da mencionada ADPF 442 que, caso julgada procedente, traduzirá a vitória traçada por aqueles que enxergam no Poder Judiciário o meio adequado para implementar agendas que vão de encontro ao anseio da maioria da população e que atendem a uma agenda globalista pronta a desmoronar com os pilares basilares da civilização ocidental.

O que está por trás desta manobra é a usurpação de poder que vem se impondo, deslocando propositalmente o locus da discussão das casas legislativas para o âmbito do Poder Judiciário, onde, em razão do ativismo judicial, sob a falaciosa alegação de omissão do poder  legislativo, o aborto, agora sobre a novel roupagem de “direito humano” de poder a mulher dispor de seu corpo ao seu bel prazer, parece se sobrepor ao direito a vida dos inocentes.

NOVO GIRO NA SUPREMA CORTE

 

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Um novo “juiz associado” foi indicado para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Toda vez que isso acontece, o mundo jurídico dá uma pausa na correria forense e assiste, com algum encanto e expectativa, ao processo sucessório desencadeado pelo “juiz associado” que deixou o tribunal bicentenário.

John Adams, na linha de Platão, descreveu a república como “um governo de leis, não de homens”. James Madison afirmou que “num governo republicano, o Poder Legislativo naturalmente predomina”. Quanto ao Poder Judiciário, Alexander Hamilton pensava que seria “politicamente inofensivo” e o “menos poderoso”, porque “o Poder Executivo possui as baionetas, o Poder Legislativo detém as cordas da bolsa e o Poder Judiciário somente o juízo”. Dito de outro modo, para os pais fundadores da América, o parlamento era o mais importante dos três poderes.

A Suprema Corte, para os pais fundadores, atuaria estritamente dentro da Constituição, cujos parâmetros seriam delineados pelos representantes do povo no congresso. Contudo, os pais fundadores não previram que tal corte assumiria uma relevância ímpar e bem maior do que aquela inicialmente idealizada: os nove juízes não eleitos protagonizariam, em muitas pautas, o papel de arbitragem social destinado aos 535 parlamentares eleitos que compõem as duas câmaras congressuais.

Como exemplo disso, tivemos Roe vs. Wade e Obergefell vs. Hodges, decisões que, respectivamente, legalizaram o aborto e o casamento gay em âmbito nacional e que, na prática, criaram legislação federal para questões sociais outrora normatizadas pelo congresso. Para entender esse processo de virilização da Suprema Corte, é preciso compreender, em poucas linhas, o problema das cosmovisões hermenêuticas do direito anglo-saxão.

Os “textualistas” entendem que uma constituição deve ser interpretada a partir do texto escrito e conforme as intenções do legislador originário. Os “não-textualistas” ou “pragmatistas”, por sua vez, entendem que uma constituição é um documento vivo, um corpo que cresce e muda com o tempo para atender às necessidades de uma sociedade cambiante, sem a necessidade de ela ser modificada por meio do devido processo legislativo.

Uma das principais implicações dessa disparidade de enfoques refere-se ao papel da Suprema Corte a respeito dos direitos. Para os “textualistas”, esse tribunal não pode fazer mais do que reconhecer os direitos já consagrados constitucionalmente. Para os “pragmatistas”, esse mesmo tribunal pode manusear seu poder de interpretação para reconhecer novos direitos ali onde o texto constitucional guarda silêncio, adaptando a norma às mudanças da realidade social, algo que, para os “textualistas”, é de competência exclusiva do parlamento.

Aqui reside o problema. Quando o texto legal é interpretado a despeito de sua letra e a partir de critérios subjetivos de hermenêutica, o poder de legislar – prerrogativa parlamentar – é transferido para os juízes. Independentemente do resultado produzido, bom ou ruim, a visão dos “pragmatistas” abre um perigoso precedente em que leis, outrora rejeitadas nas urnas ou no Poder Legislativo, sejam instauradas por meio do Poder Judiciário. É o ativismo judicial e sua ascensão corresponde ao declínio da democracia.

O novo “juiz associado” já declarou seu compromisso com o texto constitucional e com o sentido a ele dado pelos pais fundadores de sua nação. Uma sábia atitude, cujo efeito será o de provocar um giro institucional na Suprema Corte, onde a maioria terá um perfil “textualista”.

Se eu fosse ele, meu discurso de posse seria curto, mas denso: “Minha filosofia judicial é simples. O juiz precisa ser imparcial e visar ao justo concreto. O juiz deve julgar a partir do texto da lei, informado pela tradição jurídica, pela regra do precedente e pelos sinais históricos dos tempos. Em suma, deve interpretar a lei e não criar a lei. Eu venero a Constituição e acredito que um Judiciário independente é a joia da coroa de nossa república democrática, assentada nos valores perenes da ordem, da justiça e da liberdade. Em cada caso, manterei minha mente aberta e sempre me esforçarei para preservar nossa Constituição e o império do direito em nossa nação. Muito obrigado.”. Com respeito à divergência, é o que penso.