
Em nossos dois primeiros artigos, exploramos um pouco dois conceitos estranhos que povoam o pensamento de Dworkin: o juiz Hércules e a interpretação criativa. Ou, se o leitor preferir: o logos do direito e o seu poder de fiat. Agora, queremos dar um passo adiante par fechar o raciocínio, explorando as consequências que advém de tais conceitos.
Na melhor tradição ocidental, a lei era vista como um ato da razão. O legislador, aplicando sua razão a situações reais, extraia uma norma que continha, em si, a justa solução para a generalidade dos casos. Porém, em se tratando de razão prática, quanto mais se desce do geral para o particular, mais exceções se vão encontrando. Assim, o juiz, ao julgar, na maior parte das vezes, limita-se a aplicar a lei, mas, se o caso particular o justificar, pode excepcionar essa aplicação e dar a ele solução diversa, mas que realiza a mesma justiça que seria desejada pelo legislador caso tivesse previsto aquela situação singular.
No sistema de Dworkin, há uma mudança radical. A lei, de plano, torna-se apenas um elemento a ser levado em conta pelo julgador, devendo sempre ser contraposta com os princípios fundadores de uma determinada sociedade, com a jurisprudência e, a bem da verdade, com sua própria evolução histórica. Além disso, o entendimento do texto da lei é aberto, podendo o magistrado inserir nele significados que o legislador não previu ou não quis prever. E, a rigor, podendo mesmo inserir significados que o legislador expressamente quis evitar.
Dessa forma, a lei perde quase que totalmente seu caráter vinculante e, ao menos nos hard cases, transforma-se numa mera sugestão dada pelo legislador, uma dica, que o juiz pode ou não acatar. E se o juiz opta por aplicá-la, no fundo, ele o faz por estar convencido de que a norma prevista é, ao cabo de tudo, a solução mais coerente a ser dada ao caso concreto, e não porque esteja, efetivamente, obrigado a tanto. O legislador, assim perde sua importância na vida política da sociedade, sendo seu lugar ocupado pela magistratura.
Uma segunda consequência: se o juiz cria o direito a ser aplicado, e se, necessariamente, ele o faz ao julgar um caso concreto, então, nesse arranjo, o direito torna-se posterior ao fato. No fundo, em nossas relações jurídicas, jamais temos a certeza de estar agindo em conformidade com o direito ou contrariamente a ele, porque, a rigor, o direito que as vai reger ainda não existe. Passará a existir apenas quando Hércules se manifestar, o que nos joga a todos num mar de insegurança jurídica, coisa que, aliás, é perceptível mesmo aos brasileiros mais simples.
É verdade que, para nós, magistrados, a coisa toda é muito tentadora. Nossa importância, nessa visão de direito, cresce enormemente. O protagonismo passa a ser nosso. O problema é que a quebra do status vinculante da lei e a atomização dos atores com poder de criar o direito leva a uma situação quase de anomia e, portanto, de imprevisibilidade absoluta. E nenhuma sociedade pode sobreviver ao caos jurídico que daí decorre. Cedo ou tarde, virá alguma reação e ninguém pode prever a qual lugar exatamente o Poder Judiciário será relegado quando ela vier. O que hoje é atrativo, amanhã pode se revelar, para o próprio Poder Judiciário, simplesmente catastrófico .
Melhor, então, voltarmos à visão clássica. E, como mera ilustração, cito um trecho da Suma Teológica:
É melhor que todas as coisas se ordenem por lei do que deixar ao arbítrio dos juízes. E isso por três razões: Em primeiro lugar, porque é mais fácil achar poucos sábios, que bastem para estabelecer leis retas que muitos, que seriam requeridos para julgar retamente casa caso. Em segundo, porque aqueles que estabelecem as leis, já de muito tempo consideram o que deve ser estabelecido por leis, mas os juízos sob fatos singulares fazem-se a partir de casos subitamente aparecidos. Mais facilmente um homem pode ver o que é reto a partir da consideração de muitos casos do que a partir de um fato único. Em terceiro lugar, porque os legisladores julgam no universal e sobre coisas futuras, mas os homens que presidem aos julgamentos julgam sobre coisas presentes, em relação às quais são afetados por amor, por ódio ou por alguma cobiça, e assim, se deprava o julgamento.
Uma vez que a justiça viva do juiz não se encontra em muitos e é flexível, assim foi necessário que, em todos os casos em que era possível, a lei determinasse o que devia ser julgado, e deixasse pouquíssimas coisas ao arbítrio dos homens.[1]
Santo Tomás parece ter escrito esse texto para rebater as excentricidades de Dworkin… com setecentos anos de antecedência. O que é uma medida razoável para que tenhamos uma ideia da superioridade intelectual de um sobre o outro.
[1] Suma Teológica, I Secção da II Parte – questão 95, artigo segundi.