A Pedra Rejeitada

Anthony_van_Dyck_-_Suffer_Little_Children_to_Come_Unto_Me,_c._1618–20

 

Eu contava três anos incompletos quando meu pai decidiu comprar um pequeno monte de areia para que eu pudesse brincar no terreno adjacente à nossa casa.

Não havia muros nem grades.

Basta saber que, naquele tempo, criança podia se esbaldar em qualquer local que lhe parecesse um “playground”, ainda que assim se possa chamar um montinho de areia misturada com terra. Não haveria bronca da mãe, tampouco medo de infecções.

E ali, naquela pequena elevação que para mim parecia uma espécie de montanha, ou um “monte”, eu passava horas a brincar, sei lá do que.

Ocorre que, certo dia, conta minha mãe – pois minha memória não chega a tanto –, encontrei, na areia, uma pequena pedra, de formato irregular, mas muito lisa, cor de grafite, quase preta, pouco maior do que uma ficha telefônica (muitos já não a conheceram).

Conta-se que levei o pedregulho à minha mãe, mostrei-lhe e disse:  – “Jesus”.

Minha mãe ficou estupefata e, pensando que não havia compreendido, perguntou o que eu disse. – “Jesus”. (Certamente não ocorreu exatamente dessa forma, mas não deve ter sido muito diferente…)

Naquele dia, mamãe guardou a pequena pedra como lembrança, talvez um tanto supersticiosa, mas não menos respeitosa, e ela então iria conviver conosco por muito tempo: minha pedrinha Jesus.

Durante uma determinada época, da infância à pré-adolescência, eu a carregava naquelas carteiras de poliéster, cheias de pequenos fechos que pareciam compartimentos secretos. Minha pedrinha estava sempre lá, convivendo com as poucas moedas. Nunca saiu de lá.

Até que um dia me deram outra carteira. E Jesus já não cabia. Era de couro, e tinha algumas pequenas cédulas de alguma moeda que logo cairia em desuso.

Eu crescia, e a pedrinha solitária não me fazia companhia; fora transferida, sem cerimônias, para outro local, talvez a gaveta de meu criado-mudo, não me lembro. Ficou lá, esquecida.

Enquanto isso, fora da carteira, o mundo crescia ao meu redor, e eu crescia junto. A casa gigante já não era grande. A caminhada era substituída pela bicicleta; depois, pelo automóvel de meu pai. E meu monte de areia (“o Monte”) tinha cedido espaço à casa da vizinha que fazia barulho.

E onde estava a pedrinha Jesus? Sei lá…

Da cidade pequena, à faculdade. Depois, a cidade grande, conquistas, desafios, pequenas derrotas e grandes vitórias, e eu já não me lembrava mais da pedra.

– “Ah!… a pedra…”

Realmente, a pedra havia sumido. Creio estar certo quando penso que minha mãe a havia guardado, e tentou me entregar, mas eu teria dado de ombros.

– “É só uma pedra.”

E eis que a vida adulta me afastara da pedra pequena e lisa e me jogara em outros caminhos cheios de outras pedras… – que me perdoem pelo trocadilho.

Raramente tornava a me lembrar da tal pedrinha, e, quando ela me vinha à mente, de novo, eu, adulto, sabichão, suprassumo da racionalidade, cético, “inteligente”, pouco me importava. “

– É só uma pedra!”

O tempo passou, as coisas mudaram; eu mudei e me mudei – e várias vezes (nem me lembrem dos caminhões de mudança…).

Até que, certo dia, lendo aquele que é o livro mais vendido do mundo, me deparo com a seguinte passagem:

Apresentaram-Lhe umas criancinhas para que as tocasse. Mas os discípulos ralhavam com elas. Quando Jesus advertiu, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a Mim as criancinhas; não as estorveis, porque dos que são como elas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele. E, estreitando-as nos braços, abençoava-as, impondo-lhes as mãos.” (Mc 10, 8-16)

E neste momento, depois de muitos anos, eu me dei conta de que havia perdido minha grande Pedra, não um cascalho comum, apesar da beleza simples e perfeita, mas “A Minha Pedra”, aquela que eu, sem entender o que fazia, chamei de Jesus.

– “Não era apenas uma pedra…”

A partir de então, como que saindo de meu corpo, pude ver-me já homem feito, cheio de certezas e convicções, ajoelhado no Monte, cavando, procurando a minha Pedra.

Eu não sabia que era ela que faltava. A minha Pedra.

Na realidade, eu nunca a esquecera… Onde ela está?

Foi aí que eu entendi.

Minha Pedra, sem eu saber, tinha sido batizada com o nome dAquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida, que veio ao mundo me salvar, deu a vida por mim.

E assim como Ele, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, se tornou pequeno e frágil na gruta em Belém, escondido na estrebaria como uma pedra se esconde na areia,  assim era a Pedra que recebeu seu Nome: pequena, simples, mas belíssima, perfeita, única, porque eu a olhava com os olhos de uma criança de três anos.

Não sei por que a chamei de Jesus.

Mas era minha, e a guardava com todo zelo, amor e carinho, talvez com o mesmo carinho, amor e devoção com que os pastores foram ter com aquela Criança na manjedoura.

Por onde anda minha pedra?… Não sei. Talvez minha mãe a tenha guardado. O mais certo é que a tenhamos perdido.

Mas hoje eu sei onde encontrar a verdadeira Pedra, cujo nome é Santo, nascido da Mulher que haverá de ser chamada de Bem-aventurada por todas as gerações, filho adotivo de José, o Carpinteiro, nosso pai e senhor.

Logo comemora-se o nascimento dEle.

E, nos próximos dias, quando Ele nascer na noite fria de Belém, escondido de todos, frágil, envolto em panos, aconchegado nos braços de Santa Maria e seu Esposo, que nós todos, tal qual crianças que remexem na areia, encontremos, na simplicidade da manjedoura, o verdadeiro Salvador, o Rei dos Reis: Jesus Cristo.

Que sejamos como crianças simples que se deliciam quando encontram uma pedra.

Porque só assim, com a inocência de uma criança, seremos colocados diante dEle, para seu agrado, e herdaremos o Céu.

Chamou ele um menino, pô-lo no meio deles e disse: Em verdade vos digo que, se não voltardes a ser como meninos, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 18, 3).

Feliz Natal!

Juventude, Condução e Rumos

Vaso sanitário de John Lennon
Fonte da imagem: https://oglobo.globo.com/cultura/vaso-sanitario-de-john-lennon-vendido-por-26-mil-em-leilao-2959279

 

 

Numa dessas manhãs, pedalava ao redor da Lagoa ouvindo a voz operística do Bruce Dickinson. O vento cortava a alma, porque o sol ainda não tinha levantado, mas a disposição de muitos já estava de pé, pondo-se a marchar na minha contramão de direção.

Gosto muito desse exercício matinal. Alia esforço físico com distanciamento da realidade e é vivida mais intensamente nos meses em que não há aulas, porque, nesse horário do dia, invariavelmente estou levando os filhos para a escola.

Nesses momentos, a reflexão costuma fazer-me companhia, sempre tirada a partir da observação dos rostos que cruzam com o meu ao longo das voltas que vão sendo vencidas até que o cansaço fale mais alto. Nesses rostos anônimos, sempre vejo inúmeras faces de alegria, tristeza, preocupação ou tédio. Algumas cabeças, ora empinadas, ora cabisbaixas e outras plugadas ao som da música ou ao som do silêncio. E a minha cabeça em ritmo de diálogo com todas essas outras.

Naquela manhã, chamou-me atenção um grupo de senhoras que caminhava acompanhado de supostos netos, recém-egressos na juventude, porque nesse horário do dia, esses seres, em férias, costumam estar imóveis e acompanhados de travesseiros e cobertores. Ao olhar para aquela cena, lembrei-me que os jovens são sempre capazes de nos surpreender. Para o bem ou para o mal: vai depender do grau de enamoramento de seu coração.

Hoje, é preciso estar atento para os anseios e as perspectivas que a realidade descortina para a juventude, porque daí devemos apontar um modelo ético de ser humano e de sociedade coerente com nossa natureza. Não estou aqui a repetir a chavão de uma certa mentalidade decrépita, tanto mais decrépita, em regra, quanto mais longe se situa de seu passado juvenil e que fica enfatizando as limitações e os fracassos da cultura atual.

É preciso abrir espaços de interlocução com os adolescentes, participar de seus ambientes, dialogar com suas representações, compreender suas expectativas, mas, sobretudo, dar rumo para que eles conduzam seus projetos de vida. Porque, quando somos jovens, costumamos pensar nas pessoas que amamos e admiramos e que, por isso, gostaríamos de imitar.

Pode ser uma pessoa da vida quotidiana ou um sujeito famoso. Vivemos numa cultura da celebridade e a juventude é, muitas vezes, encorajada a ter figuras do mundo dos esportes ou do espetáculo como modelos de vida. Devemos aproveitar essas ocasiões e, ao invés de dizer que esse não presta ou essa é assanhada demais, devemos submetê-los às perguntas cruciais: quais são as qualidades que esses modelos possuem e que você gostaria de possuir em maior medida? Que espécie de pessoa realmente você gostaria de se tornar?

Ouviremos respostas nos mais diversos sentidos, mas a maioria delas passará por rios de dinheiro ou por uma alguma espécie de vanguarda espetacular numa dada atividade profissional. Ter dinheiro torna possível ser generoso e fazer o bem no mundo. Entretanto, só isso não é suficiente para tornar uma pessoa feliz. Ser grandemente dotado numa profissão é algo positivo. Poderá tornar-nos famosos, mas isso não é sinônimo de felicidade.

A busca da mimese de uma celebridade é, no fundo, a busca da felicidade que o jovem anseia tão intensamente nessa fase da vida. No entanto, uma das grandes tragédias deste mundo é que muitos a procuram, mas não conseguem encontrá-la, pois a buscam nos lugares errados. Os sucessos mundanos não satisfazem um coração enamorado, porque ele foi feito para a transcendência e a transcendência é a porta de nossa alma que abre somente para fora.

Paul Johnson, certa vez, disse que a adoração que os jovens dedicam às celebridades é uma corruptela da espécie de adoração que os nossos antepassados dedicavam aos santos, beatos e outros tipos de aureolados. A afirmação é tão certeira que os modernos “peregrinos” imitam os antigos na busca de uma relíquia da celebridade amada, ressalvado o abismo axiológico particular entre umas e outras.

Recentemente, o vaso sanitário do John Lennon foi a leilão pelo lance mínimo de 9.500 libras. Ontem, um pedaço de tecido. Hoje, uma privada. Amanhã, quem sabe, a língua da Lady Gaga conservada num vidro de formol. Não sei. Só sei que, além de condições materiais decentes, devemos oferecer aos jovens modelos de imitação que os conduzam a um horizonte de vida autêntico. Quem sabe começando por nós mesmos, os pais, por meio de um esforço diário de exemplo, resgatando, como dizia o cantor na minha pedalada, a juventude que existe dentro de nós. Com respeito à divergência, é o que penso.