O Que Está Faltando no Debate Sobre o Projeto “Escola Sem Partido”?

doutrinacao
http://rodrigoconstantino.com/artigos/projeto-escola-sem-partido-e-apresentado-no-parana/

 

Atualmente, o debate acerca do projeto “Escola Sem Partido” está bastante acalorado. Há defensores de ambos os lados, tanto do daqueles que querem a aprovação do projeto (cujo pano de fundo é resgatar, minimamente, a imparcialidade do Estado em matéria de educação) quanto do daqueles que querem sua rejeição alegando que fere a liberdade de expressão e o direito de liberdade de cátedra.

Não tenho a intenção de discutir o projeto de lei neste pequeno artigo. Nem tenho a intenção de analisar (dentro das minhas parcas e porcas capacidades) os argumentos de ambos os lados, mesmo porque, basta olhar quem está trabalhando pela rejeição do projeto para que se possa ter certeza de ser ele, no mínimo, uma boa ideia.

O que me animou a escrever este artigo é, antes, a percepção de que parece estar faltando algo neste debato todo. Algo que não lhe é periférico, mas que, ao contrário, é a raison d’etre da escola obrigatória (pública ou não) e do sistema educacional moderno.

O ponto faltante é o seguinte: o projeto visa uma escola ideologicamente neutra, porém a escola obrigatória existe, justamente, para o controle ideológico das futuras gerações. E, uma vez que ele sequer parece perceber este fato, está destinado a não gerar os frutos que pretendem e a malograr no alcance de seu intento.

Sei que a afirmação destacada acima é forte.

Sei que, num primeiro momento, é difícil de acreditar nela.

Sei que os pais, quando matriculam seus filhos nas escolas (públicas ou privadas), querem, de um lado, que eles se preparem para uma profissão digna que lhes permita viver bem (“preparação para o mercado de trabalho”) e, de outro, que, adquirindo um mínimo de conhecimento, transformem-se em pessoas capazes de pensar por si mesmas e de analisar o mundo que as cerca (“preparação para a vida”).

Sei que muitos professores realmente fazem o seu melhor para educar nossas crianças e para verdadeiramente transmitir-lhes conhecimentos, sem querer controlá-los ideologicamente.

Mas, para que o leitor tenha uma ideia do que efetivamente representa a escola obrigatória, Fustel de Coulanges, em seu mais do que clássico livro “A Cidade Antiga”, lecionou:

A educação, entre os gregos, estava longe de ser livre. Pelo contrário, não havia nada em que o Estado se quisesse mostrar mais poderoso. Em Esparta, o pai não tinha nenhum direito sobre a educação da criança. Parece que a lei era menos rigorosa em Atenas, ainda que a cidade exigisse que a educação fosse comum, e ministrada por mestres escolhidos pelo Estado. Aristófanes, em um trecho eloqüente, mostra-nos as crianças de Atenas dirigindo-se à escola; em ordem, distribuídas de acordo com os bairros, as crianças caminham em filas, na chuva, na neve ou ao sol; já parecem compreender que estão cumprindo um dever cívico. O Estado queria dirigir sozinho a educação, e Platão diz o motivo dessa exigência: “Os pais não devem ser livres de mandar ou não os filhos aos mestres escolhidos pela cidade, porque as crianças pertencem menos aos pais que à cidade.” — O Estado considerava o corpo e a alma de cada cidadão como propriedade sua; por isso queria moldar esse corpo e essa alma de modo a tirar o melhor partido. Ensinava-lhe ginástica, porque o corpo do homem era uma arma para a cidade, e era necessário que essa arma fosse tão forte e dócil quanto possível. Ensinava-lhe também cânticos religiosos, hinos, danças sagradas, porque esse conhecimento era necessário para a boa execução dos sacrifícios e festas da cidade. Reconhecia-se ao Estado o direito de impedir que houvesse um ensino livre ao lado do seu. Atenas, certa vez, promulgou uma lei que proibia instruir os jovens sem autorização dos magistrados, e outra que proibia especialmente o ensino da filosofia.”[1]

Vê-se, assim, que a tática é antiga: o Estado obriga os pais a matricular seus filhos em escolas exatamente para controlar a educação deles, controlando, assim, o que devem crer e o que devem pensar.

Os antigos já faziam isso.

E os contemporâneos continuam fazendo.

Nesse sentido, há um discurso, que poucos conhecem, proferido em 25 de Maio de 1.929, no qual uma notável figura política do século passado assim se expressou:

“Dizer que a educação diz respeito à família, é afirmar algo fora da realidade contemporânea. A família moderna, sitiada pelas necessidades de carácter econômico, assediada diariamente pela luta pela vida, não é capaz de instruir ninguém. Só o Estado, com os seus meios de todos os tipos, pode levar a cabo esta tarefa. Acrescento que só o Estado pode também dar a necessária instrução religiosa, integrando-a com o complexo de outras disciplinas. Qual é então a educação que nós reivindicamos de uma forma totalitária? A educação do cidadão.”[2]

O discurso acima foi proferido por ninguém menos que Benito Mussolini; il Dulce em pessoa. E, claramente, por detrás do desejo irrefreável de controlar a educação das crianças e de apear os pais dessa tarefa não está um projeto de uma sociedade livre.

Qualquer semelhança entre os métodos de controle dos Estados antigos e dos contemporâneos não é mera coincidência.

É certo que, entre o mundo antigo e o contemporâneo, existiu a chamada cristandade ocidental, na qual a própria ideia de escola obrigatória foi banida. Educar os filhos era direito e dever dos pais. O Estado não se intrometia nesta área, o que bastava para garantir que jamais ele poderia controlar os povos ideologicamente.

Mas essa experiência histórica, infelizmente, encontra-se superada. A ascensão dos Estados modernos é o que fez ressurgir a ideia (simpática para quem não a analisa a fundo) de que toda criança deve ser obrigatoriamente matriculada em escolas, sendo que o conteúdo que lhes será ministrado é definido em grande parte, pelo próprio Estado.

Assim, permitam-me a sinceridade: o que os pais desejam e o que fazem os professores não definem os objetivos da escola nem do sistema educacional moderno. E não é a toa que, quanto mais se “democratiza” o ensino, menos as crianças aprendem (menos preparam-se para o mercado) e mais ideologizadas elas ficam[3]. Nossos jovens, por exemplo não têm, em geral, a mais vaga noção de concordância verbal, mas sabem esfregar nos narizes de seus pais eventuais direitos que possuem (reais ou imaginários).

Assim, em que pesem as boas intenções dos pais ou os bons serviços de muitos professores, o ponto a ser encarado por nós é que, ou reconhecemos a existência de um problema de fundo, ou, então, o projeto “Escola Sem Partido”, ainda que aprovado, não representará senão uma pequena vitória numa guerra destinada a ser vencida por nossos inimigos.

Caso se queira efetivamente quebrar o objetivo dos Estados totalitários contemporâneos de controlar a educação de nossas crianças, é necessário, de um lado, retirar dele o direito de pautar o conteúdo que as escolas particulares ministrarão e, de outro, proclamar-se claramente o direito dos pais ao homeschooling.

É justamente aqui que, em minha visão, manca o debate atual sobre o “Escola Sem Partido”. Ele se limita a abordar o assunto sobre o prisma do professor. Visa forçá-lo a ser apenas um professor e não uma caixa de ressonância das ideologias oficiais.

Objetivo nobre, sem dúvida, mas que, ao fim e ao cabo, ainda que concretizado, trará poucos frutos. Pois, de um lado, jamais um professor será ideologicamente neutro (e sua visão de mundo influenciará, necessariamente, a visão de mundo de seus alunos) e, de outro, o conteúdo didático continuará, em grande parte definido pelo Estado.

E isso, meus caros, já basta para garantir o controle ideológico das crianças.

É necessário aproveitarmos o momento em que a sociedade desperta para a necessidade de se evitar a ideologização de nossas crianças para, apresentando o problema real, incitarmos a aprovação clara e inquestionável do homeschooling seguida de uma liberdade radical das escolas privadas de definirem o conteúdo que ministrarão às crianças nela matriculadas.

Sem isso, com a eventual aprovação do projeto, celebraremos uma vitória, enquanto o Estado controlador seguirá, apesar da derrota, controlando o que nossos filhos pensarão no futuro.

[1] Fonte: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fustel%20de%20Coulanges-1.pd

[2]Disponível em http://www.dittatori.it/discorso25maggio1929.htm.

[3] Uma vez que as ideologias apeiam as pessoas da realidade, curiosamente nossas crianças, mais e mais, têm dificuldade para entender o mundo real, o que frustra, solenemente, o objetivo dos pais de que se preparem para a vida.

Nice, 14 de Julho de 2.016.

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Fonte da Imagem: http://www.news.uzh.ch/de/articles/2011/die-stadt-der-religionen.html

 

 

Another horrific attack, this time in Nice, France. Many dead and injured. When will we learn? It is only getting worse.[1]

 

Aconteceu mais uma vez.

Novamente na França.

Agora, em Nice.

Mais um ataque terrorista volta a atingir o Ocidente, causando dezenas de mortes e deixando mais de cem feridos. Podemos aguardar, para os próximos dias, líderes e organizações ocidentais vindo a público lamentando o atentado e afirmando que o importante, nesse momento, é evitar uma onda de islamofobia e reforçar o compromisso dos países ocidentais (especialmente os europeus) em abrir suas fronteiras para fluxos cada vez maiores de imigrantes vindos de países islâmicos. Líderes e organizações que, em suma, recusar-se-ão, mais uma vez (e quantas vezes forem necessárias) a enxergar o óbvio que se apresenta à frente de seus republicanos narizes: há uma guerra contra o Ocidente levada a cabo por grupos islâmicos.

Essa guerra não é secreta. Não se podem acusar os que querem nos destruir de esconderem seus intentos ou de dissimularem seus objetivos. Ao contrário, dizem-nos abertamente.[2]Aproveitam-se das leis ocidentais toscamente formuladas para incentivar o multiculturalismo (o que, na prática, equivale a incentivar o fim da nossa cultura) para invadir sem resistência as fronteiras ocidentais e para, uma vez aqui instalados, atingindo-nos com o martelo do terror, impor a sharia e, ao cabo desse processo, abolir nossas leis e fazer com que todos vivamos da forma como eles entendem que devemos viver.

Em suma, a cultura de tolerância implantada há décadas entre nós está sendo especialmente tolerante com aqueles que não nos toleram. O resultado prático é que cada vez mais acomodamos todas as idiossincrasias muçulmanas (e a existência de tribunais religiosos muçulmanos em países europeus – as chamadas “Sharia Courts” – é a prova cabal desse fato), e, para fazê-lo, tornamo-nos nós mesmos intolerantes com nossas próprias expressões culturais e tentamos abafar suas manifestações para não ofender os muçulmanos que nos cercam.

Este bom mocismo, contudo, não evitará o colapso de nossa civilização.

Abrir as portas e acomodar os que querem nos destruir não é uma maneira minimamente inteligente de defender nossos “valores” (seja lá o que nossos líderes entendem hoje em dia por esse termo). A defesa deles implica, naturalmente, defendê-los, primeiramente, daqueles que os querem destruir. Implica perceber, em suma, quem são os inimigos que querem aproveitar-se de nossas leis democráticas para imporem sobre nós suas leis religiosas.

Implica, em suma, perceber que existe uma guerra e que a recusa em aceitar esse fato não faz com que subitamente a guerra deixe de existir.

É claro que, para termos chegado a esse estado de coisas, há muitos elementos que se conjugaram. Qualquer tentativa de dar uma explicação simples à passividade ocidental frente a um inimigo tão fácil de ser derrotado estará fadada ao fracasso.

Mas, definitivamente, um dos elementos que o explicam pode ser encontrado na recusa peremptória do homem ocidental em se deixar interpelar pela realidade das coisas e de aprender com ela. É essa recusa que leva um Donald Trump, meio que atordoado, a formular uma pergunta que, no fundo, está na mente de todo ocidental nesse momento: “When will we learn?”

Quando aprenderemos?

Como é possível que, depois de décadas de terror, depois de décadas de combate aberto contra nós, depois de incontáveis manifestações mundo afora de ódio ao Ocidente, ainda achemos que o melhor que temos a fazer é trazer nossos inimigos para dentro de casa e, se necessário, deixarmos a casa para que eles vivam nelas enquanto nós mesmos as abandonamos para morar nas ruas?

Como é possível que nossos líderes ainda não tenham entendido uma realidade tão fácil de ser entendida?

A resposta é tão simples como aterradora: o ocidental não consegue enxergar a guerra que está sobre si porque, em suma, tornou-se mundano demais para entendê-la. Como disse Chesterton, em seu monumental “Ortodoxia” (g.n.), “pessoas completamente mundanas nunca entendem sequer o mundo; elas confiam plenamente numas poucas máximas cínicas não verdadeiras.”[3]

Pessoas completamente mundanas não conseguem entender a realidade das coisas, pois a realidade, ora bolas (e esta é a pedra de tropeço de nossos líderes), não é meramente mundana. Fechado na imanência, o homem ocidental tornou-se paulatinamente incapaz de entender a realidade, pois esta se abre necessariamente para o transcendente.

O único preconceito que restou no Ocidente foi o preconceito contra Deus. Há séculos os ocidentais excluíram parcela significativa da realidade das coisas de seus interesses e resolveram que a realidade mesma se resume às coisas mundanas, tornando-se, assim, incapaz de entender o que se passa ao seu redor.

O ocidental, por exemplo, não consegue minimamente perceber (por mais óbvio e ululante que isso seja) que os terroristas islâmicos são… muçulmanos. E, verdade seja dita, como muçulmanos conhecem mais do Alcorão e dos ‘haddith” do que a maioria dos ocidentais jamais conhecerá.[4]

O ocidental não consegue conceber que esses terroristas estão lutando por uma causa que, para eles, transcende essa vida. E não o percebe justamente pelo fato de que, para o ocidental comum, a concepção mesma de transcendência é algo que está para além de seus horizontes.

O ocidental não consegue perceber que o combustível do terror não são as condições materialmente precárias de boa parte do mundo islâmico , mesmo porque muitos terroristas não vivem em tais condições precárias, mas desfrutam de todo o conforto que somente o Ocidente ainda cristão consegue oferecer. E, portanto, não é inundando o mundo islâmico de dinheiro e de bens que a ameaça terrorista retroagirá.

O ocidental não consegue mais compreender que o que alimenta o terrorismo islâmico é justamente a percepção existente entre os muçulmanos de que estamos espiritualmente vazios e de que a islamização do ocidente é, segundo pensam, o maior bem que podem nos fazer. Não entende, e nem pode entender, que a ameaça terrorista crescente deriva do fato de que os que nos atacam percebem ser esse o momento adequado para cumprirem um sonho que alimentam há séculos: conquistar a Europa para o Islã.

O ocidental não consegue perceber nada disso porque, em suma, tornou-se mundano demais para entender a realidade.

Assim, a resposta à pergunta de Donald Trump é uma só: apenas aprenderemos com o que está acontecendo se rompermos com o tabu (que, em boa medida, ele próprio e o seu partido reforçam) de excluirmos Deus e o cristianismo da vida ocidental.

Pois foi essa a exclusão que permitiu chegarmos ao estado de coisas atuais.

E, exatamente por isso, o atentado de Nice, ao matar e ferir pessoas que se concentravam para celebrar o aniversário da Revolução Francesa, é um fato carregado de um simbolismo tétrico. Afinal, é justamente essa revolução o marco histórico a partir do qual o Ocidente resolveu virar as costas a suas raízes cristãs.

Por duro e penoso que seja, as vítimas de Nice, neste 14 de Julho de 2.016, colheram alguns dos frutos amargos das sementes plantadas naquele trágico 14 de Julho do Ano da Graça de 1.789.

Temo, contudo, que os ocidentais, mundanizados ao extremo, não compreenderão sequer esse simbolismo.

[1] Tradução livre: “Outro ataque horrível, desta vez, em Nice, na França. Muiots mortos e feridos. Quando vamos aprender? Isso está se tornando cada vez pior.” – Donald Trump, candidato republicano nas eleições presidenciais americanas deste ano, manifestando-se nas redes sociais logo após os recentes atentados em Nice, França.

[2]É conhecida a frase que um prelado católico, D. Giuseppe Bernardini, disse ter ouvido de um líder muçulmano:  “Graças às suas leis democráticas, nós os invadiremos; graças as nossas leis religiosas, nós os dominaremos.

[3] Fonte: https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/chesterton_-_ortodoxia.pdf

[4] Nada mais risível do que líderes ocidentais, após a ocorrência de atentados terroristas, citando o Alcorão como que a ensinar os muçulmanos o que diz a religião que abraçaram, como se os primeiros a conhecessem melhor do que os últimos.

Metas de Produtividades na Magistratura.

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Atualmente, uma das palavras de ordem no Brasil é que se cobrem dos magistrados brasileiros metas de “produtividade”. Penso que tal ideia é das mais equivocadas, e pretendo, humildemente, tecer algumas considerações a este respeito.

A cobrança por produtividade dos membros da magistratura se baseia em dois pilares: de um lado, entende-se que o juiz brasileiro trabalha pouco e vive rodeado de mordomias; de outro, entende-se que a atividade da magistratura é como outra qualquer e, já que todos os trabalhadores têm metas a cumprir, não há razão plausível para que o juiz não as tenha.

Relativamente ao primeiro ponto, penso não ser necessária nenhuma argumentação para convencer os leitores deste blog do contrário. Num país em que existem cerca de 100 milhões (!!!) de processos em tramitação, supor que juízes trabalhem pouco é divorciar-se por completo da realidade. Basta que se visite qualquer vara de uma comarca de entrância inicial ou intermediária em São Paulo para se ter uma ideia clara da situação na qual a maioria de nós se encontra.

Desta forma, gostaria de me concentrar no segundo ponto acima mencionado, pelo qual nós juízes somos comparados a outras atividades. E gostaria de começá-lo narrando uma estória que um dia um advogado me contou acerca de um juiz (também ele premido por metas a cumprir) num destes fóruns do Brasil. Por óbvio, não digo o nome do juiz, nem sua cidade, nem a que tribunal se vincula, mesmo porque não sei sequer se a estória é verdadeira ou se foi exagerada por aquele que me contou. Digo, apenas, que, caso seja de todo falsa, ao menos é verossímil o suficiente para exemplificar no que o Poder Judiciário ameaça se tornar caso esta equiparação com as outras funções seja levada às suas últimas consequências. Neste sentido, a estória é um caso típico de aplicação do velho ditado: se non è vero, è bene trovato.

Conta-se que este magistrado houve por bem conversar com os advogados que militavam em sua vara. Disse a eles que tinha a pretensão de prolatar algumas centenas de sentenças por mês.

Atitude louvável, sem dúvidas.

Mas, acrescentou o magistrado, para que pudesse atingir tais números, todos haviam de compreender que não seria possível ler os processos a serem sentenciados (!). Estagiários fariam esse trabalho (e, mesmo assim, analisando-se os autos em, digamos, leitura rápida).

E disse mais: caso alguma decisão fosse muito equivocada, o advogado interessado deveria interpor embargos de declaração, e, então, ele veria o que fazer para remediar o equívoco cometido.

Juiz voltado para a produtividade é assim! Interessa o número final de processos sentenciados, não a aplicação da justiça ao caso concreto. Interessa a planilha, não a vida dos jurisdicionados, que confiam seus interesses nas mãos de um magistrado.

Insisto em dizer: não sei sequer se a estória é verdadeira. Mas temo que, ainda que não o seja, venha a sê-lo num futuro próximo caso as pressões por produtividade continuem num crescendo. Isto porque elas têm o efeito colateral de fazer com que vejamos os processos que nos são submetidos mais como um número a baixar do que como vidas que se desnudam para nós.

Sempre pensei (e quero continuar pensando) que, se um juiz tiver que demorar um dia e meio para sentenciar ema simples ação de despejo, deve fazê-lo. O tempo é o que menos importa. Pois, para o magistrado, um processo pode ser um amontoado de petições e de documentos; mas, para as partes, não raro, são as vidas delas que estão em jogo, e nossas decisões podem representar sua ruína ou sua fortuna.

Cobrar produtividade de um montador de ventiladores faz todo sentido; cobrar produtividade de juízes, já nem tanto. Isto porque, pela própria natureza do trabalho de um montador, sabe-se o quanto ele trabalhou pela quantidade de objetos montados; ao contrário, dada a própria natureza da atividade de um magistrado, a quantidade de processos sentenciados não é medida minimamente adequada para se saber se ele trabalhou bem ou não.

Não é possível, em suma, comparar-se um ventilador montado a uma sentença prolatada.

O exercício da Magistratura, em suma, é o exercício de um poder. E justamente por isso, não pode ser nivelado a uma atividade econômica, cujo desempenho, por natureza, não impacta a vida de pessoas comuns como o faz o da função judicante.

O fato, contudo, é que, depois de décadas de doutrinação, durante as quais se insistiu que os juízes são meros funcionários públicos e que a Magistratura é um serviço estatal como outro qualquer, a tentação de impor produtividade a juízes é quase que invencível e, a bem da verdade, o próprio Poder Judiciário parece desprovido de meios de argumentação minimamente convincentes para se opor a tal imposição. Afinal de contas, tanto o discurso interno como o externo de muitos tribunais, tomados de um bom mocismo atordoante, se coadunam perfeitamente com a agenda esquerdista que visa nos solapar de vez. E, adotado tal discurso, opor-se a metas de produtividade soa como algo incoerente e que somente se justifica por mero corporativismo.

É óbvio que existem juízes que não querem trabalhar ou que trabalham muito pouco. E é óbvio que deve haver mecanismos que permitam a punição desses magistrados de braços curtos (conhecidos como “Horácios”, numa referência a um famoso personagem de revistas em quadrinhos).

Mas, definitivamente, a adoção de metas não é um remédio a que se deve recorrer porque como já dito, não respeita, por mínimo que seja, a natureza própria da atividade da magistratura e, assim, os resultados dela advindos serão necessariamente catastróficos.

É necessário que uma reação parte exatamente de nós, juízes brasileiros. Mas, para reagirmos adequadamente, devemos antes de tudo resgatar a exata noção do que estamos a fazer quando decidimos e sentenciamos processos. É necessário, em suma, trazer de volta, para os nossos próprios horizontes, qual a natureza da nossa função e convencermos a nós mesmos que exercemos um poder efetivo sobre as vidas das pessoas.

Somente assim, convencendo-nos a nós mesmos de que números não são aquilo que buscamos, é que poderemos convencer os outros de que não devem eles próprios olhar meramente para números quando visam qualificar a atividade de determinado juiz.

Pois afinal de contas, é certo que nenhum de nós gostaria que nossas próprias vidas caíssem nas mãos de um Horácio qualquer; mas é igualmente certo que nenhum de nós gostaria que elas caíssem nas mãos de um juiz como aquele da estória acima narrada.