Liberdade Religiosa em tempos de pandemia

Vivemos tempos estranhos. Tempos em que cidadãos de bem estão sendo literalmente trancados em casa e nos quais bandidos perigosos são postos em liberdade. Tempos em que a polícia pode descer até a praia reprimir banhistas, mas não pode subir o morro para reprimir traficantes. Tempos em que shopping centers podem funcionar com todo o fluxo de pessoas que daí resulta, mas nos quais o cidadão brasileiro comum não pode ir a uma igreja cultuar o seu Deus, o Deus de seus pais, o Deus em torno do qual se formou a civilização ocidental. A razão pra tudo isso? O combate a um vírus; e a desculpa de ser necessário agir-se para salvarem-se vidas. O que muitos deixaram de se questionar, contudo, é precisamente aquilo que esse pequeno texto, com a devida vênia aos que pensam de forma diversa, questiona: existe, ao final das contas, base jurídica para todo esse descalabro e, sobretudo, para a interdição de igrejas e templos religiosos?

De plano, tem-se que a Constituição Federal salvaguarda o direito de culto em seu artigo quinto, inciso sexto, em texto já conhecido de todos: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. O texto constitucional, portanto, é claro como o dia: todo brasileiro tem a garantia individual de poder cultuar livremente o seu Deus, e o Estado, em regra, não o pode impedir. Alguns artigos adiante, em texto já não tão bem conhecido, a Constituição Federal reforça essa proteção: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (artigo 19, I, da Constituição Federal). Portanto, seja o poder público federal, sejam os estaduais, sejam os municipais, a nenhum deles é dado “embaraçar” o funcionamento de igrejas ou de templos religiosos em geral. Em outras palavras, não é permitido obstar o culto religioso nem por meio de leis, quanto menos por meio de decretos.

Argumenta-se que nenhum direito é absoluto e que todos devem ceder a exigências maiores. Em primeiro lugar, a colocação é daquelas com as quais não se pode concordar,  visto que a liberdade de culto é uma garantia que não brota do Estado mas da natureza mesma do homem e, portanto, o Estado não tem possibilidades de restringi-la sem colocar-se contra a própria natureza humana. E, em segundo lugar, porque, ainda que se adotasse visão tão canhestra dos direitos, ainda assim é no próprio texto constitucional que se deveriam procurar quais as possibilidades de restrição de uma garantia fundamental. E o texto da Constituição Federal prevê apenas duas hipóteses para tanto: o estado de defesa (artigo 136) e o estado de sítio (artigo 137).

Ora, tanto o estado de defesa como o estado de sítio (repita-se: únicas hipóteses em que o Estado pode limitar os direitos e garantias individuais) somente podem ser decretados pelo Presidente da República, e, mesmo assim, ou com a prévia autorização do Congresso Nacional (estado de defesa) ou sob o referendo posterior deste (estado de sítio). E, como é sabido, o atual Presidente da República em nenhum momento decretou nem estado de defesa nem estado de sítio e, portanto, nenhum direito ou garantia individual está, juridicamente falando, sob qualquer restrição, o que já deveria bastar para que se tomasse a presente discussão como encerrada.

Tão dramática, pois, é essa limitação que não há nenhum espaço para que governadores estaduais ou prefeitos possam, eles próprios, por mais grave que seja a situação com a qual devam lidar, fazer qualquer restrição a tais direitos e liberdades. Permitir que façam, como muitos tem tomado por certo que podem fazê-lo, é simplesmente esgarçar a federação, fazendo com que o Estado brasileiro se cinda em diversas unidades autônomas, nas quais os direitos dos respectivos moradores se medem de acordo com a boa vontade de seus governantes.

Porém, aqueles que não se contentam com essa linha de raciocínio argumentam que as draconianas medidas tomadas pelos mais diversos governadores e prefeitos encontram respaldo na Lei Federal nº 13.979/20, editada pelo próprio Presidente da República. Tal lei visa enfrentar a epidemia atual e permite que algumas medidas de contenção sejam tomadas tais como o isolamento e a quarentena. Dois pontos, contudo, devem ser ressaltados. Em primeiro lugar: uma simples lei ordinária não pode se sobrepor à Constituição Federal, razão pela qual, se a lei limitasse direitos e garantias individuais, ela seria simplesmente inaplicável. E, em segundo lugar: tanto o isolamento quanto a quarentena, tal como previstos na lei, são medidas a serem adotadas apenas quanto a pessoas doentes ou suspeitas de estarem com o vírus. Eis o texto da lei naquilo que aqui nos interessa:

Art. 2º  Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:

II – quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.

I – isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e

Em outras palavras, não existe margem, nem mesmo na lei mencionada, para qualquer possibilidade de que pessoas saudáveis sofram quaisquer restrições em suas liberdades, seja na liberdade de andar na rua, seja na liberdade de abrir seu estabelecimento comercial, seja na liberdade de cultuar o Deus de sua crença. É necessário que se diga sem meias palavras: tanto nos acostumamos a tomar por certa a possibilidade de impor restrições a pessoas saudáveis em virtude do vírus chinês que a maioria de nós sequer se dá ao trabalho de averiguar se tais restrições são possíveis, seja na natureza mesma das coisas, seja na estrutura do ordenamento jurídico pátrio. Pois, quando nos voltamos para aquela ou para esse, vemos que a imensa maioria das restrições que estão caindo sobre o brasileiro comum são imorais e antijurídicas, sendo que a determinação de proibir cultos religiosos não é exceção.

Mas os defensores das restrições não se dão facilmente por vencidos. Ao contrário, uma vez que nem a Constituição Federal nem a Lei Federal nº 13.979/20 amparam suas pretensões, voltam-se eles ao Supremo Tribunal Federal e afirmam que a mais alta corte do país assegurou aos governadores e prefeitos o direito de que impusessem tais restrições. Novamente, de tão acostumados a tal ideia, muitos não vão às fontes verificar a veracidade delas, pois, quando se vai a tal fonte, o quadro altera-se por completo. Isso porque o Supremo Tribunal Federal simplesmente reconheceu o direito de que governadores e prefeitos possam tomar medidas locais em face de realidades locais, porém sob a observância dos preceitos constitucionais e das disposições da legislação federal já mencionada. E, como se viu, uma vez que nem uma nem outra permitem que igrejas sejam fechadas, ao cabo de tudo continua-se com a única possibilidade verdadeiramente existente: o culto religioso é livre e sua proibição, seja pelo fato de estarmos sob uma pandemia, seja por qualquer outro fato, não é sustentável.

Mais do que isso!

No julgamento da ADI 6341, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se apenas sobre o parágrafo nono do artigo terceiro da Lei Federal nº 13.979. segundo o qual “O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º”. Ora, o parágrafo oitavo mencionado, por sua vez, assevera que as medidas de contenção “quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.”

Assim, nos termos da lei mencionada, atividades essenciais, mesmo em meio à pandemia, ainda que o governador e o prefeito não gostem disso, devem ser resguardadas e, portanto, não podem ter seu funcionamento obstado. E, ao contrário do que em geral se pensa, o Supremo Tribunal Federal não deixou ao alvedrio dos governadores e dos prefeitos decidirem o que deve e o que não deve ser tido por atividade essencial. A prerrogativa de defini-lo é apenas do Presidente da República, que deverá fazê-lo mediante decreto. O próprio Ministro Luis Roberto Barroso, numa recente aparição na rede mundial de computadores, deixou claro esse fato. Citam-se, agora, as palavras o próprio Ministro quando mencionou que o Supremo Tribunal Federal não tolheu, quanto a esse ponto, as atribuições do Presidente da República (g.n.): “A União continua com competências muito importantes. A própria definição de quais são as atividades essenciais que podem e devem voltar é do governo federal por decreto.”[1]

Ora, o Presidente da República, como é sobejamente conhecido, baixou de fato o Decreto nº 10.342/20 para especificar quais seriam as atividades essenciais. E, em seu artigo terceiro, parágrafo primeiro, inciso XXXIX, elencou entre elas as “atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”. [2]

Em suma, ao cabo de tudo, tem-se que a proibição de missas e de cultos públicos não encontra amparo nem na Constituição Federal, nem na legislação federal e nem em decisões do Supremo Tribunal Federal. Não encontra, ainda, amparo na natureza da alma humana, como já se disse. E, como corolário, supor que meros decretos estaduais possam fazê-lo parece-me conceder ao administrador público que ultrapassa em muito o seu normal poder de regulamentar leis.

Mas uma última palavra se faz necessária.

A proibição não encontra, nesse momento difícil pelo qual passamos, amparo sequer no simples bom senso. Lojas estão abertas. Shopping centers estão abertos. Supermercados e bancos estão abertos (e, em geral, lotados). Se todos esses espaços abertos ao público são seguros desde que seguidos protocolos simples, porque razão igrejas seriam locais perigosos?

No fundo, a determinação de que se fechem as igrejas encontra amparo numa única coisa: o preconceito tolo, típico do homem ocidental pragmático, de que cultuar a Deus é coisa sem importância, hábito de simplórios, atividade que em nada agrega à sociedade. Em suma: não é coisa que faça o dinheiro rodar. É esse preconceito tolo que se pretendeu deixar claro com esse pequeno texto.


[1] A declaração pode ser vista no seguinte link (entre os segundos 38 e 49): https://www.youtube.com/watch?v=XIZE6vWt09Q

[2] É certo que a previsão está sendo questionada em ações judiciais, mas, aqui, discute-se apenas o que o Supremo Tribunal Federal decidiu, e como juízes singulares estão abordando a questão.