A Descriminalização do Uso de Entorpecentes

No drugs

 

No presente momento, é candente a discussão acerca da eventual “legalização” (via Supremo Tribunal Federal) do uso de drogas no Brasil. O assunto está na moda e ganha redes sociais, jornais, revistas e sites de notícia. E, claro, ganha também o mundo dos profissionais de direito, que debatem o assunto e expõem suas opiniões. Tanto que, recentemente, veio-me às mãos um prestigioso periódico no qual se expõem duas opiniões diversas de advogados: uma a favor da descriminalização do uso de drogas; a outra, contra. O que se colocou a favor, era, digamos “bem” a favor; convicto que o melhor que o Supremo Tribunal Federal tem a fazer é declarar que a criminalização do uso fere direitos constitucionais do indivíduo. O outro era contrário à descriminalização, porém faltava-lhe a convicção típica dos combatentes. O leitor pode imaginar qual o resultado de um embate entre alguém decidido a derrotar o lado adverso e alguém que peleja sem a verve necessária até mesmo para convencer os que pensam da mesma forma…

Assim, e naturalmente, chamou-me a atenção apenas a exposição de motivos do doutor que defendia apaixonadamente a descriminalização do uso de entorpecentes. Para se ter uma ideia dos argumentos, na sua defesa aguerrida do direito constitucional à drogadição, ele chegou a traçar uma analogia com a escravidão, dizendo que fomos o último país do ocidente a aboli-la e que espera, sinceramente, que não venhamos a ser o último a abandonar a política “proibicionista” (não sei exatamente quem inventou esse termo, mas o sujeito responsável por isso padece, no mínimo, de um mal gosto incomum).[1] Disse também que os EUA adotaram política de endurecimento no combate ao tráfico de drogas e que isso, hoje em dia, rende-lhes o desonroso título de país com maior população carcerária do mundo.[2] Acrescentou que pesquisas revelam que, em muitos casos, é extremamente difícil diferenciar um usuário de um traficante (provavelmente, acrescento eu, porque numa proporção enorme dos casos concretos ambas as figuras se confundem) e que em pouquíssimos episódios os presos por tráfico portavam arma (!)[3].

Citar todos os argumentos contidos no texto dos quais eu discordo seria citar o texto quase que inteiro.

Mas não posso deixar de observar que, conforme seria esperado, lá pelas tantas o autor recorreu a um dos argumentos onipresentes em todo discurso tipicamente esquerdista: aquele que eu chamo de “argumento do PPP”. Trata-se daquele surrado argumento que invoca os cidadãos Pobres, Pretos e da Periferia para opor-se a qualquer coisa que desagrade o argumentador. Com isso, ele pensa estar dispensado de maiores e mais profundas argumentações, pois quem, em sã consciência pode defender algo que prejudique os pretos, pobres e moradores de periferia?[4]

No caso, a simples afirmação de que a criminalização do uso de entorpecentes acarreta o encarceramento preferencial de cidadãos pretos, pobres e de periferia deveria ser o quanto bastasse para encerrar a discussão. Somente pessoas sem coração é que podem seguir defendendo algo mesmo após a invocação do argumento do PPP.

Mas, arriscando-me ser considerado alguém empedernido, perguntaria ao doutor porque razão concreta dever-se-ia dar tratamento privilegiado a pessoas que compõem o grupo do PPP? Não merecem elas a devida punição quando cometem um crime? E se encontrássemos um traficante branco, pobre e de periferia, deveríamos deixar de aplicar a severidade da lei mesmo assim? E se fosse um preto, rico e morador de condomínio fechado?

É claro que o argumento do PPP é mera peça propagandística de conteúdo marxista e que apela à vitimização (no mais das vezes inexistente) como arma de convencimento. Contudo, por mais duro que seja, cometido um crime, brancos e negros, ricos e pobres devem pagar por ele, pois é igualmente injusto deixar de punir alguém simplesmente por ser rico e branco ou por ser pobre e negro.

Mas, como nem tudo são discordâncias, houve ao menos um ponto levantado pelo douto advogado com o qual concordo, muito embora por razões quase que antagônicas à dele. Ele afirmou que, desde a entrada em vigor da Lei 11.343/06, houve um aumento significativo do tráfico de entorpecentes, sinalizando, em seu entender, que o “proibicionismo” não somente não funciona, mas que, ao fim das contas, acaba mesmo por incentivar o tráfico de drogas. Como corolário lógico, o “permissivismo”, então, magicamente, deve ter o condão de diminui-lo, por mais que tal afirmação contrarie as mais elementares noções de senso comum.

De fato, lembro-me do fatídico dia em que, pela primeira vez, li a Lei nº 11.343/06. Lá estava ela, com seu pomposo título: “Lei de Combate e Repressão ao Tráfico de Drogas”. Bastou correr os olhos em seu artigo 28 para saber que o título midiático a ela empregado era o mais rematado exemplo de aplicação do duplipensar de George Orwell entre nós. Isso porque, assim como no famoso livro “1.984” do citado autor, o Ministério da Paz cuidava de fazer a guerra, o diploma legal de repressão ao tráfico claramente incentivá-lo-ia, ainda que pretensamente destinado a combatê-lo. Era líquido e certo que sua aplicação redundaria em aumento significativo do comércio de substâncias estupefacientes.

Explico-me.

Sabe-se que uma compra e venda, em essência, é ato único, divisível apenas em seu aspecto subjetivo: para aquele que aliena o bem, é venda; para aquele que o adquire, é compra. Mas, em seu aspecto objetivo, o ato é incindível e qualquer tentativa de cindi-lo representa uma violência à natureza das coisas.

Ora, o tráfico de entorpecentes é, em essência, uma compra e venda. O traficante vende; o usuário compra. A Lei nº 11.343/06, contudo, desconsiderou, com típica solenidade dos imbecis, a natureza mesma do ato, criminalizando com severidade a venda e, ao mesmo tempo, descriminalizando na prática o ato de compra. Se a venda é crime dos mais graves, por óbvio que a compra não pode ser tida por ato de somenos, pois, em essência, ambas são um único e mesmo ato. Ainda que se possa, partindo-se do aspecto subjetivo que diferencia estes dois polos (o de vendedor e o de comprador) atribuir-se medida de pena relativamente diversa a cada um deles (reconhecendo-se, por exemplo, uma maior malícia do vendedor e uma maior burrice do comprador), não se pode, sem fazer violência à natureza das coisas, considerar um como digno de penas severíssimas enquanto se considera o outro, quando muito, apenas digno de piedade.

Ao fazer isso, o legislador do Ano da Graça de 2.006 acabou por criar as condições ideais para uma explosão do consumo (visto que, desde então, consumir entorpecentes é fato penalmente quase que nulo e, na prática, de pouquíssima repercussão criminal) e, via de consequência, do tráfico.

Em outras palavras, garantiu-se um amplo mercado de consumidores, pressionando a demanda por entorpecentes. E, havendo demanda, certamente haverá quem a supra. Incentivando-se um dos lados da compra e venda (no caso, o da compra), incentiva-se, necessária e inexoravelmente, o outro (no caso, o da venda). Com a agravante de que pequenos traficantes são, quase sempre, cooptados justamente entre usuários, que passam a se dedicar ao tráfico para sustentar o próprio vício.

Exatamente por isso, desde então a atividade policial de combate ao tráfico é a coisa mais próxima à tarefa de enxugar gelo que a humanidade já conheceu: prende-se um traficante e, uma vez que a demanda por drogas segue elevada, no dia seguinte, outro já ocupou seu lugar. O comprador de ontem é o vendedor de hoje e, ao ser preso amanhã, dará lugar ao próximo usuário da fila.

Isso era tão óbvio, a superveniência desse resultado era tão flagrantemente certa, que, sinceramente, naquele trágico dia duvidei das boas intenções por detrás da publicação da lei. E, passados mais de dez anos desde então, ninguém pode duvidar que a Lei 11.343/06, no fundo, está longe de ser a solução para o problema do tráfico de entorpecentes no Brasil: o “proibicionismo” de fachada que ostenta acaba por se transmutar num verdadeiro “incentivacionismo” mal disfarçado.

Assim, ao contrário do defendido pelo advogado autor do artigo, a lei fracassou e acbou por se tornar parte do problema não por excesso de punição ao tráfico, mas por absoluta falta de punição ao uso de drogas.

Se realmente o desejo da sociedade brasileira é combater o tráfico de drogas, outra saída não há senão jogar na lata de lixo a ideia de que usuário é vítima e combater, com severidade no mínimo semelhante, tanto a venda de entorpecentes quanto a sua compra.

Sei que alguns dirão, repetindo o discurso tão onipresente quanto o argumento do PPP (e tão equivocado quanto esse), que o usuário é um doente que precisa de tratamento e não de punição. Ocorre que nem todo usuário é dependente químico. Muitas vezes, o consumo de drogas ocorre por mera busca de diversão, existindo determinadas drogas que raramente causam dependência, como LSD, lança-perfume e êxtase. E, mesmo naqueles casos em que a dependência já é uma realidade, tem-se que a superveniência dela não isenta de culpa o usuário, pois, ao adentrar o mundo das drogas, sabia da possibilidade de que não conseguisse mais sair dele.

Assim, o usuário é tão digno de punição quanto o traficante. O ato do primeiro é tão socialmente danoso quanto o do segundo e ambos são igualmente injustificáveis, embora eu entenda ser salutar que o Estado, na medida do possível e desde que o usuário o deseje, possa oferecer tratamento a dependentes químicos que caiam no sistema carcerário.

Mas, ao cabo de tudo, não há como se furtar a esta conclusão: se realmente queremos enfrentar o problema do tráfico de drogas, não podemos deixar de combater severamente o uso. Por mais que isso doa em nosso coração, por mais que nossos cérebros (acostumados, em maior ou menor grau, a pensar em clave marxista) tendam a rejeitá-la, a conclusão parece-me incontornável.

Assim, o que está em jogo no Supremo Tribunal Federal é mais do que um simples julgamento. Se os Ministros decidirem que a criminalização do uso fere direito constitucional (!) do indivíduo à drogadição, a guerra contra o tráfico estará perdida para sempre. E as futuras gerações de brasileiros estarão perdidas para o tráfico. Pois, no momento presente, ao menos temos a possibilidade de que o legislador corrija a grave distorção legal aqui comentada; com a vitória da descriminalização, nem isso teremos.

[1] A analogia foi das mais curiosas, visto que o fato de que o uso de entorpecentes acarreta uma verdadeira escravidão ao usuário é coisa que parece não ter passado pela cabeça do advogado em questão. Combater o uso de entorpecentes representa, justamente, opor-se a uma forma de escravidão ainda mais severa do que a que se abateu sobre os negros no Brasil, pois não há Lei Áurea que garanta a liberdade desta nova classe de escravos.

[2]  O doutor não se deu ao trabalho de esclarecer exatamente as razões pelas quais devemos considerar um sistema criminal e penitenciário eficiente como sendo algo de desonroso. Para algumas pessoas, prender criminosos é coisa má em si mesma e o ápice do Estado Democrático de Direito seria aquele em que punir crimes é o único crime imaginável.

 [3] É claro que a defesa da descriminalização do uso de drogas não podia dissociar-se de uma condenação, ainda que implícita, do porte de armas.

[4] É quase certo que em qualquer discussão no Brasil o argumento do PPP será invocado pelo lado que menos tem argumentos racionais a oferecer, pois a lógica da vitimização que o embasa somente é palatável àqueles que não possuem razões mais plausíveis para sustentar seus pontos de vista. Assim, os que querem a descriminalização do aborto alegam que sua proibição atinge preferencialmente mulheres Pobres, Pretas e da Periferia. Ou, para darmos mais um exemplo, os defensores do desarmamento alegam que a legalização do porte de armas provocará mortes preferencialmente entre pessoas Pobres, Pretas e da Periferia. E por aí vai.

 

Do Estado Laico ao Estado Ateu.

 

karl_den_store_krons_av_leo_iii
Coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III

 

“Tornou, pois, a entrar Pilatos na audiência, e chamou a Jesus, e disse-lhe: Tu és o Rei dos Judeus? Respondeu-lhe Jesus: Tu dizes isso de ti mesmo, ou disseram-to outros de mim? Pilatos respondeu: Porventura sou eu judeu? A tua nação e os principais dos sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste? Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. Disse-lhe, pois, Pilatos: Logo tu és rei? Jesus respondeu: Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.” (Jo 18, 33-37)

 

 

O diálogo acima travado entre Jesus Cristo e Pôncio Pilatos produziu um profundo impacto nos séculos que se seguiriam. Nele, Nosso Senhor Jesus Cristo (o leitor há de perdoar-me por referir-me a Ele com o respeito que é devido à Sua Divina Pessoa) estabeleceu de forma definitiva uma ideia absolutamente inovadora: a de que os poderes espiritual e civil não se confundem e atuam em esferas diversas.

De fato, ao mesmo tempo em que se declara rei de um reino meramente espiritual, Jesus Cristo deixa claro que Pilatos detinha um legítimo poder no mundo secular, poder este que, em que pese ter origem divina, não se voltava para as coisas divinas como seu objeto primeiro. Na dramaticidade daquele momento em que o representante de César lhe fitava com ar de interrogação, Nosso Senhor Jesus Cristo deixou claro o que quisera dizer quando afirmara aos judeus “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. (Mt 22, 21).

Desde então, à medida que a civilização ocidental foi se organizando em torno da fé cristã, preservou-se a ideia básica da existência de duas esferas de poder, separadas no que se refere ao seu objeto primeiro: o poder temporal e o poder religioso. O primeiro, voltado para a concretização do bem comum; o segundo, voltado para a salvação das almas.

Esta dicotomia é algo até certo ponto exclusivo do Ocidente e somente se explica em virtude do ensinamento mesmo deixado por Jesus Cristo acima mencionado

Tal ensinamento nunca foi deixado de lado, muito embora, nestes dois mil anos de história, tenha sempre havido conflito entre ambos os poderes e muito embora, dependendo do momento histórico, ora o poder religioso curvou-se ao temporal e ora o temporal curvou-se ao religioso. Confusão entre ambos, contudo, jamais ocorreu.

Demos um salto, agora e adentremos no século XVIII, com a independência dos Estados Unidos.

Sem nenhuma dúvida, os pais da pátria americana eram influenciados pela visão iluminista do mundo, especialmente pelo pensamento de Montesquieu. Entendiam haver uma necessidade de manter a separação entre a Igreja e o Estado, mas (provavelmente, agora, por pura influência de Rousseau) percebiam que não era prudente impedir a influência religiosa nos assuntos públicos, antes, que o necessário era impedir-se que o Estado interferisse nos assuntos religiosos.

Em outras palavras, o Estado laico concebido pelos americanos se destinava a afastar a interferência estatal nos assuntos religiosos, mas em hipótese alguma intencionava impedir que as diversas religiões ocupassem espaços dentro do Estado.

Reza a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos:

“Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.”

 

Ou, em uma tradução livre: “o Congresso não deve legislar sobre estabelecimentos religiosos, ou proibir o livre exercício da religião; ou restringir a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito das pessoas se reunirem pacificamente, ou de peticionarem ao Governo para reparações de queixas”.

Claramente, a primeira emenda visa restringir a atuação do governo em diversas áreas, garantindo a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião e, obviamente, a liberdade religiosa.

coronation
Napoleão tomando a coroa do Papa Pio VII para coroar-se a si próprio

 

Atualmente, contudo, não é assim que se tem entendido (ou, ao menos, não é assim que muitos entendem) o princípio do Estado laico. Alguns têm advogado o uso dele não mais como uma proteção em prol das denominações religiosas em face do Estado, mas como uma proteção em prol do Estado em face das denominações religiosas. Não se vê mais um risco de que o Estado interfira na vida das religiões, mas um risco de que as religiões interfiram na vida do Estado.

Talvez o leitor se surpreenderá com o que direi, mas o fato é que a legislação brasileira (incluindo, aí, a própria Constituição Federal) não dá qualquer amparo a esta nova interpretação do princípio. Não existe nenhum texto constitucional ou infraconstitucional que diga que expressões religiosas estão banidas da vida pública ou que os agentes públicos (políticos ou não) estejam impedidos de ostentar símbolos religiosos ou de deixar-se influenciar, em sua conduta pública, por concepções de vida enraizadas em sua fé.

A mudança de sentido do princípio do Estado laico se reduz a um mero jogo linguístico, no qual as concepções originais referentes à separação entre Estado e Igreja foram esvaziadas e, posteriormente, preenchidas com outro significado.

Há dois problemas sérios neste giro linguístico.

Vejamo-los separadamente.

O corolário lógico da liberdade religiosa é o de que qualquer pessoa é livre para crer no que entender que deve ser crido, e, inclusive, obviamente, para não crer em coisa alguma. Por mais que este articulista entenda insustentável a posição ateia, o fato é que qualquer um é livre para se entender como ateu.

Ora, um ateu, pelo simples fato de ser ateu, possui uma determinada visão de mundo e de moralidade. Tal visão tem profundo impacto na forma pela qual se comporta em sua vida privada e, obviamente, tem profundo impacto na forma pela qual, sendo ele um agente público, se comporta na condução das coisas públicas.

Da mesma forma, uma pessoa que professa determinada fé religiosa possui, em virtude desta fé, uma visão de mundo determinada, que também trará seus impactos na forma pela qual se comporta.

Ocorre que a nova abordagem do princípio do Estado laico força esta pessoa a fazer uma dicotomia: em sua vida privada, pode se comportar conforme suas crenças; mas, se for agente público, em sua atuação pública deve ele se comportar como um ateu.

Impõe-se, assim, uma ditadura do materialismo no trato da coisa pública, pois todos, crentes ou descrentes, doravante, sob a alegação de ser laico o Estado, devem, em suas vidas públicas, agir exatamente como agem os descrentes, que assim, se erigem em classe especial dentro da sociedade: a única que tem o privilégio de seguir suas consciências tanto em suas relações privadas como em seu comportamento público.

E isto, repita-se, sem qualquer embasamento legal ou constitucional.

Na verdade, sendo laico o Estado, todo e qualquer agente público tem o direito de se comportar de acordo com suas consciências. Se é verdade, por exemplo, que  Estado não pode impor a um juiz espírita que julgue uma causa de acordo com princípios católicos, da mesma forma, não pode impor a um juiz católico que julgue uma outra de acordo com princípios materialistas. Se não pode impor a um ateu que fixe um crucifixo em seu próprio gabinete, não pode igualmente impor a um católico que retire o seu crucifixo de sua sala de audiência.

A par desta ditadura do ateísmo, há um outro problema com a imposição desta nova abordagem do princípio do Estado laico. E este problema atinge até mesmo os próprios ateus, sejam eles militantes ou não.

Como dito acima (ainda que rapidamente), foi a fé cristã que permitiu o surgimento no Ocidente da ideia de separação entre Estado e Igreja. Tal ideia é alheia, mesmo hoje, a outras culturas e, ao contrário do que pensamos, ela não surgiu naturalmente com o desenvolver das sociedades, sendo fruto de uma árdua luta cultural. Trata-se de uma conquista da cultura ocidental e, em essência, ampara-se na visão cristã de sociedade.

Uma vez que a nova abordagem do Estado laico impõe uma retração desta mesma cultura, fatalmente, mais cedo ou mais tarde, ela importará – ironia das ironias! – em retração do próprio Estado secular e, via de consequência, da própria liberdade de religião.

A transformação do Estado laico em Estado ateu, se levada a bom termo, será como a tarefa bem cumprida do serrador a serrar o galho em que ele mesmo está sentado…