
Certa manhã, um sol lusíada dourou a ilha da Madeira que balouçava no mar alto como tela num cavalete. Aquilo era uma estrofe verde de Camões ressoando no ar.
A citação acima foi tirada de um trecho do romance “A mulher que fugiu de Sodoma”, de José Geraldo Vieira. Mário, protagonista do romance, está passando pela ilha da Madeira enquanto se dirigia a Paris, onde tentaria reconstruir sua vida após destruí-la pelo vício do jogo. Como o leitor pode perceber, é uma passagem belíssima, própria de quem tem talento suficiente para uma literatura imorredoura. E, de fato, no romance, José Geraldo deixa claro que não é um escritor qualquer, produzindo alguns dos mais impressionantes trechos de literatura que eu já tive o prazer de ler, porém – talvez por ser das suas primeiras obras –, misturando-os com muitas passagens banais, e alguns até mesmo constrangedoras.
O romance se divide em três partes. Na primeira delas, somos apresentados aos dois personagens principais – o próprio Mário e Lúcia, sua esposa – e ao drama humano que vai perpassar a narrativa: a impossibilidade de que uma alma de grandeza ímpar – a de Lúcia – aceite conviver com uma que se corrompeu por um vício vil – a de Mário. Ela, como a família de Ló ao ser avisada pelos anjos, foge de seu antigo mundo com firme resolução sem cometer o erro pueril de olhar para trás.
Se o rompimento do casal é traumático e se a fuga de Lúcia é satisfatoriamente conduzida, a oscilação do texto, que ora atinge o sublime e ora flerta com o tolo, é desconcertante.
Dou dois exemplos.
Após a narrativa comovente da morte de um menino apelidado de “Segundo Clichê” – morte essa de suma importância dentro da trama – o narrador se perde num elogio fúnebre carregado de sentimentalismo simplesmente desnecessário, do qual cito apenas um pequeno trecho:
Pobre Segundo Clichê… Tu, que muita vez dormiste na soleira das casas comerciais do largo do Machado, tonto de sono e de fadiga, com os teus jornais esparramados pelo chão; tu, que, como quarto teu, tinhas apenas esse quarto onde tua mãe passava a ferro; tu que te sentias tão bem, depois do teu trabalho, deitado e estirado entre trastes, ferros de engomar, latas, bacias, caixas de papelão, sapatos velhos e roupas alheias — dormes, agora, sossegado sob essa colcha que cheira a poções e a óleo canforado.
Dificilmente poderia ser pior… Mesmo porque esse elogio fúnebre – algo entre o apelativo e o sociológico de beira de esquina – sequer tem razão de ser. Fosse ele eliminado, e nada da trama se perderia, pois, quando o menino morre, o leitor já sabe que era pobre, trabalhador, amado pela família e de responsabilidade rara para a idade que tinha. Todo o drama humano real e concreto de se perder uma criança sem a necessária assistência a que podia ter acesso já tinha sido muito bem exposto ao leitor pela narrativa em si.
Outro exemplo se dá logo mais adiante, quando Mário, retornando para casa após uma noite de jogatinas fracassadas, depara-se com trabalhadores urbanos, essas “figuras híbridas, metade gigantes metade escravos, que, em grupo, consertam, na hora plácida das noites estivais, o asfalto das ruas e os trilhos da Light.” A descrição dessa casta de desgraçados, que já é das mais açucaradas para o meu gosto, torna-se logo intragável:
São descendentes e herdeiros dos escravos que levantaram as pirâmides, dos prisioneiros que remaram, algemados, nas galeras do Mar Interno, dos mercenários que represaram mares junto aos istmos históricos, dos párias que construíram os arcos do triunfo e os templos de altos frontões triangulares. São da tribo dos Êxodos modernos, desses que descongestionam as docas de Hamburgo e de Liverpool, que povoam como formigas os estaleiros navais, desses, que, como térmitas, existem em chusmas cegas nas usinas do Ruhr, nos altos fornos da Flandres, nas minas do País de Gales e nos eldorados irônicos do Transvaal.
Bem… Reconheço que a ideia básica por detrás dessas analogias é das mais interessantes: pinçar um elemento típico da vida carioca de seu tempo (no caso, dos trabalhadores braçais revolucionando a face da cidade a qualquer hora do dia e da noite) tendo como pano de fundo tanto a história universal quanto o cotidiano de outras grandes cidades da época. O ideal, porém, seria que tal comparação se desse de forma orgânica na boca de um personagem, ou mesmo na de muitos. A escolha de se fazê-la pela boca do narrador torna a passagem não apenas pedante, mas até mesmo forçada, fazendo com que leitor se sinta lendo um mais texto de sociologia do que um de literatura.
Mas, se, na primeira parte do romance, o texto é repleto dessas oscilações, na segunda, José Geraldo mostra verdadeiramente todo o seu talento.
Em Paris, Mario, com esperança de se reabilitar perante a esposa, muda de vida e retoma a rotina de um homem honrado e responsável. Com bastante maestria, o autor mostra, sem forçar a pena, a reconstrução da vida do protagonista, jogando as luzes necessárias tanto em seus esforços sinceros quanto nos pontos fracos que ele, contudo, vai deixando em aberto e por meio dos quais o antigo vício encontrará um caminho de volta ao interior de sua alma. Mário, aqui, é a verdadeira encarnação da mulher de Ló, que, percebendo a necessidade premente de abandonar seu mundo antigo para não ser consumida pelas chamas, resolve, contudo, olhar para trás. Esse pequeno apego mostra-se fatal, e o que poderia ser uma fuga bem sucedida para uma vida nova revela-se uma tragédia tão profunda quanto a que seria simplesmente se deixar ficar em Sodoma.
Através desses pontos fracos, Mario é aos poucos reintroduzido no mundo da jogatina e, como viciado em plena recaída, vai paulatinamente perdendo o controle de si mesmo, até lançar-se num abismo material e moral – vivendo momentos que chegam a ser desesperadores – pior do que aquele que levou ao fim de seu casamento. Vemos nele a concretização da passagem bíblica do demônio que, expulso de um indivíduo, ao retornar, encontrando a antiga casa arrumada, vai chamar outros sete demônios para novamente possuí-lo, tornando o estado final do homem pior do que o anterior.
Nessa segunda parte, os detalhes das descrições e a profundidade com que José Geraldo narra a decadência de Mário são dignos – e não estou exagerando! – de um romance de Dostoiévski. E isso já diz muito sobre a genialidade do autor.
Já na terceira parte, contudo, parece que o fôlego do autor acaba: depois de mergulhar, com detalhes exuberantes, o leitor no mundo de um viciado que se degrada, José Geraldo como que encerra a história com certa pressa. Quem conhece a Missa Solemnis, pro Die Acclamationis Johannis VI, de Neukomm, vai entender o que eu quero dizer. Ao se ouvir a composição, tem-se a impressão de que se poderia estar diante de uma obra-prima da música universal, mas que se estraga pela rapidez da parte final, que torna, com sua superficialidade, desarmonioso o conjunto. O encerramento do arco dramático de Lúcia chega a causar espécie: no último capítulo, ela vive, de forma abrupta uma nova fuga, agora, do lar de magnatas que a acolheram após separar-se de Mário.
Outra vez, estamos diante de uma mulher resoluta que, definitivamente, não olha para trás. Mas, ao contrário da primeira fuga, existe aqui uma mudança rápida e radical em seu espírito, como se Lúcia desse um salto de uma certeza – a de que vivia na casa de amigos nobres que a amavam – para a certeza oposta – a de que eles, ainda que a amassem, queriam usá-la de alguma forma – sem que a mudança estivesse justificada na trama. O movimento dela, prematuro, simplesmente não convence e deixa de fazer jus à grandeza da personagem.
No balanço geral, entre trechos geniais e tolos, entre cenas descritas com detalhes importantíssimos e outras que, sinceramente, parecem inflar a narrativa sem nenhuma razão verdadeiramente importante – como a longa descrição de uma corrida de cavalo vista pelos olhos de Nuno de Almada –, entre escolhas narrativas geniais e outras inverossímeis ao extremo, o livro é, ao meu ver, mais do que recomendável. Se o leitor souber perdoar a obra pelos seus pontos fracos, poderá aproveitar os pontos fortes, que são tão raros em nossa literatura, que talvez, exceção feita à obra de José Geraldo, não se encontrem em nenhum outro lugar.