ORIGINALIDADE DESNECESSÁRIA

Censura

Nossa liberdade constitucional de expressão tem limites? Sim. São os limites da lei e da jurisprudência dos tribunais, gostemos ou não, mesmo que, venhamos e convenhamos, existam condenações nitidamente questionáveis. Independentemente disso, o importante é que os mecanismos habituais do Estado de Direito funcionem.

O ofensor, que tem a liberdade de se expressar e de escolher um patrocínio legal; o ofendido, que tem a liberdade para mover a ação, e o juiz ou tribunal, que têm a liberdade de convicção motivada para julgar assim ou assado.

Lamento dizer que não inventaram nada melhor que isso. Todas as outras alternativas gozam de uma séria anomalia genética: invertem uma série de regras e princípios consolidados há séculos em favor justamente da liberdade de expressão.

Órgão censor, comitê de crítica, departamento de imprensa e propaganda, notificação judicial, seja o nome que for, no fundo, está a se tutelar a censura em nome de uns valores da cabeça de um juiz, de um partido de plantão e mesmo de uma ideologia ou religião. No passado, nada disso deu certo.

Recentemente, a Alemanha resolveu seguir por esse caminho pantanoso. Pretende-se, por via legal, a imposição de multa administrativa, em valor crescente, às redes sociais que veicularem os crimes de notícia falsa ou de incitamento ao ódio que não forem deletadas no prazo assinalado pelo “censor” administrativo. Uma originalidade desnecessária.

Fico a imaginar um exército de funcionários contratados, reunido numa sala padrão “telemarketing”, a vigiar e censurar mais de dois bilhões de mensagens diárias que passeiam pela rede mundial de computadores. Deve ser inútil, caro e paranoico. O problema não está em louvar a estupidez disso tudo.

 Mas tão somente o fato de que, nessa linha de raciocínio, a definição dos crimes deixa a esfera judicial e migra para a esfera das redes sociais. Em outras palavras, é o Zuckerberg, e não mais um magistrado, que dirá se uma conduta virtual é tipicamente penal ou não.

É perfeitamente razoável imputar criminalmente uma mensagem que incite o assassinato de minorias ou de opositores políticos ou que calunie, gratuitamente, qualquer pessoa. Contudo, onde fica o lugar da sátira, sempre tomada a partir de preconceitos sociais ou de fatos do imaginário popular?

Onde fica o lugar de uma crítica política ou econômica mais dura e seca, que tangencie um excesso retórico, e esteja repleta de verbalismos, de qualificativos pouco elogiosos e ironias sarcásticas? Onde fica o lugar de uma posição que seja contrária, com fundamentos ponderáveis, ao aborto, ao casamento homoerótico, ao estatuto do desarmamento, à poliafetividade, à manipulação genética e ao multiverso familiar? Onde fica o lugar para dizer que existe um time de futebol sempre aliviado pelo apito amigo? Vira tudo fake news?

São hesitações que jamais deveriam ser respondidas pelos funcionários do Zuckerberg e, muito menos, pelas massas ensandecidas que são dadas a apagar ou a denunciar tudo aquilo de que discordam ou, ainda, por burocratas públicos que tenham decorado a cartilha das “verdades oficiais” do governo a que pertencem. Em nome da “tolerância”, por óbvio.

Nessa linha, a mera discordância, exemplificada nas perguntas anteriores, seria um discurso de ódio e a exclusão da mensagem indesejada, da rede social, seria uma forma bem escamoteada de censura. Por isso, seja em crimes manifestos ou em zonas cinzentas, em que a liberdade de expressão e seu abuso ou desvio flertam entre si, é perante os juízes e os tribunais que tais excessos devem ser conhecidos e, eventualmente, punidos.

Resulta um tanto triste que a opinião pública e a universidade não estejam lá muito dispostos a defender a liberdade de expressão, quando seu desenho sai do quadrado dos padrões politicamente corretos. Até já inventaram curiosas expressões para não machucar as suscetibilidades infantis de muitos adultos, que se sentem “incomodados” diante daquelas hesitações: safe space ou trigger warning.

Seria ridículo se não fosse trágico. Outro dia, um desses ressentidos pediu que retirasse uma imagem, composta por minha face e o título de um artigo, de minha linha do tempo na rede social. Sugeri que fosse procurar um psicólogo e deixei um recado bem orwelliano, segundo o qual, “se a liberdade significa algo, significa também o direito a dizer aos demais, de forma racional e ponderada, aquilo que eles não querem ouvir”.

CULTURA E VERDADE

Relativismo

 

Conversava com uma jornalista antes da gravação de um programa televisivo, quando ela disse que “a ordem do dia é a relativização cultural, porque todo novo tema recebe, em seu lançamento, o código genético da indeterminação”. “Então”, respondi-lhe, “um sujeito minimamente convicto de suas ideias sobre o mesmo tema pode ser tachado de antidemocrata ou intolerante? Mas as ideias dele, no choque com esse espírito difuso, não seriam bem-vindas, em nome da tolerância e da democracia, por mais estapafúrdias ou verdadeiras que fossem?”.

Sobreveio um longo silêncio no outro lado dessa interlocução. Ao menos, creio que a jornalista deu conta de que verdade e cultura podem habitar, sem brigas, o mesmo período gramatical e que podem haver alguns elementos objetivos que ultrapassem as próprias perspectivas individuais, em prol de uma reflexão humana sobre cultura minimamente unitária e consistente.

Eis o ponto. A relativização cultural impede a análise dos diversos discursos, sobretudo os antagônicos, até o ponto em que sejam exteriorizados seus limites, fragilidades e incoerências, à luz dessa mesma reflexão humana. Em outras palavras, a relação entre cultura e verdade seria como o vínculo do homem com o sabonete da pia, depois de usado o mictório público: repelem-se e não há perigo de melhora.

A cultura moderna está impregnada de uma certa consciência desencantada de estar fora do território do ideal e primordial na leitura que faz da prosa do mundo e em sua rede de discordâncias irreconciliáveis. Calha aqui a observação de Marcel Proust – todo paraíso é um paraíso perdido. O homem atual é o protagonista passivo de uma cisão que o aparta da totalidade da vida e que o divide inclusive internamente.

As contradições do processo histórico em que vivemos, oscilante entre emancipação, violência, liberdade de onipotência, desenraizamento e solidão, parecem gritar ao indivíduo que, na existência concreta, não há mais espaço para o recurso a valores dotados de validade universal e que sejam aptos a justificar opções definitivas.

Parece que opções mínima e racionalmente convictas apresentam o risco de provocar, na cabeça de quem fez outras, uma espécie de consciência da queixa: a posição alheia é retrógrada, tradicional, conservadora, religiosa, antidemocrata, patriarcal, opressora, branca, homofóbica, eurocêntrica e assim por diante.

A relativização cultural – no fundo, uma relativização ética – apresenta-se, para muitos, como a única possibilidade de superação desse “mal radical” que implicam umas poucas e perenes convicções morais absolutas, a única forma de abandono de uma certa “consciência de culpa” (Ratzinger) dos defensores dessa relativização, a fim de se alcançar um novo e presumido estado de inocência civilizacional.

Reduzido ao mais puro relativismo, tudo marchará para o niilismo e, depois, para o economicismo existencial: liberados os valores de seu sentido mais radical e profundo, todos se farão equivalentes e intercambiáveis. Cada valor converte-se em qualquer outro, tudo se converte em moeda de troca no mercado dos valores e resta cancelado todo preço de uso decorrente de alguma peculiaridade inconfundível ou insubstituível.

Logo se percebe que o apreço da pós-modernidade pela diversidade, no seio da relativização cultural, é bem falso. Se as portas estão escancaradas para a escolha de qualquer tipo de postura cultural, é porque, no final das contas, tudo dá no mesmo. Essa apoteose do “politeísmo de valores” (Weber), disfarçada de diversidade cultural, irá nos conduzir para a despersonalização dos indivíduos e, como efeito, para o arrebatamento de sua dignidade efetiva.

Privados de um “deus que nos salve dessa crise cultural” (Heidegger) e com os valores enfrentando-se uns aos outros irreconciliavelmente, como deuses de um novo Olimpo desencantado, creio que seria o momento de resgate daquilo que poderia nos tirar desse mundo de perda de sentido da relativização cultural: a busca da verdade.

Mas uma busca apaixonada e não meramente idealista, que se dá por meio do estudo, da aprendizagem e da disputa racional, porque a paixão, se, por um lado, tem algo de agape, o amor de benevolência, por outro, tem muito mais de eros, o desejo de união possessiva, desencadeador de uma chama que queima e consome, a única forma de superar essa luta cega de forças que domina uma cultura relativizada, uma cultura sem alma e sem coração.