ADPF 442: Aborto Processual

Aborto

 

Na falta de uma agenda parlamentar mais consistente, o partido de “oposição à esquerda”, cujo nome já se perde na contradição de expressões que lhe deram, resolveu ficar na oposição da democracia: ingressou com uma ação constitucional (ADPF 442) com o fim de atropelar o natural e insubstituível debate legislativo sobre o aborto por meio de uma resposta jurisdicional do STF, o qual, no frigir dos ovos, se verá, mais uma vez, tentado a prodigalizar outra aula de ativismo judicial.

Explico. Esse partido, que porta a única dimensão existencial em que o socialismo rima com a liberdade, pleiteia a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação do feto, hipótese não contemplada pelos dois incisos do artigo 128 do Código Penal.

Em outras palavras, o partido pretende, por meio do exercício do direito à jurisdição, cujo véu, diáfano, permite vislumbrar o autoritarismo da atitude, que as onze cabeças iluminadas de nossa Suprema Corte, ao fim, acabem por legislar no lugar dos 513 deputados e 81 senadores que foram eleitos para isso.

Como diz a turma que defende o homicídio uterino, “precisamos falar de aborto”. Realmente. Mas venhamos e convenhamos: os argumentos lançados em prol da execução de seres inocentes e indefesos já viraram um grande e entediante monólogo de um mesmo e estultificante discurso pleno de razões e nulo de razão.

A ADPF 442, um verdadeiro e próprio panfleto abortista, estampa, em sua inicial, aquele monólogo, cujos argumentos, no limite, dada a inconsistência lógico-teórica invencível, mais lembram a arte de esgrimir a parede. Ei-los: retórica utilitária (“o futuro mutilado de adolescentes grávidas ou de mulheres abandonadas já com muitos filhos”), criminal (“só se punem as mulheres pobres”), sanitária (“abortos clandestinos matam muitas gestantes”), feminista (“sou dona do meu corpo”) ou eugênica (“sofre disso ou daquilo e não tem viabilidade existencial”).

Não se pretende dissecar todas essas linhas retóricas. Apenas uma delas, a mais sofisticada, a premissa retórica escrita na petição inicial, de que “seres humanos não nascidos não são pessoas, mas simples criaturas humanas intraútero”.

Quer dizer que, até o dia em que eu nasci, eu fui um amontoado celular, com uma vida manipulável ao sabor dos interesses alheios. Quando minha cabeça passou pelo ventre de minha mãe, num passe de mágica, eu virei pessoa e, a partir de então, minha vida passou a ser tutelada pela lei e pelo ente estatal. Ou, dito de outra forma, segundo o autor da ação, eu não precisaria esperar pelas 40 semanas para me tornar pessoa: a partir da 13ª, eu já poderia respirar aliviado.

Independentemente do suporte biológico que sustenta a tese da 12ª semana, que, no fundo, é uma desculpa científica que porta uma visão eugenista da vida, essa mesma tese parte de um pressuposto bem claro: uma espécie de reconhecimento do outro, como pessoa, baseado somente na projeção de uma identidade, quando o feto deixaria de ser feto e passaria a se chamar Elena ou Letizia.

O problema é que essa “validade onomástica” tornaria o direito à vida uma faculdade e não um dever. Privatiza-se a noção de vida humana. Para mim, é Sofia; para ele, é uma parte do corpo; para ela, um “ente” a ser validado por uma relação de identidade e, para os partidários da “liberdade socialista”, “simples criaturas humanas intraútero”.

Nietzsche recordava-nos de que “na história da sociedade, há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica e o faz a sério e honestamente”. É o caso da ADPF 442, um verdadeiro aborto processual, porque pretende inovar na ordem jurídica brasileira, ao arrepio do diálogo legislativo nas duas câmaras parlamentares, e fazer da pauta abortista – a pauta da cultura da morte – uma espécie de destino inexorável de nossa sociedade.

Corrijo: não precisamos falar de aborto. Precisamos falar de feto. O feto é apenas o que fomos antes da nossa configuração presente. O feto será uma criança, um adolescente ou um adulto se não existir nenhum obstáculo terminal pelo caminho. A questão fundamental está em saber que direito tem um partido de ser esse obstáculo.

 

 

 

Aborto: a pressa dos algozes e o silêncio dos bebês.

 

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Em pesquisa ao site do Tribunal de Justiça de São Paulo, deparei-me com algumas sentenças judiciais que determinavam a expedição de alvará com a máxima urgência para interromper a gravidez de mulheres que esperavam bebês com problemas. Provavelmente essas mães tiveram o prognóstico de que os bebês morreriam brevemente, ainda durante a gravidez, ou assim que nascessem. E, se porventura, sobrevivessem, seriam deficientes.

Eu vivi essa história com meu filho, por isso tais procedimentos me causam uma verdadeira angústia. Estava com doze semanas da minha primeira gestação. O médico, que era muito experiente e renomado, não mediu as palavras. Depois de terminar o ultrassom, disse friamente que o feto era inviável, que provavelmente morreria em questão de dias ou semanas. Disse que poderia indicar o aborto, juntamente com outros médicos, para me livrar do sofrimento de aguardar a morte natural do meu filho. O peso dessa notícia é indescritível. O sofrimento penetra a alma, que antes estava em festa, com a espera alegre do primeiro filho.

Eu apenas disse que não faria aquilo e saí daquele lugar desesperadamente para chorar e sofrer o meu luto, em meio aos enjoos decorrentes da gravidez, pois jamais conseguiria conviver com o fato de ter causado a morte do meu próprio filho, ainda que sua vida fosse precária ou absurdamente curta.

Para saber se o bebê ainda estava vivo, tive que fazer ultrassons quinzenais. No dia em que o médico sugeriu o aborto, o bebê apresentava evidentes sinais de que não viveria. Consta do relatório de ultrassonografia obstétrica: Anomalia extensa e grave do sistema linfático fetal. Taquicardia. Provável anomalia cardiovascular. Contrariando  o prognóstico do médico, com o passar dos meses, o meu bebê melhorou. O edema desapareceu, permanecendo apenas os marcadores de síndromes (higroma nucal e osso nasal mal desenvolvido).

Além dos ultrassons quinzenais com o mesmo médico, consultei outro especialista renomado em medicina fetal, que já de início, ante os exames já realizados pelo outro médico que ele bem conhecia, indicou a possibilidade de Síndrome de Edwards. Depois de fazer um novo ultrassom, alterou seu prognóstico para arbitrar Síndrome de Down. Isso mesmo, trata-se de um evidente arbítrio, pois não há certeza alguma em medicina, como revela esse caso específico e muitos outros anônimos.

Passamos o restante da gravidez esperando a morte ou a síndrome. O enxoval somente foi comprado no sétimo mês, pois até então não sabia se haveria alguém para usar as roupinhas.

Ele nasceu saudável, em 17/08/2009, com Apgar 9, medindo 47 cm, pesando cerca de 3,5 kg. Um geneticista foi chamado para examina-lo assim que nasceu, porque a pediatra que o recebeu não conseguiu identificar nenhuma síndrome. Ela estava esperando (assim como eu) um bebê com Síndrome de Down, mas o bebê era normal!

O geneticista disse que não poderia afirmar, apenas pelo fenótipo, a presença de qualquer síndrome naquele momento, mas sugeriu que, se ele tivesse algo, poderia ser Síndrome de Noonan. Ele acertou! Trata-se de uma síndrome muito tranquila, em comparação com o que se esperava. Hoje ele tem 8 anos de idade e cursa o 3º ano do ensino fundamental. Tira ótimas notas, mas é baixinho, veja só! Nasceu com má formação cardíaca, que foi corrigida cirurgicamente, quando ele tinha 4 anos de idade. Hoje, ele leva uma vida absolutamente normal!

Quando o dignóstico da Síndrome de Noonan foi fechado, descobri um grupo de mães de crianças com essa mesma síndrome. A grande maioria tinha uma história muito parecida com a minha. A todas foi dada a oportunidade do aborto, sob o argumento de que o bebê não viveria. Todas disseram não e os bebês agora são crianças que pulam e brincam. Enfim, estão vivos, porque suas mães não acreditaram nos médicos ou, mesmo confiando que o filho morreria, optaram por dar-lhes amor enquanto estivessem vivos.

Erro ou milagre, não sabemos ao certo. De todo o modo, é absolutamente certo que há inúmeros casos de bebês que nasceram saudáveis, apesar do prognóstico sombrio que receberam durante a vida intrauterina.

Atualmente os procedimentos judiciais para autorizar o aborto em casos como o meu não aguardam tempo algum. Há uma pressa, uma urgência em extirpar um pequeno ser, que nada pode fazer contra os seus algozes. O bebê sequer tem alguém que o represente no processo. Ele simplesmente é ignorado.

Muitos dos defensores do aborto são, paradoxalmente, contra a pena de morte, por conta da possibilidade do erro judiciário, entre outros fundamentos. O juiz poderia errar ao condenar à morte um inocente. Entretanto, essas mesmas pessoas sequer cogitam sobre a possibilidade de erro médico no diagnóstico intrauterino, ao defender o “aborto terapêutico”.

Não se espera uma melhora, porque é imprescindível que se alcance a felicidade instantânea. Não se pode esperar um pouco. Sofrer um pouco. Temos que ser/estar felizes a qualquer preço.

Estamos quase vivendo no “Admirável Mundo Novo”, que Aldous Huxley descreveu com muita propriedade, se bem que ainda falta o “soma”, aquele comprimido sem efeitos colaterais, que apaga temporariamente toda e qualquer culpa ou tristeza, ao qual todos os habitantes do mundo civilizado de Huxley recorriam diariamente.

A medicina não é ciência exata e os erros acontecem todos os dias. O Poder Judiciário está apinhado de processos decorrentes de erro médico. A maioria das pessoas conhece alguém que foi vítima de algum tipo de erro ou falta de cuidado do médico. E, na maioria dos casos, o paciente ou alguém de sua família estava lá para falar com o médico. No caso do aborto, não há ninguém que fale pelo bebê. Ninguém.

ADPF 442 E O Ativismo Judicial – da Eugenia ao Genocídio dos Inocentes

ADPF 442 e o Ativismo Judicial – da Eugenia ao Genocídio dos Inocentes

  Por Daniel Serpentino

– Ah! – disse Gandalf. – Essa é uma longa história. Seu início remonta aos Anos Negros, agora apenas lembrados pelos mestres conhecedores das tradições. Se eu tivesse de lhe contar tudo, ficaríamos aqui sentados até o inverno chegar. – Mas ontem à noite lhe falei sobre Sauron, o Grande, o Senhor do Escuro. Os rumores que ouviu são verdadeiros: ele realmente ressurgiu; deixou seus domínios na Floresta das Trevas e voltou à sua antiga fortaleza na Torre Escura de Mordor. Até vocês hobbits já ouviram esse nome, como uma sombra rondando os limites das velhas histórias. Sempre, depois de uma derrota e uma pausa, a Sombra toma outra forma e cresce novamente.

– Gostaria que isso não tivesse acontecido na minha época – disse Frodo.

– Eu também – disse Gandalf. – Como todos os que vivem nestes tempos. Mas a decisão não é nossa. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.[i]

Parte I – A relativização jurídica do valor da vida e a Eugenia como obra do Ativismo Judicial

O extermínio de bebês nascidos com algum tipo de deficiência não era prática incomum, na antiguidade. Tal abominação recebeu formal e efetiva resistência das ordens judaica e cristã, a partir dos Mandamentos, em especial do quinto deles – Não Matarás, expressão de direito natural que encontrou e encontra positivação nos ordenamentos jurídicos das mais diversas sociedades, a brasileira inclusive, que afirma – tanto em nível infraconstitucional quanto constitucional – a inviolabilidade da vida humana desde a concepção até a morte natural, tipificando como crimes o homicídio e o aborto.[ii] A proteção ao ser humano ainda não nascido também está positivada em Tratados e Convenções dos quais o Brasil é signatário[iii].

O direito à vida não depende de consensos humanos. A inviolabilidade da vida humana há de ser garantida pelo simples fato de alguém ‘ser humano’, independentemente do ambiente em que se encontre (intra ou extrauterino). Desde a concepção, estão presentes todos os aspectos essenciais de um ser humano, ainda que vários deles em potência, não perdendo sua humanidade ainda que não os venha a atualizar, por qualquer razão. O nascituro, de fato pessoa humana, tem direitos resguardados desde a concepção, a começar pelo direito à vida, primeiro na ordem natural e pressuposto de todos os demais.[iv]

Sucede que, nestes nossos tempos proclamadamente pós-modernos – época na qual a verdade supostamente não existe, não se pode alcançar ou mesmo não importa[v] – tal qual nas eras pagãs, os barbarismos de toda ordem ressurgem: ‘a Sombra toma outra forma e cresce novamente’. Eo derramamento do sangue de bebês inocentes é agora postulado como direito, um suposto direito humano fundamental.

É nesse contexto que muitos da comunidade jurídica – em especial membros do Poder Judiciário – sobre os quais muito pesa da responsabilidade de se contrapor à tragédia garantindo basilar direito dos mais vulneráveis, omitem-se, ou, o que é ainda pior – como sacerdotes de um macabro culto – promovem a entrega de seus filhos a tão cruel destino. Para tanto, o ativismo judicial, em especial de nossa Suprema Corte, tem sido tomado – com o manifesto intuito último de promover a liberação da prática abortiva – por excelente atalho.

Encarnou, com efeito, o ativismo judicialem sua face mais perigosa a decisão da Corte Suprema brasileira que, no ano de 2012, por maioria de votos e legitimando precedentes ativistas de instâncias inferiores, ao julgar procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54[vi] – para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de ‘feto’ anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal – criou uma nova hipótese de não apenamento para uma conduta abortiva.

  Eis a ementa:

   “ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.” 

           Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, para assim decidir, partiram de pressupostos como o da total ausência de expectativa de vida extrauterina do bebê anencéfalo não nascido ou, ainda, de inexistência de vida. Não é o objetivo deste artigo a demonstração de quão flagrantemente equivocadas são tais premissas. Basta dizer, para tanto, que bebês ditos ‘anencéfalos’ – “embora não tenham cérebro, ou boa parte dele – têm o tronco cerebral funcionando.” Este, por sua vez, “é constituído principalmente pelo bulbo, que é um alongamento da medula espinhal e controla importantes funções do nosso organismo, entre as quais a respiração, o ritmo dos batimentos cardíacos e certos atos reflexos (como a deglutição, o vômito, a tosse e o piscar dos olhos)”. [vii]

            A bem da verdade, existem graus variáveis de anencefalia:

“A anencefalia não é uma doença do tipo tudo ou nada, mas trata-se de uma malformação que passa sem solução de continuidade desde quadros menos graves até quadros de indubitável anencefalia, onde faltam as funções que dependem do córtex mas permanecem as que dependem do tronco encefálico”.[viii]

                                        O bebê ‘anencéfalo’, vivo, pode vir a morrer, no ventre da mãe ou após o parto. Após o nascimento, pode muitas vezes respirar e reagir a estímulos. E, embora a sobrevida pós-nascimento seja, em geral, pequena, a criança, a despeito de sua deficiência, pode eventualmente viver por anos.

                                         Não bastasse a consequencial tragédia da desproteção jurídica aos seres humanos ditos ‘anencéfalos’, a ratio decidendi do acórdão vem sendo massiva e reiteradamente invocada, nas diferentes instâncias do Poder Judiciário, para legitimar o abortamento de bebês acometidos das mais diversas enfermidades, como a síndrome de Edwards, modalidades de gestação gemelar, rins multicísticos, anomalias congênitas, síndrome de patau, síndrome de Body Stalk, agenesia renal, e outras inúmeras deficiências ou quadros de má-formação.[ix]

             Vê-se, pois, o quão afastadas da realidade estão as premissas tomadas em conta para decisões deste jaez. A honestidade intelectual impõe conformar-se aquilo que se teoriza aos fatos, não o contrário. Mas recorrentemente se vê que, se os fatos desmentem a teoria – ou a novel agenda de valores que se pretende implantar -, pior para os fatos e, neste caso, para os bebês que foram e virão a ser vítimas, muitas vezes de seus próprios pais, com o aval do Estado e sem que se lhes garanta qualquer espécie de defesa processual, vendo-se ceifados em seu bem fundamental – a própria vida – sem que tenham direito à mínima observância do processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com a expedição de urgentes Alvarás autorizativos de sua morte.

                Emerge claro à razão que o argumento da reduzida expectativa de vida do bebê ‘anencéfalo’ – perdoem-me os arautos da eugenia – não pode ter o condão de limitar os direitos do nascituro.[x] E, uma vez invocado por alguns dos Ministros da Corte Suprema, como razão de decidir, revela o caráter eugênico do resultado do julgamento: o bebê ‘anencéfalo’, por si só, não possuiria dignidade inviolável. Não seria ‘útil’ aos pais, aos que decidem pela sua morte, à família, ou para o restante da sociedade. Nem mesmo seria um ser vivo ou, ainda que tal status lhe fosse reconhecido, teria grau de dignidade inferior aos demais seres humanos.

Ora, este tipo de mentalidade tem um nome bem conhecido: eugenia. A interrupção da gravidez em casos tais, portanto, de aborto eugênico se trata. Digam o que quiserem os defensores da prática – alterem até a denominação que a ela queiram emprestar – como o fez a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), autora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, defendendo o uso da expressão “antecipação terapêutica de parto” no lugar do aborto por eugenia. A realidade não será transmutada, nem a verdade escondida: a monstruosidade eugênica mais uma vez está de volta a assombrar – atuando, o que é mais grave, ver-se-á, como precursora de um mal ainda maior – a liberação da prática abortiva.

Há anos, é preciso ressaltar, espreita os filhos desta Pátria a sombra da liberação do morticínio dos inocentes seres humanos ainda não nascidos, procurando a hora e os meios para se materializar, agora indicados. A via judicial parece ser o caminho mais curto.

Para além da aterradora constatação da natureza eugênica da decisão tomada pelo Supremo Tribunal por ocasião do julgamento da ADPF 54, que subverteu o verdadeiro sentido da expressão ‘dignidade humana’, consubstanciando gravíssimo atentado ao mais fundamental dos bens jurídicos, isto é, à vida humana, o decisum implicou em evidente violação à cláusula de Separação dos Poderes e ao princípio democrático.

Dispõe a Constituição Federal, com efeito, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único, Const. Fed.).

A usurpação das competências de um Poder por outro atinge diretamente o princípio fundamental da separação dos Poderes, e abala a própria estrutura republicana e democrática.

As escolhas políticas parlamentares devem, pois, via de regra, ser respeitadas pelo Poder Judiciário. Exceções podem ser admitidas apenas para os casos em que tais escolhas políticas violem valores civilizatórios/individuais centrais, que derivam da própria natureza das coisas, a começar pela vida de todas as pessoas humanas – desde a concepção até a morte natural, com as suas dificuldades e deficiências –, valor-fonte de todos os demais valores, bem jurídico fundante e pressuposto de todos os demais, inegociável, assegurado como inviolável pela ordem constitucional, cuja dignidade intrínseca – bem nos indica a reta razão – precede o próprio ordenamento jurídico, devendo sempre ser protegida pelo Poder Judiciário.

Em nosso sistema, não prevê a lei infraconstitucional qualquer hipótese de aborto legal. Daí porque o legislador apenas optou por ‘não se punir’ o aborto nas hipóteses do art. 128, incisos I e II, do Código Penal[xi]. Trata-se, a prática do aborto, mesmo em tais hipóteses, de um crime, para o qual, após cometido, o apenamento é apenas excluído.

Tratando-se, pois, o bebê ‘anencéfalo’, ainda no ventre de sua mãe ou já nascido, de um ser humano vivo, a consumação de sua morte por outrem não poderia, em hipótese alguma, ser isentada de pena.

Se, então, os argumentos de decidir da maioria formada no Supremo Tribunal, por ocasião do julgamento da ADPF 54, são tão inconsistentes, como se explica possam ter logrado êxito?

Parte II – Nas razões de decidir da ADPF 54 é gestado um mal ainda maior: a ampla liberação da prática abortiva e o avanço da cultura da morte.

Nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal exarados por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, nota-se uma constância: a exaltação à relevância do julgamento, talvez o de maior importância, até aquele momento, na história do Supremo Tribunal Federal. Tinham eles, nisso, razão.

Ocorre que a importância que deram ao julgamento tem sua raiz, para vários dos Ministros, ao contrário do que ordinariamente seria de esperar, em motivações outras que não a proteção à inviolabilidade da vida humana.

É certo que ao menos dois ministros – Cézar Peluso e Ricardo Lewandowisk – o primeiro de forma muito enfática, afastaram a pretensão postulada, julgando inteiramente improcedente a ação. A maioria, entretanto, decidiu de forma diversa, embora tenham – os ministros que formaram a maioria – utilizado diferentes linhas argumentativas.

Constata-se que a ementa do acordão – que é (ou deveria ser) o resumo das razões de decidir da maioria e do que por esta foi decidido – deixa antever como presentes os fundamentos verdadeiramente queridos pelos autores da Arguição. Ipsis Litteris:

“ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.”  (g.n.)

Para além dos efeitos trágicos que per se a decisão acarretou – e eis aqui o busílis da questão – abriu-se, ver-se-á, de forma bastante proposital, pelo voto de alguns dos ministros (supostamente a maioria, cuja posição encontra-se condensada na ementa), espaço considerável às vias argumentativas necessárias aospróximos passos ativistas direcionados à despenalização ou descriminalização da conduta abortiva em hipóteses cada vez mais largas, ou mesmo, o que é ainda pior, à declaração de tratar-se a conduta abortiva de um direito derivado da autodeterminação, da privacidade, da liberdade sexual e reprodutiva da mulher, de modo que constituiriam, contra ela, atentados à sua dignidade humana e violência – ou mesmo tortura -, as disposições legais em sentido oposto.

Pois bem.

São há muito públicos – quanto à temática do aborto – os propósitos de alguns dos integrantes da Corte Suprema. O Min. Marco Aurélio Mello, em 2008, após trazer novamente à tona o tema da anencefalia, concedeu entrevista à revista Veja, intitulada “Pelo Fim da Hipocrisia”, da qual se extraem os seguintes fragmentos:

Tomei como base o resultado da recente votação na corte do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. Se esse debate tivesse ocorrido em 2004, muito provavelmente o resultado não teria sido o mesmo. Embora a decisão a favor do uso de células-tronco tenha sido apertadíssima (6 votos contra 5), representou uma abertura do Supremo. Por isso, acredito que agora a Casa aprovará a interrupção da gestação de anencéfalos. Desta vez, a votação será menos apertada do que foi no caso das células-tronco. Diria que teremos um 7 a 4 ou um 8 a 3. E, depois que o Supremo bater o martelo, não adiantará recorrer ao Santo Padre.(…) O debate atual é um passo importante para que nós, os ministros do Supremo, selecionemos elementos que, no futuro, possam respaldar o julgamento do aborto de forma mais ampla. (…) O tema anencefalia é um gancho para discutir situações mais abrangentes e fronteiriças. Em minha opinião, os casos de interrupção de gestação de anencéfalo e os de aborto de forma mais abrangente, quando a gravidez não é desejada, possuem um ponto importante em comum: o direito de a mulher decidir sobre a própria vida. O princípio que está em jogo nessas situações é o do direito à liberdade. (…) É preciso esclarecer que a vida pressupõe o parto. O Código Civil prevê o direito do nascituro, ou seja, daquele que nasceu respirando por esforço próprio. Enquanto o feto está ligado ao cordão umbilical, a responsabilidade é da mulher que o carrega. Quando a vida é totalmente improvável ou indesejada, deve ser discutida(…) A eutanásia pressupõe uma irreversibilidade da vida. Mediante laudos médicos que comprovem o quadro, as decisões poderão ficar a cargo de outra pessoa. Afirmo isso com base no princípio da dignidade da pessoa humana. E não pode haver dignidade com uma vida vegetativa (…) Meu tempo na corte dura mais oito anos, quando completarei 70 anos. E tenho certeza de que ainda estarei aqui quando essas discussões acontecerem. A tendência é de uma abertura cada vez maior do Supremo em relação a esses temas. Mesmo porque outros ministros, alguns com visões mais conservadoras, se aposentarão antes de mim.(…) Sou acima de tudo um interlocutor da sociedade. Nós, integrantes do Supremo, os guardiões maiores da Constituição, não podemos nos render à apatia, que é o mal do nosso século. A Justiça tem o dever de agir sempre que for provocada.” (g.n.)[xii]

                                           Por trás da ADPF 54 (ajuizada em 2004 e julgada em 2012) e após outras tentativas mal sucedidas[xiii] de fazer avançar a pauta abortista, havia já o evidente interesse de abrir espaços e galgar as barreiras jurídicas para uma futura legalização do aborto no Brasil. Da petição inicial, constou:

     “A presente ação é proposta com o apoio técnico e institucional da ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (…) A ANIS apenas não figura formalmente como co-autora da ação à vista da jurisprudência dessa Corte em relação ao direito de propositura”.[xiv]

                                        A ANIS[xv] é uma entidade fundada e dirigida pela professora da Universidade de Brasília, Débora Diniz, que, em 2004, logo após a apresentação da ADPF 54, foi apontada pela Revista Época como

    “a principal estrategista da articulação que resultou na instalação do aborto no topo da agenda nacional. A liminar do Supremo foi o ápice de uma delicada arquitetura política iniciada anos antes”.[xvi]

                                          Nessa mesma matéria jornalística, em resposta às perguntas, disse Debora Diniz:

             “Na anencefalia estamos falando de alguma coisa que jamais vai chegar a ser alguém, portanto nunca vai poder pleitear o seu direito de estar no mundo”.

Respondendo sobre se “a vitória definitiva no STF pode significar a porta de entrada para a liberalização do aborto?”, Debora Diniz mencionou:

                 “Pela primeira vez o Supremo vai dizer que direitos reprodutivos dizem respeito aos preceitos constitucionais da liberdade, da dignidade e do direito à saúde. Se isso vai ser um caminho para a legalização do aborto, a história vai mostrar.”

Sobre a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), autora da ação, e sobre o advogado que a representava, disse a entrevistada:

              “(…) A CNTS é uma entidade de classe que se preocupa com os direitos humanos, o Luís Roberto Barroso, autor da ação, é um advogado humanista. Formamos uma parceria estratégica.” (g.n.)

Com efeito, representou a entidade autora dessa ação – em que se discutiu a descriminalização do aborto em casos de anencefalia (ADPF 54) – o então advogado Luís Roberto Barroso (hoje ministro integrante do próprio Supremo Tribunal Federal). Por ocasião do julgamento da ação, em sua sustentação oral, no plenário da Suprema Corte, com o manifesto intento de pavimentar o caminho para uma ampla e futura liberação da prática abortiva, argumentou:

       “ (…) hoje, perante este tribunal, está em jogo uma questão decisiva, que é a de seus direitos reprodutivos. É esta a questão que verdadeiramente se discute aqui, nesta manhã. O direito que a mulher tem de não ser um útero à disposição da sociedade, mas uma pessoa plena na sua liberdade de ser, de pensar e de escolher. Senhores ministros, desde a noite dos tempos, muitos séculos de opressão feminina nos contemplam no dia de hoje. (…) A verdade não tem dono. (…) Nessa matéria, Senhores Ministros, como todos sabemos, o processo legislativo, o processo político majoritário não produziu uma solução. E, quando a história emperra, é preciso que uma vanguarda iluminista faça com que ela avance. E este é o papel que o Supremo Tribunal Federal poderá desempenhar no dia de hoje. Qualquer um dos fundamentos (…) servirá para acolher o pedido. Mas se este Tribunal reconhecer e proclamar que a mulher tem o direito de interromper a gestação no caso de gestação de um feto inviável – em nome dos seus direitos reprodutivos – este será um dia para não esquecer, será o marco zero de uma nova era para a condição feminina no Brasil.” (g.n.)[xvii]

                                               Conforme já se viu, constando como razão de decidir da ADPF 54 o referido fundamento (LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO), como de fato constou de modo expresso da ementa do acórdão, supõe-se, naturalmente, nele esteja depositado o entendimento da maioria dos ministros da Corte Suprema.

     No ano seguinte ao julgamento, de entrevista publicada em 02 de novembro de 2013, consta a seguinte resposta do já empossado novo ministro da Suprema Corte, Luís Roberto Barroso, a uma pergunta que lhe foi formulada:

 Jornalista – “Até hoje temos uma legislação antiga que criminaliza o aborto. O senhor acha que é um tema que o Supremo poderia resolver?”

                                          Eis a resposta do Ministro:

           “Sobre as questões que envolvam o Supremo, só gostaria de falar olhando para trás. Não gostaria de falar olhando para frente, porque isso poderia comprometer minha atuação como juiz. Mas tenho facilidade de responder a sua pergunta porque, no caso de anencefalia, se você ouvir a minha sustentação final (como advogado) e os memoriais finais que apresentei em nome da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, a tese que eu defendia era a da liberdade reprodutiva da mulher. Portanto, a mulher tem o direito fundamental a escolher se ela quer ou não ter um filho. E esta tese vale para a anencefalia, como vale para qualquer outra gestação. O meu ponto de vista é transparente desde sempre. Se eu acho que o Supremo pode ou deve fazer isso, eu não vou te responder.”[xviii]                    

                                               Passados mais 03 anos, sucedeu, então, em novembro de 2016, que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 124.306, por maioria decidiu, nos termos do voto-vista do Min. Luís Roberto Barroso (que atuara como advogado da entidade autora no caso da ADPF 54), pela inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Da ementa do voto vencedor, extraem-se os seguintes trechos:

    “DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. (…)”

“(…) A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.”[xix]

A respeito da decisão viria a se manifestar, em 10 de janeiro de 2017, em entrevista, a professora Debora Diniz, nos seguintes termos:

    “É uma decisão profundamente importante de um caso específico,que mostra que o Supremo parece estar preparado para enfrentar o aborto como uma questão constitucional e de direitos fundamentais das mulheres. É potente quando o ministro Luís Roberto Barroso diz que o aborto não pode ser crime, pois viola direitos fundamentais das mulheres.”[xx]

                                               Outras ações que buscavam valer-se da sanha ativista da Corte Suprema para fazer avançar a agenda abortista foram ajuizadas nos últimos anos, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5581/DF, ainda pendente de julgamento, com pretensão deduzida para descriminalizar a conduta abortiva relacionada a gestantes contaminadas pelo Zika vírus.

 Em março de 2017, supostamente maduros os tempos para se alcançar o propósito inicial – o da ampla liberação da prática abortiva pela via judicial – um partido político ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442) buscando que a Suprema Corte possa vir a declarar – com eficácia geral e efeito vinculante – “a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas, por serem incompatíveis com a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres e a promoção da não discriminação como princípios fundamentais da República, e por violarem direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento.”

Em suma, foi deduzida a pretensão de descriminalizar, agora indistintamente, pela via do ativismo judiciário, o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação.[xxi]

                                              Na petição inicial da ADPF 442, reconheceu-se claramente a estratégia adotada pela agenda abortista e pela cultura da morte: um caminho passo a passo percorrido (um iter viabilizado pelo Ativismo Judicial), que se iniciou com o julgamento concernente às células-tronco embrionárias, passou pelo julgamento da anencefalia e pela concessão da ordem no Habeas Corpus 124.306 e, agora, encontra-se na fase de obter – com efeito vinculante e aplicação para todo o país – a liberação da prática abortiva até os três meses de gestação. Vejamos – nesse sentido – algo do que é citado na petição:

É do aprendizado da interpretação constitucional deste Supremo Tribunal Federal (STF) e de tantas outras cortes constitucionais que direitos fundamentais adquirem sentido pleno do justo na convivência harmoniosa entre si e com outras normas constitucionais. As afirmações jurídicas, segundo Dworkin, “combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro: interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento”. Esse processo Dworkin nomeia “o direito como integridade”, em que a coerência é tanto vertical quanto horizontal. É a partir do direito como integridade que se deve entender a linha de continuidade entre as decisões desta Suprema Corte no HC 84.025, ADI 3.510, a ADPF 54 e HC 124.306, os quais estabeleceram premissas para o enfrentamento da questão constitucional do aborto.” (g.n)

                                               Consta, ainda, da petição inicial:                   

A presente ADPF deve, portanto, ser entendida como resultado de um processo cumulativo, consistente e coerente desta Suprema Corte no enfrentamento da questão do aborto como uma matéria de direitos fundamentais: na ADI 3.510, a Corte superou a pergunta sobre o início da vida como condição de possibilidade para a constitucionalidade da pesquisa com embriões e fundamentou a interpretação de que não há como se imputar aos embriões o estatuto de pessoa ou mesmo o caráter absoluto do direito à vida; na ADPF 54, a Corte alinhou-se a tendências de cortes internacionais no enfrentamento da questão do aborto por causais, além de reafirmar a interpretação de que não há direito absoluto em nosso ordenamento constitucional. No HC 124.306, a maioria da Primeira Turma do STF interpretou a questão do aborto como decisão reprodutiva moralmente razoável das mulheres, cuja criminalização viola seus direitos fundamentais. É, portanto, na compreensão do direito como integridade, nos sentidos horizontal e vertical propostos por Dworkin, que esta ADPF demonstra a inconstitucionalidade da criminalização do aborto no Brasil.  Este é novamente o papel urgente reclamado a esta Corte…” (g.n.)

            Mais:

“Não é pela representação política que a Corte assenta a legitimidade de suas decisões, mas pela representação argumentativa do cidadão, pois, como sustenta Robert Alexy, “O princípio fundamental: ‘Todo o poder estatal origina-se do povo’ exige compreender não só o parlamento mas também o tribunal constitucional como representação do povo. A representação ocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidadão politicamente, o Tribunal Constitucional, argumentativamente” É na representação argumentativa da ordem democrática que o STF já enfrentou “questões difíceis” vinculadas ao princípio da dignidade da pessoa humana para a garantia de projetos de vida plurais e razoáveis, como foi a demanda por união civil entre pessoas do mesmo sexo, ADPF 132. Na última década, esta Corte sedimentou-se como instância de reflexão do processo político, segundo os termos de Alexy, ou na expressão de Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, como instância para “a pedagogia dos direitos fundamentais, contribuindo para um processo civilizatório mais elevado”. (…) Para sustentar a “exemplar desenvoltura” com que o STF tem enfrentado as questões difíceis, Ministro Gilmar Mendes lembrou o caso Roe v. Wade como confronto argumentativo que não causou “ruptura do ponto de vista institucional e democrático”. Ao enfrentar estes casos, a Suprema Corte demonstra ser também “a Casa do povo, tal qual o parlamento”, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes.”    

A ADPF 442 foi distribuída à relatoria da Ministra Rosa Weber[xxii] – uma das vozes convergentes a do Min. Luis Roberto Barroso por ocasião do julgamento do acima aludido Habeas Corpus 124.306. A Ministra Weber, em abril de 2018, argumentando que a “complexidade da controvérsia constitucional, bem como o papel de construtor da razão pública que legitima a atuação da jurisdição constitucional na tutela de direitos fundamentais, justifica a convocação de audiência pública, como técnica processual necessária, a teor do art. 6º, §1º, da Lei n. 9.882/99, e dos arts. 13, XVII, e 154, III, parágrafo único, ambos do RISTF”, convocou a audiência[xxiii], que se realizou nos dias 03 e 06 de agosto de 2018. Noticiou-se que – do total dos inscritos selecionados – ampla maioria era de apoiadores da pretensão de liberação do aborto.[xxiv] 

Sobre o ajuizamento da ADPF 442, foi publicada, no dia 2 de agosto de 2018 (dia imediatamente anterior à audiência pública), entrevista com a professora Debora Diniz, na qual, perguntada sobre qual a sua expectativa sobre como o Plenário vai se posicionar nesse caso?”, declarou:


“Débora Diniz A expectativa com relação à ADPF, embora esse não seja ainda o momento da votação, é a de que a corte compreenda também o caminho de coerência da jurisprudência que tem havido desde o julgamento das pesquisas com células tronco, caminhando para o julgamento da anencefalia, casos em que há uma interpretação sólida sobre o que significa a proteção dos direitos fundamentais na questão do aborto. Então a expectativa é que o Plenário siga a posição consolidada em ações anteriores.”

  O eventual êxito dos responsáveis e apoiadores da ADPF 442 representará mais um fundamental passo para o avanço da agenda abortista. A Arguição poderá vir a ser pautada para julgamento em futuro próximo.

PARTE III – O Ativismo Judicial como principal indutor de uma nova ética de valores relativos (ou A instrumentalização dos ‘direitos humanos’ contra o próprio ser humano)

Abstraída a inviabilidade de o legislador humano revogar preceito de lei natural, é preciso recordar que, após as muitas discussões, relacionadas ao tema do aborto, travadas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, os constituintes optaram claramente por relegar a disciplina da repressão ao aborto ao âmbito da Lei Ordinária.

Bem por isso, a Advocacia Geral da União, em parecer ofertado no bojo da ADPF 442, recordou:

“A opção dos constituintes por não constitucionalizar a disciplina normativa aplicável ao aborto também foi retratada pelo Deputado Bernardo Cabral, responsável pela relatoria da Comissão de Sistematização da Assembleia Nacional Constituinte. Confira-se:

‘Peço-lhes atenção para um argumento que, desde as Subcomissões, comissões temáticas, passando pela Comissão de Sistematização, tende a transferir para a legislação ordinária a competência para legislar sobre o assunto. Nem proibir um nem permitir outro. (Palmas.) (…) Aí está resolvida a questão, sem que possamos infletir para o caminho terrível do crime inafiançável. Esta Casa deve ser imparcial no que diz respeito às razões religiosas, sem entrar no mérito da questão. Deixemos, portanto, essa decisão à legislação ordinária, que tem demonstrado ser sábia no particular.’

Percebe-se, assim, que a ausência de disposição constitucional a respeito do aborto não derivou de suposto descuido ou omissão dos parlamentares. Tem-se, na verdade, uma clara decisão do Poder Constituinte originário no sentido de delegar, ao legislador infraconstitucional, a competência para dispor sobre o tema, mantendo, desse modo, a vigência da legislação pré-constitucional. Ademais, desde a promulgação da Carta de 1988, o aborto tem sido objeto de reiterados debates pelo Congresso Nacional, o qual, como dito, não permaneceu inerte sobre a matéria”.[xxv] (g.n.)

                                      Ainda, por ocasião dos debates travados, outros constituintes manifestaram-se:

            “Entende o Relator que, a partir da observação inequívoca de uma tendência dominante nesta Assembléia Nacional Constituinte, a questão da prática do aborto não é matéria constitucional e deve ser remetida à lei ordinária. (…) E dá o Relator o mesmo tratamento à pena de morte, que também não consta deste texto.” [xxvi]

Vê-se, claramente, que os dispositivos que criminalizam a conduta abortiva foram recepcionados pela nova ordem constitucional e qualquer alteração nessa disciplina (ressalvada novamente a inviabilidade de o legislador humano revogar preceito de lei natural) depende, conforme intenção expressa do legislador constituinte, de ulterior deliberação parlamentar. 

Após a promulgação da Constituição, o Congresso Nacional, por diversas vezes e após intensas discussões, em consonância com os valores do povo que representa e com os basilares valores civilizatórios, manifestou-se pela rejeição completa das tentativas de legalização do aborto.[xxvii]

Bem ao contrário do que os promotores da agenda abortista sustentam, os representantes eleitos do povo brasileiro nunca se omitiram quanto à questão. Sempre rechaçaram legalizar o aborto.

Não por outro motivo os defensores da referida agenda passaram a ver – há muitos anos e como de fato ainda o fazem – o Judiciário como a via possível à concretização de suas pretensões.

Nesse contexto, não nos podem passar despercebidas as declarações da então Secretária de Direitos Humanos (em gestão do executivo federal já finalizada), Flávia Piovesan, constantes de matéria publicada pela BBC:

                    “Piovesan explicou que os poucos avanços no caminho pela consagração de direitos humanos no país não vieram de iniciativas do Legislativo – e que, por isso, buscará suporte no Judiciário.

                     “O que se caminhou na pauta LGBT com esse Congresso? Nada. O que se caminhou no campo dos direitos reprodutivos? Nada. Mas no Supremo tivemos ganhos (em referência à autorização do STF à união civil homossexual). Sendo franca, eu vejo o Poder Judiciário como o locus estratégico para que avanços ocorram”.

                     Ela citou como vitórias jurídicas importantes a definição de relação homoafetiva estável e o direito à interrupção da gravidez em casos de bebês sem cérebro, ambos temas que contaram com forte oposição de grupos religiosos, e teme as consequências do fortalecimento político de deputados ligados a grupos conservadores.

                    “Eu acho muito arriscado o empoderamento das bancadas mais conservadoras com pautas muito contrastantes com os direitos humanos de forma explícita”, ponderou.”[xxviii](g.n.)

Bem observados, porém, os chamados ‘novos direitos humanos’ defendidos pela agenda abortista nada tem de humanos. São, na verdade, um artifício destinado a manipular o sistema legal e instrumentalizar o Judiciário e seus juízes ‘empoderados’ por um desenfreado ativismo para, contornando as legítimas opções do povo e de seus representantes, impor-se um novo fundamento ético à ordem jurídica.

Nesse processo, a Ética clássica (fundada no fazer o bem e no evitar o mal) – dedutível da natureza das coisas e da natureza humana e que se espraia para o âmbito jurídico pelo princípio de que se deve fazer o bem, não qualquer, mas o devido a outrem, e evitar o mal, não qualquer, mas o nocivo a outrem – é substituída por uma nova ética universal de valores relativos e uma nova ética universal de vida sustentável: dissolução da natureza humana, ecologismo messiânico e difusão da ideia de controle populacional e do abortismo (lido agora como um ‘novo’ direito humano – um direito sexual e reprodutivo). 

Teorias e mecanismos de um propalado constitucionalismo democrático e dialógico – ao estimularem a participação e manifestação de atores sociais no curso de processos de controle de constitucionalidade – buscam, em vão, resgatar (ou mesmo conferir) um status de legitimação que se perdera em razão da alta carga ativista-volitiva dos tribunais constitucionais, com evidente e consequente depreciação do papel do Parlamento.

É por meio da manipulação da linguagem e com a gradativa modificação do conteúdo semântico de conceitos-chave genéricos e de muitos dos nominados ‘direitos fundamentais’ que avança a pauta ideológica do aborto. A expressão ‘direitos humanos’ e seu conteúdo são submetidos a um processo de ressignificação, para o que são utilizados os meios de propaganda em massa e a estrutura educacional formal. Há uma releitura dos nominados ‘direitos humanos’, com adição de novos direitos sexuais e reprodutivos, gênero do qual seria espécie o direito ao aborto.

Segundo essa novel agenda, o Estado não deve intervir na liberdade, privacidade e autodeterminação de cada indivíduo, entendidas como abrangentes de um livre exercício da reprodução humana. A liberdade de decidir ‘se’, ‘quando’ e ‘como’ reproduzir-se seria, então, incompatível com a criminalização da conduta abortiva, constituindo a repressão penal ao aborto até mesmo uma forma de tortura às mulheres. Não somente: o Estado deve intervir com a promoção e execução de políticas públicas que garantam o efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, assegurando a saúde sexual e reprodutiva, incluindo-se os meios de acesso e recursos para a prática do aborto.

Colocado o quadro, via ativismo judicial e sob o manto de artificiosa escusa de se tratar de legítimo modo de, desempenhando uma função contramajoritária, fazer atuar ‘direitos fundamentais’ (ressignificados agora), ganha força um projeto ideológico que visa à integração ao ordenamento jurídico de uma determinada pauta de valores, dentre eles, aqueles caros à agenda abortista, conflitantes com a natureza humana e divergentes dos estampados na própria Constituição e nos costumes e tradições da sociedade brasileira.

Os direitos humanos são, então, instrumentalizados contra o próprio ser humano, revelando-se, ainda, na discussão sobre o aborto, a absoluta contradição da invocação de uma atuação contramajoritária: afinal, o direito fundamental de minoria em questão é evidentemente o direito à vida do nascituro, mais fraco e completamente indefeso!

  Resta cada vez mais claro que se procura emprestar uma aparência democrática a uma ditadura de juízes iluminados. Uma ditadura com aparência de legalidade e legitimidade, a produzir um simulacro de democracia constitucional, no qual os valores civilizacionais mais caros – a começar pela vida humana –, as disposições legais e as próprias previsões constitucionais deixam de significar aquilo que na realidade são, passando a expressar valores outros por meio de uma transmutação discricionária operada pelo intérprete ativista. Ignoram-se, assim, as próprias origens romano-germânicas do sistema da civil law e os limites da Separação dos Poderes.

 É assim que, recorrendo-se ao ativismo judicial, matérias como o aborto – que, no parlamento, não se logra aprovar, por força de alguma vigilância, de legítima pressão popular e de episódios de expressa rejeição – encontram possibilidade de viabilização jurídica pela pena do juiz ativista, em especial quando atuante na Corte Suprema.

    A quadra atual realmente é grave: sob o falacioso argumento de garantia dos postulados de laicidade do estado e dos direitos fundamentais das minorias contra deliberações parlamentares, pelo Supremo Tribunal Federal -vergado sob a grita do politicamente correto da vanguarda iluminista – regras básicas de organização do Poder, os bens jurídicos constitucionais e os pilares civilizatórios mais elementares foram e estão sendo ignorados.

    Mais: a situação que assistimos revela-se como fortemente tendente ao incremento da já excessiva politização – no pior senso – das nomeações dos juízes do Supremo. 

     Se ao Poder Judiciário foram confiadas funções de guardião de garantias fundamentais, mostra-se evidente que o atuar independente daqueles que exercem a função judicante é pressuposto básico para que tal mister se desenvolva em plenitude. No entanto, quando magistrados deixam de conduzir-se sob o manto da virtude judicial da autocontenção, incorporando um ativismo judicial imoderado, colocam em risco valores fundamentais, a estabilidade das instituições e todo o sistema jurídico e político. Por seus membros assim agindo, o Poder Judiciário acaba por atingir diretamente o princípio da separação dos poderes, abalando a estrutura republicana e democrática, criando tensionamentos cujas consequências chegam a ser imprevisíveis.

     Não por outro motivo, as reações a tal estado de coisas já se fazem sentir. Inevitável que, para contenção da escalada de agravamento da situação de repetidos episódios de flagrante usurpação – pelo Judiciário – do Poder Constituinte, reaja o Parlamento, divisando como necessário remédio legal – pois onde falta a virtude a lei deve, para o bem comum, coagir – a tipificação, como crime de responsabilidade, da conduta de usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, sujeitando-se ao impeachment o juiz do Supremo Tribunal que na conduta incidir.[xxix] Para mais, reformas constitucionais com implicações no sistema de freios e contrapesos passam a ser seriamente consideradas.

Parte IV – Conclusão

     Os brasileiros estão a enfrentar, em razão da tramitação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 442, (mais) um frontal ataque, via Poder Judiciário, ao bem jurídico pressuposto de todos os demais, a vida humana.

     Dos Ministros da Corte Suprema, espera-se ao menos que, por dever jurídico e moral, façam a anamnese das ideias-base de decisões que – chamando o mal de bem e o bem de mal – já tomaram e de que estão para tomar. E, no tempo que lhes é dado possam decidir pela preservação da vida e de seu sagrado valor, assim preservando a higidez do nosso já combalido sistema político, lembrando-se de que todo atentado contra o bem fundamental da vida reclama do ordenamento contundente reação e atrai também, para proteção à vida do nascituro indefeso – ser humano como todos nós em igual grau de dignidade -, a tutela penal.

                                          Não se enganem, entretanto, os brasileiros. A intenção é clara e a guerra contra a vida recrudesce: pretende-se, passa a passo, chegar-se à completa liberação jurídica da prática abortiva. Ante a iminente ameaça à vida de milhões dos futuros filhos desta Pátria, que por si só não poderão se defender, despertemos para o dever moral do bom empenho do tempo que nos é dado. A guerra pela vida de milhões de pequenos inocentes ainda não nascidos avança para as decisivas batalhas. O mal se faz presente e se fortalece. Trata-se do maior atentado à dignidade humana de nossa história. A via do ativismo judicial é o atalho escolhido para a legitimação do genocídio de indefesos seres humanos!


[i]O Senhor dos Anéis. J.R.R.Tolkien. Martins Fontes, São Paulo, 2001. Cap. II – A Sombra do Passado – pgs. 52-3.

[ii] Constituição Federal: art. 1.º, III (dignidade da pessoa humana como fundamento da República); art. 5.º, caput (igualdade, sem distinções de qualquer natureza, e inviolabilidade do direito à vida) e incisos III (proibição da tortura), XLI (vedação à discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais), XLIII (repressão à tortura), XLVII, ‘a’ e ‘e’ (vedação à pena de morte e às penas cruéis), e parágrafos 1.º, 2.º e 3.º; art. 227 estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à vida, dentre outros. Código Civil: art. 2º. “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”. Exegese sistemática dos artigos 1º, 2º, 6º, e 45, caput, do Código Civil; direito do nascituro de receber doação, herança e de ser curatelado (arts. 542, 1.779 e 1.798 do Código Civil). Estatuto da Criança e do Adolescente: art. 7º. “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.” Código Penal: artigos 124 a 127.

[iii] Tratados e Convençoes internacionais resguardam o direito à vida do nascituro (tratados Internacionais de Direitos Humanos gozam de um status supralegal, ou seja, inferior à Constituição, mas acima de todas as leis). Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos).; “art. 1º, n. 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano. art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica. art. 4º, n. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança: “Tendo em conta que, conforme assinalado na Declaração dos Direitos da Criança, ‘a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento’”.

[iv] “Há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante. Garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais” RECURSO ESPECIAL Nº 1.415.727 – SC (2013/0360491-3) RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO .

[v]Sintomático notar que, esquecida a noção do Verdadeiro Absoluto, pululam as crendices de todo gênero.

[vi]Acordão ADPF 54 – Inteiro Teor <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334> Acesso em 06.08.2019.

[vii]CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. Quem é o anencéfalo? É preciso conhecer aquele que está no banco dos réus do Supremo Tribunal FederalRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10n. 90121 dez. 2005. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/7747&gt;. Acesso em: 6.8.2019. V. https://jus.com.br/artigos/7747/quem-e-o-anencefalo. Ainda, no fundamentado artigo: “Segundo o Comitê de Bioética do Governo Italiano, “na realidade, define-se com este termo uma má-formação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, na qual se verifica ‘ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem e grau variado de má-formação e destruição dos esboços do cérebro exposto’”.

[viii]http://www.governo.it/bioetica/.

[ix] O temor do Min. Ricardo Lewandowisk, manifestado em seu voto que rejeitou a pretensão, revelou-se completamente fundado: ”É fácil concluir, pois, que uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente, além de discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico, diante dos distintos aspectos que essa patologia pode apresentar na vida real, abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extra-uterina. Insista-se: sem lei devidamente aprovada pelo Parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto da Rocha Tarpéia, ao arbítrio de alguns, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”.

[x] Bem por isso concluiu o Comitê de Bioética do Governo Italiano:” O  anencéfalo é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade.”

[xi] Art.128 –  Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (g.n.)

[xii] Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/ministro-defende-o-aborto/; http://arquivoetc.blogspot.com/2008/08/aborto-interrupo-da-gravidez-de.html;

https://www.deuslovult.org/2008/08/30/pelo-fim-da-hipocrisia/. Acesso em 7.08.2019.

[xiii] O tema do aborto dos ‘anencéfalos’ já havia chegado à Corte Suprema pelo Habeas Corpus 84.025-6/RJ. Tendo ocorrido o parto antes do julgamento, a Corte decidiu pela prejudicialidade do writ.

[xiv]<http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/63_peticao_inicial_1.pdf>. Acesso em 06.08.2019.

[xv] Sobre o financiamento da agenda abortista no Brasil e a Fundação Ford, conferir: <https://www.fordfoundation.org/media/1719/2002-os_40_anos_da_fundacao_ford_no_brasil.pdf.> Acesso em 06.08.2019.

[xvi] <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT757558-1666-1,00.html>. Acesso em 06.08.2019.

[xvii]Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=plUKobkpBB4. Acesso em 6.08.2019.

[xviii] Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/e-preciso-uma-revolucao-no-modo-como-supremo-atua-diz-ministro-luis-roberto-barroso-10669190. Acesso em 06.08.2019.

[xix] Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf. Acesso em 6.08.2019.

[xx] Disponível em  https://revistatrip.uol.com.br/tpm/debora-diniz-descriminalizacao-do-aborto-stf-zika-anencefalia-anis-mulheres-pobres. Acesso em 6.08.2019.

[xxi] Petição inicial disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/psol-stf-descriminalize-aborto-meses.pdf. Acesso em 7.8.2019.

[xxii] Andamento disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865. Acesso em 7.8.2019.

[xxiii] Decisões disponíveis em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313996268&ext=.pdf

https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314743803&ext=.pdf; https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314531677&ext=.pdf

[xxiv] Notícia disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/justica/primeiro-dia-de-audiencia-publica-sobre-o-aborto-no-stf-dura-12-horas-8ukkfvnj3cq6uvj8r22idfk55/. Acesso em 7.08.2019.

[xxv] http://www.agu.gov.br/page/download/index/id/38121647. Acesso em 12.06.2018

[xxvi] https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf, DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (Suplemento “C”), pg. 138.

[xxvii] Sobre a manifesta e reiterada rejeição parlamentar a inúmeros projetos de lei da agenda abortista, v. o item 4.1 (cap 4) da muito bem documentada obra da advogada e professora Lília Nunes dos Santos (Santos, Lília Nunes dos. Aborto: a atual discussão sobre a descriminalização do aborto no contexto da efetivação dos direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2016).

[xxviii] Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36545585. Acesso em 7.08.2019.

[xxix] Inteiro teor do projeto 4754/16: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=176904ED18AED08831FABD77DF60547E.proposicoesWebExterno2?codteor=1443910&filename=Tramitacao-PL+4754/2016.

Parecer do rel. na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=176904ED18AED08831FABD77DF60547E.proposicoesWebExterno2?codteor=1493573&filename=Parecer-CCJC-21-09-2016.

O ESTADO TOTALITÁRIO E A AUSÊNCIA DE CARIDADE

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Ultimamente tenho ido para o trabalho de metrô. Confesso que é uma experiência sociológica; muitas vezes uma cena de horror diante da selvageria, das conversas frívolas e altas, das “roupas” (ou falta delas) que se usam hoje em dia, para não falar que muitos jovens se sentam no chão, debocham, sentem-se verdadeiros “donos do universo”. Livro e jornal são algo escasso. Todos ou quase todos estão nas redes sociais ou ouvindo música, se é que se pode chamar de música, o funk e outros ruídos mais. Não contentes, querem que os passageiros à sua volta saibam que eles têm mau gosto.

 

Abstraindo-se de tudo isso, sempre me deparo com a mesma cena. Assentos privativos de “idosos, gestantes, pessoas portadoras de necessidades especiais” ocupados por jovens e não tão jovens que fingem não perceber que os ocupam indevidamente.

 

Fico a olhar aquela plaquinha azul e a me lembrar do tempo em que elas não existiam. Do tempo em que cadeirinhas e cinto de segurança não eram obrigatórios. Do tempo em que sal na mesa de restaurante não era assunto de saúde pública; do tempo em que corrigir um filho malcriado com um bom tapa , criava gente decente, que pedia bênção aos pais, que respeitava os avós e professores e  havia  autoridades que eram honestas e trabalhadoras. Do tempo em que direito de propriedade e direito de portar arma eram inerentes à pessoa.

 

Hoje, o Leviatã resolveu regular nossas vidas.

 

O Estado, a quem deveria competir garantir o “bem comum”,  tutelando os direitos dos indivíduos das famílias e dos demais corpos sociais, já que ele existe para o homem, vem, paulatinamente, invadindo a esfera privada de cada um, privando-nos de liberdade e  direitos necessários para que atinjamos o fim último (contemplação da Verdade), perdendo sua própria finalidade, convertendo-se em um órgão antinatural.

Esse Estado Totalitário justifica-se a si próprio como sendo necessário para tolher  o abuso e garantir os “direitos” das minorias.

 

Assim, porque algum maluco ou psicopata resolveu invadir um cinema e matar os que ali estavam, NENHUM de nós pode ter arma para que não possamos cometer o mesmo crime. Não se pensa em punir com rigor aqueles que se desviam do ordenamento jurídico e praticam atos descritos como crimes, mas em impedir que o cidadão , cumpridor de seus deveres e pagador de altos impostos, possa adquirir uma arma (desde que tenha demonstrado aptidão para tal) e se defenda e a sua família de alguma agressão injusta.

 

O Estado babá destina vagas para carros , filas e assentos para idosos, grávidas e demais portadores de necessidades para “educar” o povo.

 

Resultado: os assentos são quase sempre ocupados por quem não atende às especificações acima; e, se isso ocorre, quando um idoso ou uma grávida adentra o meio de transporte, acaba por ficar em pé. Afinal, os assentos deles já se esgotaram e os demais passageiros não se sentem convidados a praticar a caridade, o amor ao próximo, cedendo o seu próprio assento a quem mais precisa. Quando o Estado separa alguns assentos preferenciais, naturalmente as pessoas perdem a noção (que, de resto, deveria ser óbvia) de que, em essência, todos os assentos são preferenciais para idosos e gestantes. Não é exagero dizer que a existência desses assentos (e, acrescento, a da ocupação indevida deles) representa a nossa falência moral.

 

Neo-jacobinos

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No último mês, juntamente com um colega de toga, organizamos um evento sobre ideologia de gênero e um dos momentos mais curiosos foi ter ouvido, de outra pessoa envolvida na organização, se o perfil conservador do palestrante não atrairia uma turbamulta enlouquecida de alunos de graduação de humanas, ávidos por invadir o ambiente do evento e impedir sua realização. Eu respondi com uma pergunta: “Liberdade de expressão é fazer calar quem pensa diferente?”.

 Há tempos, ando meio farto da deterioração da liberdade de expressão. Formas disfarçadas de censura, silêncio obsequioso, avisos de conteúdo (“trigger warnings”), espaços seguros (“safe spaces”) e uma série de expedientes autoritários que, no fundo, apontam para uma séria crise do pensamento, pois as autoridades intelectuais passaram a definir para todos a “única pauta correta” na reflexão das questões sociais que nos assolam.

Liberdade de expressão, para esses neo-jacobinos, não representa a possibilidade de escutar ideias distintas, tantas vezes incômodas, e, logo em seguida, abrir o diálogo. Significa, em nome da “tolerância e da diversidade”, acantonar esses “desajustados ideológicos” nas catacumbas do silêncio no debate público.

À primeira vista, nada é mais oposto à tolerânia e à diversidade do que ver um bando de crianças histéricas, filhotes intelectuais daqueles neo-jacobinos, carregando faixas de repúdio e proibindo a expressão de terceiros. Se eu fosse o dito palestrante, levaria umas fraldas e umas mamadeiras, no meio do notebook e dos livros, para distribui-las como bônus para a clientela na plateia.

Também é curioso notar que o liberalismo político conduziu muitos de nós, em muitas pautas sociais, ao mais puro fanatismo ideológico, cujas ideias, por mais toscas, pedestres e limitadas que pareçam, foram alçadas à condição de dogmas no credo político rezado pela turma neo-jacobina.

Para alguns estudiosos, esse crescente fenômeno consiste no triunfo do “hiper-liberalismo”, em outras palavras, o império do liberalismo moderno levado às últimas consequências. Um desses estudiosos, ao explicá-lo, vale-se de Mill, em sua principal obra sobre a liberdade, a qual, segundo ele, teria operado uma crucial virada de entendimento sobre o próprio conceito de liberdade.

Até Mill, a liberdade indicava um campo de autonomia face à lei ou à coação alheia. Depois dele, essa noção de liberdade negativa ganhou contornos positivos: o homem livre é o homem senhor de uma vontade imaculada pelas contigências históricas e culturais. Em bom português, minha identidade dispensa a opinião de terceiros ou de qualquer outra forma de autoridade.

Hoje, vivemos essa noção de liberdade no limite, porque essa auto-estultificação da identidade individual chegou ao centro da hierarquia de valores na qual sempre procuramos viver e, como efeito, tudo o que representava o outro, a autoridade ou a tradição foi despachado para a periferia.

Esse projeto de maximização libertária tem dois efeitos destrutivos. No primeiro, aquilo que nos torna diversos não é uma identidade construída sobre o nada. Somos seres narrativos com história e papéis que nos precedem, os quais transportamos para a identidade que construímos e que nos torna irrepetíveis.

No segundo, a adoração da liberdade como autonomia radical converte-se, ironicamente, numa forma de pensamento único. Surgem as hordas marcadas pela bovinidade intelectual e o hiper-liberalismo converte-se em religião secular: pensar diferentemente deixa de ser uma decorrência natural de seres plurais e racionais e passa a ser uma heresia que ofende os prosélitos dessa nova igreja. Em nome da liberdade, acaba-se com a liberdade.

A reflexão sobre os problemas sociais é construída por todos mediante a prática das virtudes da humildade intelectual, da abertura cognitiva ao outro e, sobretudo, do amor à verdade. Quando vividas, tais excelências nos dispõem a escutar com atenção e respeito àqueles que discrepam daquilo em que acreditamos.

O mesmo Mill, um dia, ensinou-nos que reconhecer a possibilidade de que alguém possa estar no erro é razão suficiente para escutá-lo e levá-lo a sério e não somente tolerar de má vontade os pontos de vista discordantes. E, para quem se julga estar certo, essa atitude de escuta serve para aprofundar sua postura argumentativa e melhorar sua capacidade de defendê-la.

A Receita Comunista Para a Destruição da Família

 

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Parte I.

 

Em nosso último artigo, tratamos de investigar as raízes do ódio comunista à família ao menos no plano de sua fundamentação teórica e de demonstrar, na medida do possível, as fragilidades dessa mesma sustentação. No presente trabalho, ocupar-nos-emos acerca do avanço de tal ideologia sobre o direito pátrio.

 

A visão que Engels (repitamos mais uma vez, apoiando-se quase que inteiramente no antropólogo americano Lewis Morgan) tem da história humana revela muito do que viria a ser o movimento comunista. Uma vez que a propriedade privada e a família foram se formando aos poucos à medida que a evolução darwinista empurrava os agrupamentos humanos rumo à civilização, a conclusão óbvia é que, sendo uma construção da sociedade (e, acrescento eu: da sociedade opressora), então é possível que nos livremos de ambas. Se nem uma nem outra são naturais ao homem, então, podem ser descartadas. E, na visão do Sancho Pança de Marx, inapelavelmente serão, pois os movimentos dialéticos da história nos conduzirão inapelavelmente para o próximo estágio de nosso desenvolvimento social: o comunismo.

Ora, Engels (mais uma vez escorando-se em Morgan) alega que as sociedades primitivas eram todas comunistas. Assim, partimos todos do comunismo primevo, afastamo-nos dele pelo pecado da acumulação de riquezas fomentado no interior das famílias e ao comunismo voltaremos, agora, pela revolução. O comunismo é o ponto de partida e o de chegada da história. O alfa e o ômega; o princípio e o fim de nossa caminhada. Engels consegue unir, numa única explicação da história, Hobbes a Rousseau: o bom selvagem primitivo que um dia caminhou por aqui voltará, de fato, a habitar a terra; porém, isso se dará com uma pequena ajuda de Leviatã.

Não é difícil de perceber, nessa visão ideológica, algo de messiânico; é mesmo como se a narrativa cristã da Queda e da Redenção tivesse sido imanentizada e projetada na história. A salvação dos homens, contudo, não vem da cruz dos novos salvadores da humanidade; antes, vem da revolução do proletariado, a última classe e aquela que nos redimirá pelo derramamento não de seu próprio sangue, mas pelo do seus opressores. O apelo emocional que tal discurso desperta no militante comum é, pois, algo semelhante a um apelo religioso, não sendo de se estranhar que muitos comunistas, mesmo que não crendo em vida após a morte, estão dispostos a sacrificar a que possuem pelo advento de uma sociedade livre de todo mal e de todo pranto. Mas, o advento desse paraíso requer, em primeiro lugar, a destruição da família. Como pontificou Kate Millett, célebre feminista americana radical, em sua obra de referência Sexual Politics (g.n.): “o resultado radical que surge da análise de Engels é que a família, como nós a temos hoje em dia, precisa desaparecer”.[1]

Mas, para isso, era necessário que se dessem determinados passos. Uma instituição tão antiga e tão enraizada no coração dos homens não é abolida senão mediante uma série de medidas destinadas a miná-la desde dentro.

Engels pregava, por exemplo, que, para se chegar à destruição da família, era necessário que a mulher fosse inserida no mercado de trabalho: A ideia de que ela pertence mais ao lar do que à fabrica deveria ser absolutamente demonizada, incentivando-a a lutar por postos de trabalho ombreados com o dos homens.

O problema óbvio que daí deriva é o de que, se elas adentrarem em massa no mercado de trabalho, não haverá quem cuide dos filhos em casa. Essa sempre foi uma das tarefas da mulher e, em virtude dela, é que a divisão sexual do trabalho acabou por levar ao acúmulo de propriedade privada nas mãos do homem e, via de consequência, à própria submissão da mulher na família monogâmica. Não é possível destruir-se a família, portanto, se a mulher continuar a cuidar de seus filhos, pois a imposição de tal tarefa ao sexo feminino é a causa primeira da estrutura familiar tal qual a conhecemos. É por isso necessário que, de um lado, a mulher possa escolher não ter filhos (aborto e contracepção livres são ideais a serem seguidos) e, de outro, que a educação e o cuidado das crianças que vierem a nascer passe das mãos da família para as do Estado. Nas palavras de Engels: “O trato e a educação das crianças vão se tornar assunto público; a sociedade cuidará, com o mesmo empenho, de todos os filhos, sejam legítimos ou naturais.”

Mais do que isso, é absolutamente necessário que o divórcio venha a ser introduzido nas sociedades ocidentais. O vínculo matrimonial não pode mais tender à indissolubilidade; antes, a relação entre homem e mulher deve acabar assim que a atração sexual entre ambos esfrie (as mulheres que me leem podem avaliar se isso realmente atende aos seus interesses), e a separação entre ambos deve ser a mais facilitada possível. Eis o que diz Engels (g.n.):

 

Se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só pode ser moral o matrimônio em que o amor persiste. Mas a duração do acesso de amor sexual é muito variável, segundo os indivíduos, particularmente entre os homens. Em virtude disso, quando o afeto desaparece ou é substituído por um novo amor apaixonado, o divórcio será um benefício tanto para ambas as partes como para a sociedade. Apenas deverá poupar-se ao casal a passagem pelo lodaçal inútil de um processo de divórcio.[2]

 

Até aqui, já se tem um cadinho de medidas bastante drásticas. E os líderes do movimento comunista assimilaram tais ideias desde logo. Assim que Lênin tomou o poder em Outubro de 1.917, tratou de implementar as sugestões de Engels. Segundo a própria Kate Millett:

 

A União Soviética fez um esforço consciente na tentativa de eliminar o patriarcado e de reestruturar sua instituição mais básica – a família. Depois da revolução, toda possível lei foi aprovada para libertar os indivíduos das reinvidicações da família: casamento e divórcios livres, contracepção e aborto a pedido.[3]

Em sua obra A Revolução Traída, Trotsky descreve-o com cores vivas (g.n.):

A revolução (de Outubro de 1.917) tentou heroicamente destruir o velho “lar familiar” estagnado, instituição arcaica, rotineira, asfixiante, no qual a mulher das classes trabalhadoras era votada aos trabalhos forçados da infância até a morte. A família, considerada como uma pequena empresa fechada, devia ser substituída, no espírito dos revolucionários, por um sistema completo de serviços sociais (…) A absorção completa, por parte da sociedade socialista, das funções econômicas da mulher, ligando toda uma geração pela solidariedade e assistência mútua, devia levar a mulher, e portanto, o casal, a uma verdadeira emancipação do jugo familiar. E, enquanto essa obra não tiver sido realizada, quarenta milhões de famílias soviéticas se manterão vítimas dos costumes medievais, da sujeição e da histeria da mulher, das humilhações cotidianas da criança, das superstições deste e daquele. Sobre isto não há ilusões.[4]

 

Trotsky, contudo, percebeu que a revolução não conseguiu lograr o objetivo de destruir a família. Para ele, não houve recursos suficientes para que o Estado soviético conseguisse tecer a rede assistencial que, em seus sonhos, tornariam a família irrelevante e, portanto, facilmente removível da sociedade. Quase que num suspiro de desânimo, na mesma obra acima, ele asseverou (g.n.):

 

Não se conseguiu tomar de assalto a velha família. E não foi por falta de boa vontade. Nem porque ela estivesse firmemente enraizada nos espíritos. Infelizmente, a sociedade mostrava-se demasiado pobre e pouco civilizada. A família não pode ser abolida. É preciso substituí-la.

 

Substituí-la exatamente por quê? Trotsky não o diz. Talvez pelo próprio Estado assistencialista, conforme sugerido na primeira citação. Isso, contudo, não é claro. Mas, coincidência ou não, a substituição da família tradicional por outros “modelos” é estratégia amplamente adotada nos dias de hoje, mostrando-se muito mais eficaz do que o combate direto, o “assalto” à velha família tal qual tentado no começo da implantação do Estado soviético.

De fato, aparentemente, Lênin foi ingênuo ao imaginar que bastava a força motivacional de sua ideologia semirreligiosa para que a nova sociedade perfeita se concretizasse. O enfraquecimento da família, por mais que não se gostasse disso, levava ao enfraquecimento da própria sociedade soviética. Stálin, por sua vez, nutria sonhos de uma campanha militar que o permitisse tomar ao menos boa parte da Europa, percebendo ele, desde logo, que, sem famílias sólidas, qualquer campanha militar seria suicida. Assim, teve ele de, em pouco tempo, não somente reverter os esforços de Lênin, mas tratar de agir em sentido oposto: o divórcio, a contracepção e o aborto foram abolidos da União Soviética e o governo passou a incentivar que a mulher voltasse a ocupar seu lugar tradicional. Famílias numerosas eram benvindas e mesmo campanhas pela castidade entre os jovens passaram a fazer parte do discurso do Estado.

Ou seja, Stálin percebeu que uma sociedade forte depende de famílias fortalecidas. O sonho de Lênin e de Trotsky era exatamente isso: um sonho. E que provavelmente se tornaria um pesadelo caso o novo líder quisesse mantê-lo de pé. Daí que Stálin tratou logo de trazer a URSS de volta para a realidade, ao mesmo tempo em que tratou de exportar o pesadelo para as potências ocidentais de forma a enfraquecê-las.

Onde Lênin fora ingênuo, Stálin soube ser sagaz.

Muitos, porém, acusaram-no de trair a revolução e de “aburguesar” o homo sovieticus. Para mentes envenenadas por ideologias, se a revolução falha (como sempre há de falhar) em mudar a realidade, isso se dá não porque a ideologia revolucionária é ela mesma falha, mas porque os que conduzem o processo da revolução é que se desviaram do bom caminho. A ideologia é sempre boa; falhos são os ideólogos que a põem em prática…

Porém, por mais que o comunismo tenha se mostrado uma tragédia sem precedentes em qualquer lugar em que tenha fincado os pés, o Ocidente, nas últimas décadas, resolveu seguir, exatamente os caminhos acima traçados. Tomemos, como exemplo, o nosso Brasil, país em que a maior parte da população sempre mostrou uma aversão completa ao comunismo.

Quem já estudou um pouco da evolução das legislação e jurisprudência brasileiras pode perceber, claramente, que elas vêm adotando, com exatidão notável, todos os elementos acima.

O divórcio, por exemplo, foi introduzido pela Lei 6.515/77. Pouco depois, a Constituição Federal de 1.988 introduz a ideia de união estável (que, conforme preconizara Engels, dura enquanto perdura o “acesso de amor sexual” entre os companheiros). A legislação que se segue vai aos poucos enfraquecendo o vínculo do matrimônio (tornando-o de dissolução cada vez mais célere ao ponto de “poupar o casal do processo de divórcio”) e incentivando “novas formas de família”. Uma vez que a legislação avança lentamente, a jurisprudência trata de dar saltos cada vez maiores em direção ao ideal de Trotsky: aceita-se um número cada vez maior de “modelos” de família, substituindo o modelo tradicional sem destruí-lo diretamente.

Ao mesmo tempo, a legislação pátria passou a minar as relações familiares, intoxicando-as com o veneno da judicialização dos conflitos. A autoridade dos pais sobre os filhos foi enfraquecida e o Estado passou a monopolizar, de direito e de fato, a educação das crianças. Legislações que garantem o acesso amplo e praticamente irrestrito à esterilização se impuseram, tomando o Estado para si a tarefa de distribuir contraceptivos fartamente aos que o desejam. E mesmo o aborto, em nosso país, avança via decisões judiciais apesar da franca resistência do povo brasileiro.

Eis aí todos os ingredientes da receita comunista: divórcio; contracepção; aborto; educação estatal obrigatória das crianças; reconhecimento de formas de família diversas do modelo tradicional. Como já dito, no Brasil segue-se com exatidão tão notável a cartilha comunista que pressupor que tudo não passa de mera coincidência é coisa de bocós.

Marx e Engels, Lênin e Trotsky ficariam orgulhosos dos brasileiros hodiernos. Já Stálin rir-se-ia de nossa burrice e ficaria feliz ao ver que nós, alegremente, e com ares de superioridade intelectual, vamos minando a família e, com ela, enfraquecendo a tal ponto a sociedade que nos tornaremos, em pouco tempo, incapazes de defender as conquistas civilizacionais de nossos antepassados.

Ao final de tudo, muito embora a maior parte dos brasileiros (talvez mesmo entre os magistrados) abomine o comunismo enquanto sistema econômico, o fato inconcusso é de que são muito poucos os que estariam dispostos a lutar contra todo o patrimônio cultural que os próceres comunistas nos legaram: divórcio, união estável, contraceptivos, etc.. A quase totalidade de nós vê nisso tudo antes um avanço a ser celebrado.

Aos que assim pensam, lamento informar, mas, ao menos de coração, voi siete tutti comunisti. Podem ter vergonha da obra intelectual de Marx e de Engels; podem sentir horror ante a figura assustadora de Lênin ou ante a um tanto quanto patética de Trotsky. Mas isso não muda o fato de que os apoiadores de tais “avanços” são ou idiotas úteis ou companheiros de viagem. E, ao cabo de tudo, acabam importando para nosso país exatamente a fraqueza desejada por Stálin.

Com Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Stálin como inspiradores secretos dos rumos do direito em nosso país, não há mesmo como a receita da destruição social falhar…

 

[1] No original: “The radical outcome of Engels’ analysis is that the family, as that term is presently understood, must go”.

[2] Cf. ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Rio de Janeiro. Ed. Best Bolso, 2.014, E-book

[3] The Soviet Union did make a conscious effort to terminate patriarchy and restructure its most basic institution—the family. After the revolution every possible law was passed to free individuals from the claims of the family: free marriage and divorce, contraception, and abortion on demand

[4] TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. Acesso em 04 de Junho de 2.018. Disponível em: https://ia800605.us.archive.org/35/items/TROTSKYLEON.ARevoluoTrarda/TROTSKY%2C%20LEON.%20A%20Revolu%C3%A7%C3%A3o%20Tra%C3%ADda.pdf

Nossa Cultura ou o que Restou Dela

No mundo cultural, somos atacados por pensadores que, há décadas, produzem ideias que deliberadamente mais destroem que criam. É uma forma de gritos dos ressentidos: revolucionários que acreditam piamente que nenhum tributo deve ser dado ao passado que justamente, no lento cadinho da destilação civilizacional, proporcionou o estado da arte da cultura que essa obstinada turma pretende começar do zero, a partir de uma mistura de tolice, arrogância e inutilidade.

Quebrar os tabus da tradição cultural virou uma transgressão desejável por si mesma. Só aquele que cospe nessa tradição produz um saber dotado de validade para nossos tempos e, atônitos, assistimos a tudo isso como se as conquistas culturais da humanidade sempre tivessem existido e não demandassem um longo esforço geracional para que se perpetuassem.

Na base desses fenômenos, repousa um certo louvor à ignorância, que não significa não saber tal ou qual coisa, dada a natural limitação da inteligência ao discernimento de toda realidade criada, mas que consiste, nesse endeusamento, numa postura de não querer saber. É a ignorância que se revolta contra o conhecimento.

Não me estranha a exaltação dessa “cultura bárbara”, fruto exclusivo de nossa era, em que vivemos numa espécie de estágio terminal do processo de castração intelectual do homem, desencadeado pelo pensamento filosófico na segunda metade do século XX e caracterizado, justamente, por um mal endêmico: a falta de profundidade.

Esse reducionismo do pensamento consome todo o vigor intelectual na solução de problemas práticos, na linha do “como” viver com qualidade de vida, “como” ser um profissional de sucesso, “como” evitar a dor e a doença, “como” ganhar mais dinheiro, ainda que muitos desses problemas não sejam bem problemas e ainda namorem com o pragmatismo e o utilitarismo em suas respostas.

Por outro lado, não se gasta um neurônio para refletir a questão fundamental do “porquê” ou do “para quê”. “Para que” este projeto de vida? “Para que” esta busca incessante pelo meu primeiro milhão? Tudo isso satisfaz as aspirações mais profundas do coração? Proporciona felicidade? Por que trabalho todo final de semana em detrimento da família?

Progride-se tecnicamente e regride-se humanamente. Nietzsche já proclamava que quando se sabe o “porquê”, pode-se suportar qualquer “como”. E com razão. Quando se ignora o “porquê”, “como” são duros o sofrimento, o fracasso, a frustração e a perspectiva angustiosa da morte.

Nosso saber ou o que restou dele tirou do homem a capacidade de pensar para o alto, ao contrário do que fizeram Sócrates, Platão, Aristóteles, Pascal, Agostinho, Aquino, Kierkegaard, Maritain, Gilson, Stein, Ratzinger e tantos outros, que sempre remontaram-se à razão última das coisas.

A cultura contemporânea, perdida de tanto saber, enveredou para um relativismo reinante e se perdeu nas areias movediças de um ceticismo generalizado. Hoje, o conhecimento contenta-se exclusivamente com verdades provisórias, quando não arribadas na mera opinião, tangenciando as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento da realidade humana e do mundo que nos cerca.

O desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre a causa e os fins das coisas é uma propriedade da razão humana. A mediocridade cultural diminuiu a estatura intelectual do homem. Tornou-se um corcunda pensante, envergado sobre o peso das informações, muitas inúteis, que impedem de lhe dar uma formação à altura de sua dignidade ontológica.

A superação intelectual e o desejo de compreender melhor as questões últimas do conhecimento, o que não requer estudos em escola superior ou em curso pós-graduação, é uma boa reação à pasmaceira cultural atual, ditada por pensadores, com raras exceções, que sabem bastante, mas não sabem o fundamental, que sabem muito e não sabem nada. Com respeito à divergência, é o que penso.

Gigante com Pés de Barro

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Quando Marx e Engels lançaram seu “Manifesto Comunista”, no Ano da Graça de 1.848, havia nele algo que parece ter chamado pouco a atenção do, digamos, “militante comum”, mas que, bem captado pelos líderes e pensadores do movimento, tornou-se uma verdadeira bomba destinada a remodelar toda a sociedade ocidental no século e meio seguinte, ainda que o modelo de comunismo lá proposto viesse a se revelar uma espantosa sucessão de fracassos e de tragédias. Falo, aqui, do ódio (a palavra não é um exagero) de ambos à família tradicional. Eles o dizem abertamente e com um certo ar de arrogância: seu desejo é o de destruir a família “burguesa”, vista como célula de exploração da mulher e dos filhos pelo homem. Para os que não o creem, abro aqui um espaço para que eles mesmos o digam:

A supressão da família! Mesmo os mais radicais exaltam-se com esse infame desígnio dos comunistas. Sobre o que repousa a família atual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o lucro privado. Somente para a burguesia ela existe de forma plenamente desenvolvida; mas ela encontra o seu complemento na carência de família imposta aos proletários e na prostituição pública. (…) Vocês censuram-nos querer suprimir a exploração dos filhos pelos pais? Nós confessamos esse crime.[1]

A ideia é tão francamente absurda que prosseguiu como que escondida durante o avanço do movimento comunista. Jamais (ao menos, até onde eu saiba) foi ela proclamada aos quatro ventos ao militante comum, mas, desde sempre, foi assimilada e trabalhada por aqueles que lideravam o movimento comunista na esfera intelectual e que, ao cabo de tudo, eram os que detinham (e ainda detém) o poder de comandar as ações.

As razões de tanto ódio e de tanta bile destilados contra a família tradicional, contudo, não estão claramente justificadas no texto de O Manifesto Comunista. Marx e Engels tinham esse mau sentimento profundo relativamente a ela, mas parecia-lhes faltar um instrumental teórico que o pudesse justificar. Era uma aversão aguda, porém vaga e sem consistência. A teorização do ódio veio a lume apenas em 1.884 no livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, oficialmente escrito por Engels, mas atribuível tanto a ele quanto a Marx, seu Dom Quixote, morto poucos meses antes.

O livro é curto e, a bem da verdade, baseia-se quase que inteiramente numa outra obra publicada em 1.877 de autoria do antropólogo americano Lewis H. Morgan intitulada “The Ancient Society”, que pretendeu investigar precisamente o surgimento da família, da gens, das fratrias, das tribos e do Estado. Trata-se de uma obra colossal (e colossalmente equivocada em suas premissas e conclusões) e que reflete décadas de estudo do Morgan, escrita com consistência científica à qual Engels, em seu trabalho tanto mais famoso quanto superficial, deu um tratamento panfletário. Pode-se dizer que o verdadeiro cérebro por detrás do ataque que se seguiria à família foi Morgan; Engels foi apenas seu alto-falante.[2]

Ancient Society representa uma tentativa implícita de aplicação da teoria de Charles Darwin às relações humanas. Ele toma por certo que as sociedades, todas elas, evoluem do estágio de selvageria para o de barbárie e, finalmente, para o de civilização. Todo povo civilizado já foi bárbaro e selvagem; todo povo bárbaro já nadou na selvageria; todo agrupamento selvagem pode, um dia, tornar-se bárbaro e, então, civilizado. É tudo uma questão de evolução: descemos das árvores e deixamos de comer frutos e raízes para, através de um processo evolucionário lento, chegarmos às grandes cidades e à harmonização do bacalhau com uma taça de alvarinho.

No terreno das relações humanas, pari passu com o desenvolvimento acima traçado, passamos de um matriarcado no qual havia uma espécie de orgia generalizada (e no qual todos tinham posse sexual de todos indistintamente) para estágios cada vez mais sofisticados aos quais os agrupamentos eram impulsionados pelas leis da evolução (claro; afinal, o que mais poderia tê-los impulsionado?): num primeiro momento, proibiram-se relações sexuais entre ascendentes e descendentes; depois, entre irmãos; um tanto mais à frente, entre membros de uma mesma família; depois, entre os de uma mesma gens. No liame entre a selvageria e a barbárie, ocorre a alteração geral do modelo: de um matriarcado cada vez mais sexualmente restrito, a um patriarcado no qual as relações tendiam-se a se dar sempre entre um mesmo casal. O homem, que durante o matriarcado acumulara para si os meios de produção, passaria a manter sua esposa e seus filhos sob seu constante domínio. Assim o descreve Engels (g.n.):

Os rebanhos constituíam nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem. A mulher tinha participação no consumo, porém não na propriedade. O “selvagem” – guerreiro e caçador – tinha se conformado em ocupar o segundo lugar na hierarquia doméstica e dar precedência à mulher; o pastor, mais “suave”, envaidecido com a riqueza, tomou o primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo. E ela não podia reclamar. A divisão do trabalho na família havia sido a base para a distribuição da propriedade entre o homem e a mulher. Essa divisão do trabalho na família continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa – a exclusividade no trato dos problemas domésticos – assegurava agora a preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia sua importância, comparado ao trabalho produtivo do homem. Este trabalho passou a ser tudo; aquele, uma insignificante contribuição. Isso demonstra que a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante. Essa condição só pode ser alcançada com a grande indústria moderna, que não apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até o exige e tende cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em uma indústria pública.[3]

Eis o resumo da historia: à medida que avançam da selvageria à barbárie, os agrupamentos humanos avançam em restrições sexuais e, igualmente, avançam também do matriarcado para o patriarcado. A propriedade privada vai se fortalecendo e, quando a história desponta, a mulher já está na sua jaula. A família patriarcal é já onipresente e, a partir dela, irão se formando todas as formas de opressão: primeiramente, a da mulher; depois, a  do escravo; mais à frente, a dos servos da gleba; por fim, a do proletariado.  Nessa visão de mundo, a família deixa de ser considerada a célula mãe da sociedade e passa a ser vista como célula mãe de toda a opressão. Toda a maldade do mundo nela se origina; daí porque a sociedade ideal precisa destruí-la.

O problema da tese de Morgan (e, portanto, da de Engels), contudo, é o mesmo da de Darwin: não existe a mais vaga prova de que as coisas tenham ocorrido como descritas por ele. Só que Morgan, ao menos, é sincero e não o nega. Antes, desde o princípio, afirma cabalmente que, quando a história surge, a civilização já está em pleno funcionamento e, nela, o que se vê, desde o princípio, é o patriarcado opressor em ação. Para estabelecer sua tese, ele se baseia no estudo de grupos indígenas (a maioria, no estado de barbárie), nos quais percebia a existência de um certo deslocamento entre as relações familiares e as de parentesco, pressupondo que essas refletem como eram as relações sexuais num período anterior ao daquelas.

Morgan escreve abundantemente acerca das gens entre os aborígenes australianos, tidos por ele como o agrupamento humano mais primitivo de sua época, e que, portanto, representava uma rara oportunidade para que se pudesse divisar, por meio do contraste entre as relações familiares e de parentesco entre eles vigentes, como eram as sociedades humanas todas nos estágios mais baixos da selvageria. Morgan dá a entender que o isolamento geográfico em que os aborígenes viviam era o responsável pela sua manutenção persistente no estágio de selvageria.

É aqui, precisamente aqui, que o leitor do Ancient Society pode fazer a pergunta que Morgan não fez, pergunta essa cuja simples formulação poderia colocar abaixo toda a sua estupenda obra: se, inexoravelmente, os agrupamentos humanos partem todos do estado de selvageria para o de barbárie e, daí, para o de civilização; se os aborígenes são o agrupamento mais atrasado que se conhecia, vivendo isolados no continente australiano, então, como exatamente eles foram parar lá?

Isso porque o simples fato de terem chegado ao continente australiano pressupõe que os aborígenes, num passado remoto, eram capazes de construir veículos de navegação altamente avançados, possuindo, ainda, conhecimentos muito desenvolvidos de como se orientar em pleno oceano. Coisas, enfim, típicas de povos que já atingiram um alto grau de civilização. Esse simples questionamento poderia fazer com que Morgan percebesse que a verdade dos fatos tende a ser oposta à tese a que adere: não é que o isolamento dos aborígenes australianos os tenha mantido em plena selvageria; antes, a ruptura do contato deles com todo e qualquer outro agrupamento humano precipitou-os num estágio de desenvolvimento social muito inferior àquele de que gozavam seus antepassados.

Em outras palavras: a evolução imperiosa das sociedades humanas, que está na base da teoria de Morgan (e, assim, na de Engels), é uma grande balela. A ideia de que todos os grupos humanos passam pelas mesmas fases de desenvolvimento tanto social quanto sexual não somente não conta com qualquer elemento empírico que a sustente (coisa confessada ab initio), mas, ainda, choca-se violentamente com aquilo que se pode perceber com um simples passar de olhos nas sociedades. Se o “patriarcado” e sua família “opressora” não foram instituições que se desenvolveram lentamente impulsionados pela força cega da evolução, então a ideia de que toda a maldade do mundo neles reside e de que podemos substituí-lo a nosso bel prazer é tola, para dela se dizer o mínimo.

A verdade sobre tudo isso parece estar não com Morgan, mas, como sempre, com Chesterton:

A despeito de todo o mexerico pseudo-científico sobre o casamento por rapto e o homem das cavernas batendo na mulher com um cacete, pode-se observar que, tão logo o feminismo se tornou um clamor da moda, insistiu-se em que a civilização humana em seu primeiro estágio tinha sido um matriarcado. Aparentemente era a mulher das cavernas quem carregava o cacete. Seja como for, todas essas ideias são pouco mais que conjecturas; e elas têm um modo curioso de seguir o destino das teorias e caprichos modernos. De todo modo, não são história no sentido de serem registro; e podemos repetir que, quando chegam a registros, a verdade óbvia é que a barbárie e a civilização sempre habitaram o mundo lado a lado, a civilização às vezes se expandindo para absorver os bárbaros, às vezes decaindo em relativa barbárie, e em quase todos os casos possuindo de forma mais acabada certas ideias e instituições que os bárbaros possuem de uma forma mais rude; tais como governo ou autoridade social, as artes e especialmente as artes decorativas, mistérios e tabus de variados tipos e em especial em torno do sexo, e alguma forma daquela coisa fundamental que é a principal preocupação desta investigação; aquilo que chamamos de religião.[4]

 

Ou seja: Engels e Marx esperaram décadas para uma justificação teórica de seu ódio à família e, quando ela finalmente chega, não passa de pura conjectura sem amparo algum na realidade.

Obviamente que, se o ódio pôde se sustentar desde logo sem qualquer embasamento, a existência agora de uma fundamentação, mesmo que sacada na base da pura imaginação, era, em si mesma, uma oportunidade imperdível. E, se a teoria que lhes caiu no colo ainda permitisse que a família fosse odiada não apenas por ser uma peça odiosa na imensa engrenagem da sociedade, mas por ser, ela própria, a base mesma da opressão capitalista, então, tanto melhor.

Nesse cenário, que a tese de Morgan fosse mera mitificação era coisa das mais insignificantes e sem importância. O movimento comunista tinha já seu gigante de ouro; com frágeis pés de barro, mas um gigante ainda assim e estava tudo pronto para o ataque à família e, por meio dela, à toda a sociedade civilizada do ocidente.

Mas isso é assunto que pretendo tratar em um próximo post.

[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 12, n. 34, p. 7-46,  Dec.  1998 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141998000300002&lng=en&nrm=iso&gt;. access on  28  Apr.  2018.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141998000300002.

[2] Da leitura do livro de Morgan, não se extrai que ele visasse destruir a família tal qual a conhecia; porém, o fato de que suas ideias serviram a tal propósito é coisa para além de qualquer dúvida razoável.

[3] ENGELS, Friedrich. A Origem da Famíla, da Proprieade Privada e do Estado. Ed. Best Boso. eBook Kindle.

[4] CHESTERTON, G. K. (2014). O Homem Eterno. (R. Robson, Trad.) Campinas: Ecclesiae, p. 73.