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O debate político dos dias em que vivemos assemelha-se a uma verdadeira conversa de papagaios. Não sei se por efeito da internet ou se por uma tendência inata do ser humano, parece-me que todos estão a todo tempo dando opiniões sobre tudo, sendo que, quanto menos alguém conhece algum assunto, tanto mais estará seguro ao discorrer sobre ele. E, por vezes, o fato de haver pessoas que pensem de forma diferente da de um determinado “formador de opinião” torna-se imediatamente a prova completa e cabal de que tal indivíduo é, no mínimo, mal intencionado.
Dou um exemplo do que quero dizer.
O recém-nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no julgamento da ação em que se discutem os chamados foros privilegiados, pediu vista dos autos para melhor análise da questão. O relator (Ministro Barroso) e outros três líderes supremos do Poder Judiciário adiantaram seus respectivos votos, mas, ao menos segundo a imprensa, Moraes, depois de um discurso de uma hora e meia, confessou achar-se sem condições de dar seu voto imediatamente.
O mundo caiu-lhe em cima. Foi acusado por alguns de estar cumprindo o papel para o qual o atual governo o indicou e de, utilizando-se de uma prerrogativa funcional, dar abrigo a políticos corruptos, criminosos, safados e quejandos. Tais vozes já não têm dúvidas de que o chamado “foro privilegiado” deve acabar ou, ao menos, ser severamente limitado e, para elas, qualquer um que tenha dúvidas a respeito (o ministro, inclusive) é, no mínimo, um, inimigo da pátria, ou, o que é pior, um “opositor da Lava Jato” (ofensa maior do que essa, hoje em dia, é coisa inexistente).
Bem, confesso que não tenho opinião formada acerca do tema; mas confesso também que a superficialidade das pessoas que se põem a papagaiar sobre tudo e sobre todos é algo que me cansa.
E digo por quê.
Santo Tomás de Aquino definia a lei como “quaedam rationes ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitates habet promulgata” (“ordem ou prescrição da razão para o bem comum, promulgado por quem tem a seu cargo o cuidado da comunidade”). A lei, pois, principalmente, é algo que emana da razão. O legislador, em sua atividade juspolítica, parte de uma análise do mundo concreto, utilizando-se para tanto de sua razão, a fim de estabelecer uma norma que, aplicada à generalidade dos casos concretos, trará a justa solução para eles.
Ao juiz, por outro lado, em essência, cabe aplicar essa mesma lei, pressupondo que, ao fazê-lo, a solução justa se dará automaticamente. Contudo (e é aqui que, em meu modesto entender, reside o lado mais difícil da nossa nada fácil profissão), se o magistrado estiver diante de um caso excepcional, para o qual a aplicação da lei será injusta e conduzirá a efeito sabidamente não desejado pelo legislador (e, às vezes, mesmo ao efeito contrário) deve ele excepcionar a aplicação da lei (e não é necessário dizer que exceções são, digamos, excepcionais) para buscar a solução justa para o caso concreto. Em outras palavras, para buscar aquela solução desejada pela própria lei, mas que não se concretizaria naquele caso determinado com a simples aplicação de seu texto.
Portanto, a cadeira de um magistrado não é uma sede da qual ele espirre sua bílis para todos os lados. Em uma sentença, pela qual ou se aplica ou se excepciona a lei, não deve haver espaço nem para o coração nem para o fígado do julgador, mas apenas para a razão dele. Ou, como prefiro dizer, sendo a razão uma potência da alma, a sentença é, ela mesma, um trabalho da alma do magistrado (caso haja algum ateu a ler este artigo, saiba desde logo que eu não dou a mínima para as tuas idiossincrasias), não podendo ser diferente.
Um juiz, portanto, deve conhecer bem as razões pelas quais uma lei foi estabelecida para conhecer até mesmo os momentos corretos em que não a deve aplicar. Coisa cada vez mais difícil, pois o Estado onipresente cospe leis para todos os lados, cedendo a grupos de pressão e não se importando minimamente se as normas enunciadas, de forma efetiva, trazem consigo a justa solução dos conflitos que visam reger.
A quantidade de normas é tamanha que, a rigor, ninguém (repito e enfatizo: NINGUÉM) efetivamente conhece senão uma minúscula parte delas e, mesmo no que as conhece, não as conhece a fundo. Ninguém (repito e enfatizo: NINGUÉM) é capaz de ter uma visão abrangente do sistema legal e do emaranhando de inter-relações que as normas guardam umas com as outras.
Em tal caos legislativo, o brocardo iura novit curia é coisa que chega a soar engraçada…
Além disso, vivemos numa sociedade em que até mesmo a noção do que seja justo se perdeu, razão pela qual a própria atividade juspolítica está em crise. O legislador (que exerce tal atividade), muitas vezes não faz a mais vaga ideia do impacto que determinada norma terá, seja no sistema jurídico como um todo, seja na realidade da vida dos cidadãos comuns. O pressuposto de que a lei seja um ato efetivo da razão e cuja aplicação tenda a dar a justa solução para conflitos é tão fantasioso quanto o brocardo acima citado.
A edição de leis em número sufocante torna, na maior parte das vezes, a atividade jurisdicional quase como que a de um batedor de falta: tenta-se dar um bom chute no intuito de se marcar um gol, mas sabe-se de antemão que na maioria das vezes a missão não chegará a bom termo. Caso, por extrema felicidade, chegue-se a balançar as redes, isso não muda o fato de que tudo não passou de um chute; muito bem dado, mas um chute mesmo assim.
Vê-se, pois, que ter opiniões jurídicas sólidas sobre temas jurídicos importantes, ainda que pontuais, é coisa para poucos. Pouquíssimos, eu diria. E essa parece ser a principal razão pela qual quase todos fingem que as têm aos borbotões.
Voltemos à questão do julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre os “foros privilegiados”.
Particularmente, sei muito pouco acerca das razões de sua criação (se visavam um bem; se, desde sempre, desejava-se proteger políticos corruptos de futuros processos, ou se, como é mais provável, o constituinte os criou sem qualquer critério lastreado na razão); conheço muito pouco, também, as razões para excepcionar ou limitar sua aplicação a casos concretos, mesmo porque o assunto não é daqueles com os quais um juiz de primeira instância lide em seu cotidiano.
Exatamente por isso, num comportamento que hoje deve ser tido como para lá de exótico, abstenho-me de dar qualquer opinião a respeito.
A questão, ao meu ver, demanda algum estudo muito mais profundo do que aquele que eu já dediquei a ela, pois, se é verdade que o “foro privilegiado” pode servir de abrigo para pessoas de má índole, não é menos certo que sua extinção ou limitação severa pode, ao final das contas, colocar os poderes da república em choque, diminuindo, de um lado, a independência de agentes púbicos e, de outro, colocando-os em rota de colisão em âmbitos locais.
Dada a complexidade e a gravidade da questão, nada mais normal de que um julgador (ainda que um julgador do Supremo Tribunal Federal) queira analisá-la a fundo e peça vista dos autos. Numa sociedade ainda sadia, isso seria visto com bons olhos. Afinal, todos partiriam do pressuposto de que o batedor de faltas está calculando bem a força e a direção do chute prestes a ser dado.
Mas não vivemos numa sociedade sadia.
É possível que o pedido de vistas tenha sido, digamos, enviesado? Sim; e eu seria o último a negar tal possibilidade.
Afinal, não se pode esquecer que o Ministro Alexandre de Moraes, por ser um constitucionalista, provavelmente já deve ter alguma opinião a respeito do tema formada há anos, máxime porque justificou seu pedido em um palavrório de 90 minutos (sem qualquer intervalo de 15 minutos para a torcida comprar um amendoim). Fundamentar um pedido de vista tão longamente, convenhamos, soa como tentativa de justificar o injustificável.
Contudo, o fato de que muitos partem já do pressuposto de que um Ministro do Supremo Tribunal Federal, ao pedir vistas de autos, está agindo não com a prudência requerida pelo caso, mas com a malícia típica dos conspiradores, é prova incontestável de que a reserva moral do Poder Judiciário como um todo está quase que inteiramente gasta, o que deveria nos deixar a todos perplexos.
E o fato de que tantos papagaios, tão apressadamente, disponham-se a dar opiniões ocas sobre o mérito de temas tão importantes, é a prova cabal de que o debate político em nosso país está irremediavelmente perdido, lembrando quase que em tudo xingamentos mútuos de torcidas rivais.
Como eu costumo dizer em tom cada vez menos jocoso: se alguém que me lê estiver de mudança para Marte, avise-me; estou mesmo precisando de carona.