O Sistema Prisional Brasileiro e a Lei do Ventre Livre

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fonte da imagem: http://www.estudopratico.com.br/lei-do-ventre-livre/

 

Em recente encontro com os chefes de 27 tribunais brasileiros, a nova Presidente do Supremo Tribunal Federal disse a que veio. E, baseando-se no que ela disse, o futuro imediato do Poder Judiciário brasileiro não é muito animador.

Ao falar acerca do problema carcerário do país, a Ministra Carmen Lúcia tocou em dois pontos sobre os quais entendo por bem tecer alguns comentários: a questão dos presos provisórios e a situação das detentas grávidas.

Quanto ao primeiro, disse que “vai enfrentar esse problema com rigor. ‘É um problema que tem tudo a ver com a gente, porque é o juiz quem manda prender, é o juiz quem manda soltar. A parede do presídio é um problema do Executivo, mas o ser humano que está lá dentro é problema nosso’”. Já no que tange ao segundo dos problemas mencionados, a Ministra apontou para a necessidade de que as detentas em questão sejam encaminhadas a centros de referência de presas grávidas antes que deem à luz seus bebês, afirmando: “Quero terminar meu mandato sem nenhum brasileirinho nascendo dentro de uma cela. Isso é inadmissível. Isso é simplesmente descumprir uma lei, a Lei do Ventre Livre. Esta é uma realidade que nós vamos mudar, tenham certeza.”[1]

O discurso inteiro, com todo respeito devido,  é assustador!

A nova Presidente do Supremo Tribunal Federal parece seguir na mesma linha dos que vilanizam o Poder Judiciário pelo excesso de presos (provisórios ou não) em nosso sistema carcerário (“É um problema que tem tudo a ver com a gente, porque é o juiz quem mandar prender, é o juiz quem manda soltar”), aparentemente esquecendo-se de que, se há muita gente presa, é porque vivemos num dos países mais violentos do mundo. A questão não é que os juízes mandem prender demais e que dificultem a soltura de presos (aliás, jamais ouvi dizer de um magistrado que tenha propositadamente mantido alguém encarcerado para além do devido apenas por crueldade). A questão é que, numa sociedade em que crimes de furto, roubo, homicídio, estelionato, tráfico de drogas são cometidos aos milhões todos os anos, é de se esperar que, por maior que seja a impunidade reinante, ainda assim muitos criminosos acabem pegos e punidos, resultando numa grande população carcerária.

A equação parece-me simples: uma grande população de criminosos resulta numa grande população carcerária. Mas a simplicidade desse raciocínio parece escapar totalmente do horizonte de visão de nossas maiores autoridades, que insistem em ver, nos encarcerados, vítimas de um sistema que, por menos que puna, é sempre tachado por elas, ora implícita, ora explicitamente, de opressor. Penso que, ao contrário do sinalizado pela Ministra, a maior preocupação dos juízes brasileiros não deva recair no “ser humano” que está dentro do sistema carcerário, mas, sobretudo, no ser humano trabalhador que se encontra fora dele e que já não suporta mais conviver com uma criminalidade acachapante.

Mas, o pior do discurso ainda estava por vir.

A Ministra literalmente afirmou que o Estado brasileiro, ao permitir que presas deem à luz dentro do sistema prisional, está descumprindo a “Lei do Ventre Livre”.

Confesso, novamente com o devido respeito, que jamais havia ouvido um membro do Poder Judiciário (e não me refiro apenas aos das altas cortes) lançar uma afirmação tão descabida quanto essa.

A Lei 2.040, de 28 de Setembro do Ano da Graça de 1.871, tinha por objetivo principal (mas não único) garantir que os filhos nascidos de escravas não fossem, eles mesmos, escravos, mas pessoas livres. Em seu artigo primeiro, essa gloriosa lei determinava que “os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre.”

A Lei do Ventre Livre visava, claramente, acabar com a escravidão em solo pátrio, ainda que aos poucos. Reparava uma injustiça. Atendia aos ditames da lei natural, pela qual a escravidão é coisa que não se pode suportar sem grave ofensa ao ser humano enquanto criatura de Deus.

Ora, uma detenta grávida não se encontra presa senão por ter cometido algum crime. Ela, mesmo ciente de que transgredia uma lei, mesmo sabedora da gravidade de sua conduta, mesmo tendo advertência da pena a ela cominada, resolveu delinquir e, agora, sofre as justas consequências de seus atos. No caso dela, estar presa não é uma situação injusta. A injustiça resultaria exatamente de não a punir como é devido, deixando de aplicar-lhe a pena correspondente aos seus atos.

Qualquer comparação entre os filhos nascidos de escravas e os nascidos de uma detenta é absolutamente descabida. A afirmação da Ministra acerca do descumprimento da Lei do Ventre Livre, em que pese a constituir uma frase de efeito, é juridicamente absurda[2], vazia de significado e ofensiva à lógica mais elementar.

Em resumo, parece que teremos mais do mesmo no próximo biênio.

Nossas autoridades (de todos os Poderes) parecem determinadas a seguir o trágico rumo traçado e a considerar o “problema carcerário” como um mal em si mesmo, esquecendo-se ser ele apenas o sintoma de uma sociedade em frangalhos. Tentarão por todas as vias “esvaziar as cadeias” sem se dar conta de que, ao deixarem de cumprir o imperativo de justiça que manda punir os criminosos, acabarão por incentivar a criminalidade, pressionando ainda mais os reclames sociais por penas mais duras e, portanto, por uma população carcerária cada vez maior.

Se a Ministra Carmen Lúcia me permite uma opinião acerca de como enfrentar o problema da grande população carcerária brasileira, humildemente eu sugiro que coloque em sua agenda as seguintes prioridades:

a) pressionar por mudanças legislativas no que se refere à lei do divórcio (seria melhor aboli-la), ao Estatuto da Criança e do Adolescente (adotando-se punições verdadeiras para práticas de atos infracionais), à Lei 11.343/06 (punindo-se o consumo de entorpecentes com severidade compatível com que se pune a venda), bem como a penas mais severas para crimes menores;

b) fomentar uma Jurisprudência que proteja e privilegie a família tradicional e o respeito aos contratos, à propriedade privada, à livre iniciativa e à liberdade de expressão.

Essa agenda simples, se bem sucedida, garantirá que os brasileirinhos de hoje, quando atingirem a estatura de brasileirões, vivam numa sociedade bem mais saudável que a nossa, na qual, naturalmente, o “problema carcerário” não existirá e na qual não se tenha que invocar a Lei do Ventre Livre para defender teses indefensáveis.

[1] Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-set-15/carmen-lucia-presidentes-tjs-indiquem-prioridades

[2] Uma vez que, desde a Lei Áurea, não existem escravas no Brasil, desde então não existem, também, filhos de escravas sobre os quais a Lei do Ventre Livre possa incidir. Por absoluta impossibilidade material, a lei em questão não pode, há mais de 126 anos, ser cumprida ou descumprida, respeitada ou desrespeitada por quem quer que seja.