As Três Visões do Rei – A Poda do Cavalo

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Parte I

Parte II

 

O último capítulo da “A Balada do Cavalo Branco” de Chesterton é chamado de The Scouring Of The Horse (que entendi por bem traduzir como “A Poda do Cavalo”, mantendo, ao que me parece, o sentido preciso que Chesterton quis dar ao gerúndio, ainda que a tradução não seja literal). A essa altura, penso ser necessário esclarecer o leitor a que cavalo, afinal, Chesterton se refere no título de seu famoso poema.

 

Segundo antigas tradições orais, incorporadas no poema, a Batalha de Ethandune se deu no vale de Berkshire, na Inglaterra. Nesse vale, o solo é branco devido à grande presença de cal. E, desde séculos antes (na verdade, desde tempos imemoriais), foi talhada no vale a imagem de um cavalo branco, que pode ser vista desde longe e que permanece lá até hoje (conforme figura acima). Este Cavalo Branco foi, então, como que testemunha ocular do histórico combate travado entre Alfred e Guthrum e da vitória das forças inglesas sobre as dinamarquesas.

 

Ocorre que, abandonada à natureza, a imagem do cavalo simplesmente desapareceria uma vez que o crescimento inexorável da vegetação ao redor acabaria encobrindo-a por completo. Para que o Cavalo Branco sobreviva à passagem dos séculos, é necessário que os interessados mantenham a poda (scouring) frequente da vegetação ao redor; caso desdenhem desse serviço, o cavalo se apagará e as futuras gerações perdê-lo-ão para sempre.

 

Essa é a mensagem central de todo o poema de Chesterton.

 

Vencidos os infiéis, eles cedo ou tarde voltariam à carga e tentariam de novo (e de novo, e de novo) subjugar a Inglaterra, fazendo perecer tudo o que os ingleses amavam:

 

And though skies alter and empires melt,
This word shall still be true:
If we would have the horse of old,
Scour ye the horse anew.[1]

 

Uma vez que as invasões da Inglaterra pelos vikings  são tomadas como clara metáfora da luta constante do Ocidente em face de seus inimigos, a mensagem do texto toca ainda a nós: se queremos gozar da civilização de outrora, cuidemos sempre dela caso venhamos a reconstruí-la. Se não o fizermos, os novos infiéis, tal qual a vegetação faria com o Cavalo Branco, acabarão por subjugá-la novamente. O preço de gozarmos das conquistas civilizacionais que nossos antepassados (e somente eles) conseguiram talhar é a constante vigilância quanto aos ataques do inimigo.

 

E, de fato, após Ethandune, Alfred e a Inglaterra até que passaram por um período de paz. Contudo, estando ele já velho, notícias terríveis de uma nova investida viking, com a queda de Londres, chegam a Wessex e o povo, alarmado, recorre ao rei já idoso. Alfred, então, prepara-se mais uma vez para o combate. Mas deixa claro que os vikings já não eram sua maior preocupação. Antes, revela aos seus súditos a última visão (a terceira) que os céus lhe tinham concedido, mostrando-lhe os verdadeiros inimigos que, um dia, invadiriam a Inglaterra e que poderiam, verdadeiramente, dobrar para sempre o espirito inglês.

 

“I know that weeds shall grow in it
Faster than men can burn;
And though they scatter now and go,
In some far century, sad and slow,
I have a vision, and I know
The heathen shall return.

“They shall not come with warships,
They shall not waste with brands,
But books be all their eating,
And ink be on their hands.

“Not with the humour of hunters
Or savage skill in war,
But ordering all things with dead words,
Strings shall they make of beasts and birds,
And wheels of wind and star.

“They shall come mild as monkish clerks,
With many a scroll and pen;
And backward shall ye turn and gaze,
Desiring one of Alfred’s days,
When pagans still were men.

“The dear sun dwarfed of dreadful suns,
Like fiercer flowers on stalk,
Earth lost and little like a pea
In high heaven’s towering forestry,
–These be the small weeds ye shall see
Crawl, covering the chalk

“What though they come with scroll and pen,
And grave as a shaven clerk,
By this sign you shall know them,
That they ruin and make dark;.[2]

 

A nova investida viking seria mais uma vez afastada. Décadas depois, um dos descendentes de Alfred perderia a Inglaterra para um rei dinamarquês, Cnut (Canuto, em português), que, saindo-se vitorioso, tal qual ocorrera com Guthrum na derrota, converter-se-ia ao cristianismo, faria peregrinações a Roma e tornar-se-ia protetor da Igreja e incentivador da evangelização dos dinamarqueses, num daqueles fatos históricos que, se bem compreendidos, deveriam deixar a todos os que o compreendem com a boca aberta e embasbacados. Na derrota e na vitória militar dos dinamarqueses frente ao povo da Inglaterra, a civilização cristã foi sempre vitoriosa pela mão dos próprios reis de Dinamarca.

 

Alfred não precisaria, pois, se preocupar com os vikings. Mesmo porque sua preocupação, conforme dito por Chesterton, nunca foi sua coroa ou a posse da Inglaterra: ele lutava pela civilização cristã, que os dinamarqueses, simplesmente, jamais conseguiriam subjugar.

 

Mas os tais infiéis do futuro poderiam consegui-lo. E é sobre eles que Alfred deixa sua última advertência antes de partir de Wessex para retomar Londres.

 

Como saber quais seriam esses tempos tão terríveis nos quais a própria sobrevivência do espírito inglês (e do Ocidente como um todo) estaria sob grande perigo? Se os inimigos sempre se levantariam contra a Inglaterra, como reconhecer o momento preciso em que esses novos infiéis viriam talvez para triunfar onde os antigos falharam? Alfred, antes de se levantar de seu trono e seguir para sua última batalha, dá vários sinais para reconhecê-lo: seria o tempo da espada que se quebra (um tempo de pacifismo e de recusa ao bom combate); o tempo em que o nosso sol seria visto como um mero anão entre sois mais terríveis e no qual a Terra seria vista como um mero grão no universo; o tempo em que muito se conversaria aos borbotões sobre atos pecaminosos, mas no qual a existência mesma do pecado seria negada; o tempo em que Deus e os homens seriam desonrados e no qual a morte e a vida seriam esvaziadas.

 

Enfim, os nossos tempos.

 

Quando Chesterton escreveu seu poema corria o Ano da Graça de 1.911. Menos de 20 anos depois, os teóricos da Escola de Frankfurt levantariam suas vozes pestilentas para proclamar, com livros e escritos, uma guerra incansável ao Ocidente e a tudo o que ele representa. A vitória até aqui palpável da Escola de Frankfurt concretiza a marcha dos novos infiéis prevista por Alfred: a guerra na qual todos nós, seja como vítimas seja como idiotas úteis (e, infelizmente, no caso de parcela considerável dos magistrados, como vítimas e como idiotas úteis) estamos envolvidos.

 

Curiosamente, Alfred não diz se os novos infiéis iriam ou não triunfar em sua investida. Chesterton, por mais genial que fosse, não conhecia o futuro. Percebia a guerra se formando e a natureza das batalhas que se avizinhavam; mas o resultado do combate era e continua sendo imprevisível.

 

Seremos nós capazes de sustentar a alegria sem causa e a fé sem esperança para nos colocarmos em combate em guerra tão sem esperança? Teremos a grandeza de, combatendo ante uma derrota iminente, olharmos para o céu em busca do socorro no momento derradeiro? Venceremos ao final? Ao menos, depois de tudo, haverá ainda um lar ao qual retornemos?

 

As respostas não são conhecidas. Mas, se, Deo volente, virarmos os rumos da guerra (até agora, perdida) e vencermos o inimigo, que possamos guardar, após a vitória, a mais importante das lições que nos vêm do Cavalo Branco, fazendo, nós mesmos, aquilo que as gerações que nos precederam nos últimos dois séculos não fizeram:

If we would have the horse of old,
Scour ye the horse anew.

 

[1] Ainda que os céus mudem e os impérios se dissolvam,/ esta palavra será sempre verdadeira:/ se quereis o cavalo de outrora,/ podai o cavalo novamente.

[2] “Sei que as ervas daninhas crescerão sobre ele/ mais rapidamente do que os homens podem queimá-la;/ e ainda que eles se dispersem agora e que vão,/num século longínguo, trite e lento,/ eu tive uma visão, e sei/ que os pagãos hão de retornar.

Não virão com navios de guerra,/ e não devastarão com bandeiras,/ mas livros serão todo o seu alimento,/ e tinta estará em suas mãos.

Não com o temperamento de caçadores/ ou com habilidades selvagens de guerra,/ mas tudo ordenando com palavras sem vida,/ farão cordas das bestas e de pássaros,/ e rodas do vento e da estrela.

Virão com suavidade como clérigos monges,/ com muitos pergaminhos e penas; e vós vos virareis e olhareis para trás,/ desejando ainda viver nos dias de Alfred,/ quando os pagãos ainda eram homens.

Embora venham com pergaminho e pena/ e sérios como um clérigo sem barba,/ por esse sinal os reconhecereis,/que eles trazem ruínas e escuridão

 

 

 

As Três Visões do Rei – A Batalha de Ethandune

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Parte I.

 

A batalha de Ethandune pode ser considerada como um dos dias mais gloriosos da história da Inglaterra. Trata-se de um daqueles episódios verdadeiramente épicos que raramente se repetem e que, quando ocorrem, trazem consigo uma gama de lições simbólicas e que não devem jamais ser desprezada.

 

Postas as forças prontas para o combate, de um lado, havia um exército temível e vitorioso; de outro, um pequeno amontoado de gente. A discrepância é tão grande, que Harold, um sobrinho do rei dinamarquês Guthrum, ao ver o exército inglês, tem reação semelhante àquela que teve o gigante Golias ao ver Davi, seu desafiante: ofendeu-se. De fato, tal como Golias esbravejou “Sou eu algum cão, para tu vires a mim com paus?”, disse o jovem e presunçoso Harold: “And shall I fight with scarecrows/ That am of Guthrum’s blood?” (devo eu, que sou do mesmo sangue de Guthrum, lutar com espantalhos?).

 

Não creio que Chesterton tenha colocado tais palavras na boca de Harold sem se dar conta do paralelismo evidente entre Davi e Golias, de um lado, com as forças perfiladas em Ethandune de outro.

 

A luta entre Davi e Golias é tomada, claramente, como um arquétipo de tantas outras que se travariam na história na qual pessoas impiedosas fiam-se em sua força humanamente superior para considerarem-se vitoriosas antes mesmo de a batalha começar, sem considerar que a força menor que marcha contra si apoia-se mais na Providência divina do que nas armas que empunha. Tanto que, tal qual Golias, mal Harold termina de dizer suas palavras presunçosas, um dos companheiros de Alfred (Egbert) atirou-lhe sua espada, que se crava abaixo do olho de Harold, matando o sobrinho de Guthrum.

 

Harold, como o gigante bíblico, morre ainda com o hálito de sua arrogância em curso dentro de sua boca. Sua queda ao solo mancha a vegetação de vermelho e serve de sinal para o início da batalha de Ethandune, que viria definir os rumos da história inglesa e, dada a importância da Inglaterra e de suas futuras colônias, definir em boa parte os rumos a história do mundo.

 

As forças de Guthrum, contudo, monstram rapidamente sua superioridade. O choque entre os dois exércitos é desastroso para os ingleses, cujas forças ao centro, à esquerda e à direita são facilmente quebradas. Os heróis juntados pelo rei de Wessex lutam com bravura, mas caem um a um: primeiro, Eldred, morto por uma lança enfeitiçada atirada por Elf, um dos príncipes dinamarqueses. Mark, o romano, quebra a lança mágica e mata Elf, mas, no embate com o poderoso Orgier, acaba por ser atingido, morrendo ele também. Orgier, então, entoa um canto de batalha, rindo-se de Roma, que como o próprio Mark, caíra diante do poder dos bárbaros.

 

Alfred e Colan se vêem obrigados a um recuo com seus poucos homens. Mas, num golpe do destino, os grupos se separam e Colan acaba morto. Alfred, então, se vê sozinho junto à floresta, estando sua derrota já muito bem desenhada. Tanto que os dinamarqueses já começam a festejar e alguns ingleses se põe como que a abandonar o campo de batalha.

 

Mas, em Alfred, ressoava, ainda aquela pergunta, aquele desafio que lhe fora lançado pela Virgem quando de sua primeira visão: do you have joy without a cause/ yea, faith without a hope? Em sua alma, ainda era por demais viva a advertência de que os dias, sob domínio dinamarquês, seriam terríveis: the sky grows darker yet/ and the sea rises higher.

 

Para Alfred, desistir da luta apenas em virtude da derrota certa não era alternativa. Para ele, melhor era morrer do que viver uma vida assistindo a tudo o que tinha por mais sagrado ser pisoteado por infiéis impiedosos.

 

“Brothers at arms,” said Alfred,
“On this side lies the foe;
Are slavery and starvation flowers,
That you should pluck them so?

“For whether is it better
To be prodded with Danish poles,
Having hewn a chamber in a ditch,
And hounded like a howling witch,
Or smoked to death in holes?

“Or that before the red cock crow
All we, a thousand strong,
Go down the dark road to God’s house,
Singing a Wessex song?

“To sweat a slave to a race of slaves,
To drink up infamy?
No, brothers, by your leave, I think
Death is a better ale to drink,
And by all the stars of Christ that sink,
The Danes shall drink with me.[1]

 

Eis aí a grandeza de Alfred, o Grande. O gigante verdadeiramente capaz de uma alegria sem causa e de uma fé sem esperança! Para ele, a vida sob o jugo inimigo era apenas fome e escravidão. Outros poderiam, ainda assim, querer preservá-la como algo digno de se preservar, como flores a serem colhidas no jardim da vergonha. Mas alguém da estatura do rei de Wessex jamais o admitiria. Para ele, era muito melhor caminhar para a morte, descendo mais uma vez sobre os dinamarqueses num ataque desesperado, do que beber da infâmia de servir como escravo a um povo pagão, escravo ele mesmo de seus vícios. Iria para a morte certa; mas faria com que os dinamarqueses dela experimentassem por meio de sua espada.

 

Alfred, então, soa sua trombeta, que herdara de heróis ingleses do passado, e o resto do exército inglês inicia aquela que se destinava a ser sua última marcha. Heróica e epicamente! Em Ethandune, nos dizeres do próprio Chesterton, deu-se a primeira Cruzada, pois o espírito que animou aqueles bravos ingleses era o mesmo que, séculos depois, desceria sobre Godofredo de Bulhões, sobre Ricardo Coração de Leão, sobre São Luís de França, sobre Sobieski e sobre tantos outros. Era a defesa da cristandade contra o mal que a ameaçava e que, ainda hoje, mais uma vez, ameaça o que dela sobrou.

 

Ao ver esta última investida dos ingleses, o exército dinamarquês de Guthrum toma novamente posição. Estavam prontos para um último massacre. É, então, que o inesperado acontece. Enquanto cavalgava para a morte, Alfred faz o que de mais inesperado se podia fazer em momento tão dramático: ele lembra-se de olhar para o céu! Quem, senão um gigante, senão um cruzado antes das Cruzadas, lembrar-se-ia de, neste momento, levantar seus olhos da terra para ver se o céu lhe reservara alguma surpresa?

 

Pois ele o fez:

 

And when the last arrow
Was fitted and was flown,
When the broken shield hung on the breast,
And the hopeless lance was laid in rest,
And the hopeless horn blown,

The King looked up, and what he saw
Was a great light like death,
For Our Lady stood on the standards rent,
As lonely and as innocent
As when between white walls she went
And the lilies of Nazareth.

One instant in a still light
He saw Our Lady then,
Her dress was soft as western sky,
And she was a queen most womanly–
But she was a queen of men.

Over the iron forest
He saw Our Lady stand,
Her eyes were sad withouten art,
And seven swords were in her heart–
But one was in her hand.[2]

 

A nova visão da Virgem (a segunda) é muito curiosa. Ela surge, em princípio, ferida de dor, mais como a Mãe de Deus do Stabat Mater do que como um sinal de vitória. Era branca e inocente, como Seu Filho pendente da Cruz, trazendo sete espadas cravadas em seu coração. Porém, havia uma oitava, e esta, ela trazia empunhada em sua mão, pronta para o combate. A tristeza de uma mãe que vê morrer seus filhos, e a coragem de uma mãe que jamais aceitaria vê-los morrer sem socorrê-los fundem-se na imagem admirável e Alfred entende que havia Alguém lutando por ele; e que esse guerreiro é invencível.

 

Animado pela visão, Alfred vê o essencial: o futuro da cristandade estava em jogo. Os céus, então, vinham em socorro dos poucos homens que aceitaram morrer para defender a fé e a vitória era certa.

 

Ele, então, na fúria da batalha, busca Orgier, o campeão de Guthrum, para combatê-lo, matando-o violentamente. A morte de Orgier foi o sinal que os ingleses esperavam. A queda do campeão de Guthrum encheu os ingleses de ânimo e abalou a moral dinamarquesa. Cheios de um confiança para além de toda esperança humana, avançam impiedosamente sobre os dinamarqueses, que se vêem em pânico e paralisados pelo medo, tombando um a um ante a onda inglesa que percorria suas linhas. Alfred, então,  entoa a canção da vitória:

 

The Mother of God goes over them,
On dreadful cherubs borne;
And the psalm is roaring above the rune,
And the Cross goes over the sun and moon,
Endeth the battle of Ethandune
With the blowing of a horn.”[3]

 

O próprio Guthrum fica atônito com o que vê e, ao perceber o baluarte de Odin ser tomado e rasgado pelos ingleses, dá-se por vencido. Era um sábio rei, e não um prepotente como seu sobrinho Harold. Vendo a cena, e percebendo a sua derrota, dá por vencido também os seus deuses, convertendo-se ao cristianismo e fazendo-se batizar poucos dias depois.

 

A conversão de Guthrum foi um fato histórico de notável alcance.

 

É voz comum que o Ocidente ergueu-se sobre um tripé: filosofia grega, direito romano e fé cristã. E, de fato, parece-me que foi assim. Contudo, foi com resistência aos bárbaros, especialmente aos vikings, e com a conversão deles, que a cristandade ocidental ganhou seu quarto elemento essencial: um espírito guerreiro capaz de resistir aos inimigos mais cruéis.

 

Assinala Christopher Dawson em seu livro “A Criação do Ocidente” (É Realizações, p. 120/121) falando da guerra contra os vikings:

 

Nunca houve uma guerra que ameaçasse tão diretamente a existência da cristandade ocidental; de fato, essa resistência cristã tem mais direito de receber o nome de cruzada que as próprias cruzadas. A resistência obstinada aos ataques vikings forçou a incipiente ordem da cristandade ocidental a um terrível teste, cuja dureza e seriedade descartou tudo aquilo que era fraco e supérfluo, deixando apenas os elementos mais fortes e resistentes, habituados à insegurança e à violência (…) Reafirmou-se o caráter guerreiro da sociedade ocidental, herdado dos próprios bárbaros. Daí por diante, o ethos guerreiro (…) passou a ser tão dominante na sociedade cristã quanto fora a seus vizinhos”.

 

Grécia, Roma e Jerusalém criaram a mais esplêndida das civilizações. Mas foram os bárbaros quem nos ensinaram a defendê-la. Nesse sentido, a conversão dos vikings é coisa que desempenhou papel fundamental na história do ocidente, e Guthrum, vencido por Alfred, ao se fazer batizar foi um dos primeiros (senão o primeiro) rei viking a se converter, iniciando o próprio processo de conversão da Dinamarca e de todo o norte europeu.

 

A Batalha de Ethandune é, pois, um exemplo para todos nós. Tal como Alfred, também nossa geração se defronta com um adversário muito mais poderoso. Também nós nos vemos na condição de termos de sustentar uma alegria sem causa e uma fé sem esperança. Os inimigos do Ocidente ocuparam todos os espaços e não dão qualquer sinal de que retrocederão em sua marcha vitoriosa.

 

Humanamente falando, a batalha contra os novos infiéis está perdida. Mas é exatamente por isso que podemos ter certeza da vitória. Desde que, em nosso meio, haja alguns poucos ainda capazes, no momento mais desesperador da batalha, naquele instante mesmo em que tudo parece perdido, de simplesmente olhar para o céu e dele esperar o socorro no momento decisivo.

 

Parte III

 

[1] “Irmãos de armas”, disse Alfred/“neste lado está o inimigo;/ a escravidão e a fome são por acaso flores/ para que venhais a colhê-las desta maneira?

Pois o que é melhor/ser perfurado por estacas dinamarquesas/ após cavar uma câmara numa vala/e perseguido como uma bruxa que grita/ou sufocado pela fumaça até a morte em buracos?

Ou é melhor, então, antes do galo vermelho cantar/que todos nós, mil homens fortes/desçamos a estrada escura até a casa de Deus/ cantando uma canção de Wessex?

Transpirar como um escravo para servir uma raça de escravos/ e beber de infâmia?/Não, irmãos, com vossa licença, eu acho/que a morte é uma bebida melhor para se beber/ e por todas as estrelas cadentes de Cristo/os dinamarqueses sela beberão comigo.

 

[2] E quando a última flecha/foi preparada e lançada/quando o escudo quebrado pendia sobre o peito/e quando se deitou a lança desesperançada em descanso/e a trombeta desesperançada soou,

O rei olhou para cima, e o que ele viu/foi uma luz grande como a morte/pois Nossa Senhora estava de pé sobre as bandeiras rasgadas/ sozinha e inocente/tal como quando caminhava entre as paredes brancas/ e os lírios de Nazaré.

Por um instante, numa luz parada/ele então viu Nossa Senhora/seu vestido era suave como o céu do ocidente/e ela era uma rainha muito feminina/mas era uma rainha de homens.

Sobre a floresta de ferro/ele viu Nossa Senhora de pé/os olhos dela não tinham astúcia/trazia sete espadas em seu coração-/mas uma espada trazia na mão.

 

[3] A mãe Deus desce sobre eles,/carregada por temíveis querubins;/e o Salmo ribomboa por sobre a runa,/ e a Cruz sobre o sol e a lua,/ encerrando a batalha de Ethandune/ com o soar da trombeta.

 

As Três Visões do Rei – A Fé Sem Esperança

alfredthegreat
Fonte:

 

Dedico este pequeno ensaio ao Cardeal Carlo Cafarra, morto em 06/09/17. RIP

 

Recentemente, tenho conversado com muitos colegas juízes, que, quase sempre, manifestam profundo desânimo perante o que está acontecendo no Brasil e no mundo. E não sem razão. A sociedade está em franco processo de putrefação e tudo aquilo que a maior parte de nós, brasileiros, temos por bom, por belo e por  sagrado é calcado aos pés por pessoas desprezíveis e infames. Parece vivermos naquela hora errada da história em que os “novos infiéis”, de que falava Fernando Pessoa[1] em famoso poema, estão, finalmente, em sua marcha vitoriosa sobre uma civilização outrora grande e poderosa, nada havendo humanamente a ser feito.

 

Numa dessas conversas com uma colega desanimada, lembrei-me da fantástica obra de G. K. Chesterton “The Ballad of The White Horse”. Trata-se de uma narrativa em verso da épica resistência do Rei Alfred (que depois seria chamado de “o Grande”) contra a invasão viking da Inglaterra, resistência essa que o levou à célebre Batalha de Ethandune, na qual as forças (ou os farrapos, como se queira) de Wessex chocaram-se contra o colossal exército dinamarquês liderado por Guthrum.

 

Por volta do Ano da Graça de 878, Alfred, então rei de Wessex (ao sul do que hoje é a Inglaterra) viu-se na contingência de travar uma luta imensamente acima de suas forças. Vikings vindos da Dinamarca tomaram praticamente toda a ilha. A situação era desesperadora e Alfred não tinha força militar suficiente para uma defesa adequada, quanto mais para um contra-ataque que pudesse retomar dos dinamarqueses a sagrada terra inglesa conspurcada pelos pagãos. É então que, no meio a sua angústia, Alfred tem uma visão da Virgem Maria.

 

A cena, toda ela, tal qual descrita por Chesterton é das mais belas que eu já vi. Alfred pergunta à Santa Mãe de Nosso Senhor não coisas do céu, que são, para ele, tão terríveis quanto às do inferno; pergunta-lhe, antes, coisas imediatas: há para ele esperança de vencer o inimigo?

 

“When our last bow is broken, Queen,
And our last javelin cast,
Under some sad, green evening sky,
Holding a ruined cross on high,
Under warm westland grass to lie,
Shall we come home at last?”[2]

 

As palavras de Alfred são tocantes. Poucas vezes vi uma descrição tão poética da dúvida que, no fundo, vai no coração de todos nós, homens desanimados perante o poder de um inimigo aparentemente muito mais forte: vale a pena lutar? Vale a pena gastar tudo o que temos por uma causa que se afigura perdida de antemão?

 

O rei, com certeza, esperava um “sim” ou um “não” da Virgem. Pois é típico do homem esperar dos céus uma certeza acerca dos acontecimentos que ainda virão. Mas ela não lhe deu nenhuma resposta. Disse-lhe apenas que são os pagãos os que se preocupam com o futuro e que um cristão não deve temer as trevas do mundo:

 

The men of the East may spell the stars,
And times and triumphs mark,
But the men signed of the cross of Christ
Go gaily in the dark.

 

I tell you naught for your comfort,
Yea, naught for your desire,
Save that the sky grows darker yet
And the sea rises higher.

 

Night shall be thrice night over you,
And heaven an iron cope.
Do you have joy without a cause,
Yea, faith without a hope?[2]

 

A Alfred, pois, não é dada nenhuma resposta, ou, ao menos, não aquela que desejava seu coração: a ciência do futuro. Desejar conhecê-lo é coisa de homens sem fé, cujos deuses são terríveis e zombeteiros. Já os combatentes do bom combate adentram alegremente nos dias de trevas! Acrescenta-lhe a Virgem que tudo o que poderia dizer-lhe do futuro é que “o céu se tornaria ainda mais escuro e o mar ainda mais elevado”, numa clara alusão ao crescimento do poder viking caso ele não lutasse. E, se desejasse lutar, a noite seria, para ele, três vezes noite, e o céu, como uma abóboda de ferro.

 

A única resposta, assim, da Virgem é que muitos sofrimentos esperavam Alfred, quer ele lutasse, quer não. Mas, ao fim de tudo, ela lhe dirige um desafio, que hoje é dirigido a cada um de nós: “Do you have joy without a cause, yea, faith without a hope?” Seria ele capaz de ter alegria sem uma causa imediata e de ter fé sem uma esperança humana?

 

Seríamos capazes, nós mesmos, de tal alegria e de tal fé? Será que, nesse instante em que os novos infiéis parecem vencer, temos nós verve suficiente para aceitar que o mundo todo se precipita em sombras e que somos chamados não a uma vitória, mas apenas e tão somente ao combate?

 

Bem… Alfred foi capaz. Após essa primeira visão, foi em busca de aliados:

 

Up across windy wastes and up
Went Alfred over the shaws,
Shaken of the joy of giants,
The joy without a cause.[3]

 

Um gigante de verdade! Capaz de enfrentar desertos e matas animado por uma alegria não mundana. Tão gigantesca foi a figura de Alfred que se tornou ele único rei inglês que, na gloriosa história daquele país, ganhou o epíteto de “o Grande”.

 

Os aliados que Alfred busca e que acabariam por lutar consigo não são personagens históricos. Num golpe brilhante, Chesterton colocou três homens a lutar ao lado do grande rei inglês: um italiano (Mark), um saxão (Eldred) e outro irlandês (Colan), representando os povos que colonizaram a Inglaterra e que forjaram o espírito inglês. Quando o rei Alfred pôs-se face a face com o temível exército dinamarquês, estes três povos estavam de fato lutando com ele e com seus soldados, pois, de uma certa forma, lutavam nele  e nos seus soldados.

 

Todos se reuniram e marcharam para Ethandune. Ao chegarem perto do local em que se daria a batalha, a esperança dos ingleses se desfez: a superioridade do exército inimigo era colossal e a derrota viria rapidamente. Mas, ainda que a esperança morresse, não morreu no coração deles o ânimo de simplesmente lutar pela Inglaterra. Alfred confessou publicamente seus pecados mais escandalosos; Mark, Eldred e Colan explicam como gostariam de ser sepultados.

 

A morte era certa; a honra da luta, contudo, não lhes seria roubada.

 

Estava tudo pronto para a Batalha de Ethandune!

 

Parte II

 

[1]Pai, foste cavaleiro./ Hoje a vigília é nossa. / Dá-nos o exemplo inteiro/E a tua inteira força!/ Dá, contra a hora em que, errada,/Novos infiéis vençam,/A bênção como espada,/ A espada como benção!

[2]Os Homens do leste podem ler as estrelas/ e marcar os tempos e os triunfos,/ mas aqueles marcados com a cruz de Cristo/ andam alegremente pelas trevas.

Eu nada digo para o teu conforto/ sim, nada quanto ao teu desejo/ a não ser que o céu será ainda mais escuro/ e que o mar subirá ainda mais.

A noite será três vezes noite sobre ti/ e o céu uma abóbada de ferro./ Você teria alegria sem causa/ e fé sem esperança?

 

[3] Para cima e através de desertos com ventanias e para cima/foi Alfred por sobre matagais/agitado pela alegria dos gigantes,/pela alegria sem causa.