O último capítulo da “A Balada do Cavalo Branco” de Chesterton é chamado de The Scouring Of The Horse (que entendi por bem traduzir como “A Poda do Cavalo”, mantendo, ao que me parece, o sentido preciso que Chesterton quis dar ao gerúndio, ainda que a tradução não seja literal). A essa altura, penso ser necessário esclarecer o leitor a que cavalo, afinal, Chesterton se refere no título de seu famoso poema.
Segundo antigas tradições orais, incorporadas no poema, a Batalha de Ethandune se deu no vale de Berkshire, na Inglaterra. Nesse vale, o solo é branco devido à grande presença de cal. E, desde séculos antes (na verdade, desde tempos imemoriais), foi talhada no vale a imagem de um cavalo branco, que pode ser vista desde longe e que permanece lá até hoje (conforme figura acima). Este Cavalo Branco foi, então, como que testemunha ocular do histórico combate travado entre Alfred e Guthrum e da vitória das forças inglesas sobre as dinamarquesas.
Ocorre que, abandonada à natureza, a imagem do cavalo simplesmente desapareceria uma vez que o crescimento inexorável da vegetação ao redor acabaria encobrindo-a por completo. Para que o Cavalo Branco sobreviva à passagem dos séculos, é necessário que os interessados mantenham a poda (scouring) frequente da vegetação ao redor; caso desdenhem desse serviço, o cavalo se apagará e as futuras gerações perdê-lo-ão para sempre.
Essa é a mensagem central de todo o poema de Chesterton.
Vencidos os infiéis, eles cedo ou tarde voltariam à carga e tentariam de novo (e de novo, e de novo) subjugar a Inglaterra, fazendo perecer tudo o que os ingleses amavam:
And though skies alter and empires melt,
This word shall still be true:
If we would have the horse of old,
Scour ye the horse anew.[1]
Uma vez que as invasões da Inglaterra pelos vikings são tomadas como clara metáfora da luta constante do Ocidente em face de seus inimigos, a mensagem do texto toca ainda a nós: se queremos gozar da civilização de outrora, cuidemos sempre dela caso venhamos a reconstruí-la. Se não o fizermos, os novos infiéis, tal qual a vegetação faria com o Cavalo Branco, acabarão por subjugá-la novamente. O preço de gozarmos das conquistas civilizacionais que nossos antepassados (e somente eles) conseguiram talhar é a constante vigilância quanto aos ataques do inimigo.
E, de fato, após Ethandune, Alfred e a Inglaterra até que passaram por um período de paz. Contudo, estando ele já velho, notícias terríveis de uma nova investida viking, com a queda de Londres, chegam a Wessex e o povo, alarmado, recorre ao rei já idoso. Alfred, então, prepara-se mais uma vez para o combate. Mas deixa claro que os vikings já não eram sua maior preocupação. Antes, revela aos seus súditos a última visão (a terceira) que os céus lhe tinham concedido, mostrando-lhe os verdadeiros inimigos que, um dia, invadiriam a Inglaterra e que poderiam, verdadeiramente, dobrar para sempre o espirito inglês.
“I know that weeds shall grow in it
Faster than men can burn;
And though they scatter now and go,
In some far century, sad and slow,
I have a vision, and I know
The heathen shall return.
“They shall not come with warships,
They shall not waste with brands,
But books be all their eating,
And ink be on their hands.
“Not with the humour of hunters
Or savage skill in war,
But ordering all things with dead words,
Strings shall they make of beasts and birds,
And wheels of wind and star.
“They shall come mild as monkish clerks,
With many a scroll and pen;
And backward shall ye turn and gaze,
Desiring one of Alfred’s days,
When pagans still were men.
“The dear sun dwarfed of dreadful suns,
Like fiercer flowers on stalk,
Earth lost and little like a pea
In high heaven’s towering forestry,
–These be the small weeds ye shall see
Crawl, covering the chalk
“What though they come with scroll and pen,
And grave as a shaven clerk,
By this sign you shall know them,
That they ruin and make dark;.[2]
A nova investida viking seria mais uma vez afastada. Décadas depois, um dos descendentes de Alfred perderia a Inglaterra para um rei dinamarquês, Cnut (Canuto, em português), que, saindo-se vitorioso, tal qual ocorrera com Guthrum na derrota, converter-se-ia ao cristianismo, faria peregrinações a Roma e tornar-se-ia protetor da Igreja e incentivador da evangelização dos dinamarqueses, num daqueles fatos históricos que, se bem compreendidos, deveriam deixar a todos os que o compreendem com a boca aberta e embasbacados. Na derrota e na vitória militar dos dinamarqueses frente ao povo da Inglaterra, a civilização cristã foi sempre vitoriosa pela mão dos próprios reis de Dinamarca.
Alfred não precisaria, pois, se preocupar com os vikings. Mesmo porque sua preocupação, conforme dito por Chesterton, nunca foi sua coroa ou a posse da Inglaterra: ele lutava pela civilização cristã, que os dinamarqueses, simplesmente, jamais conseguiriam subjugar.
Mas os tais infiéis do futuro poderiam consegui-lo. E é sobre eles que Alfred deixa sua última advertência antes de partir de Wessex para retomar Londres.
Como saber quais seriam esses tempos tão terríveis nos quais a própria sobrevivência do espírito inglês (e do Ocidente como um todo) estaria sob grande perigo? Se os inimigos sempre se levantariam contra a Inglaterra, como reconhecer o momento preciso em que esses novos infiéis viriam talvez para triunfar onde os antigos falharam? Alfred, antes de se levantar de seu trono e seguir para sua última batalha, dá vários sinais para reconhecê-lo: seria o tempo da espada que se quebra (um tempo de pacifismo e de recusa ao bom combate); o tempo em que o nosso sol seria visto como um mero anão entre sois mais terríveis e no qual a Terra seria vista como um mero grão no universo; o tempo em que muito se conversaria aos borbotões sobre atos pecaminosos, mas no qual a existência mesma do pecado seria negada; o tempo em que Deus e os homens seriam desonrados e no qual a morte e a vida seriam esvaziadas.
Enfim, os nossos tempos.
Quando Chesterton escreveu seu poema corria o Ano da Graça de 1.911. Menos de 20 anos depois, os teóricos da Escola de Frankfurt levantariam suas vozes pestilentas para proclamar, com livros e escritos, uma guerra incansável ao Ocidente e a tudo o que ele representa. A vitória até aqui palpável da Escola de Frankfurt concretiza a marcha dos novos infiéis prevista por Alfred: a guerra na qual todos nós, seja como vítimas seja como idiotas úteis (e, infelizmente, no caso de parcela considerável dos magistrados, como vítimas e como idiotas úteis) estamos envolvidos.
Curiosamente, Alfred não diz se os novos infiéis iriam ou não triunfar em sua investida. Chesterton, por mais genial que fosse, não conhecia o futuro. Percebia a guerra se formando e a natureza das batalhas que se avizinhavam; mas o resultado do combate era e continua sendo imprevisível.
Seremos nós capazes de sustentar a alegria sem causa e a fé sem esperança para nos colocarmos em combate em guerra tão sem esperança? Teremos a grandeza de, combatendo ante uma derrota iminente, olharmos para o céu em busca do socorro no momento derradeiro? Venceremos ao final? Ao menos, depois de tudo, haverá ainda um lar ao qual retornemos?
As respostas não são conhecidas. Mas, se, Deo volente, virarmos os rumos da guerra (até agora, perdida) e vencermos o inimigo, que possamos guardar, após a vitória, a mais importante das lições que nos vêm do Cavalo Branco, fazendo, nós mesmos, aquilo que as gerações que nos precederam nos últimos dois séculos não fizeram:
If we would have the horse of old,
Scour ye the horse anew.
[1] Ainda que os céus mudem e os impérios se dissolvam,/ esta palavra será sempre verdadeira:/ se quereis o cavalo de outrora,/ podai o cavalo novamente.
[2] “Sei que as ervas daninhas crescerão sobre ele/ mais rapidamente do que os homens podem queimá-la;/ e ainda que eles se dispersem agora e que vão,/num século longínguo, trite e lento,/ eu tive uma visão, e sei/ que os pagãos hão de retornar.
Não virão com navios de guerra,/ e não devastarão com bandeiras,/ mas livros serão todo o seu alimento,/ e tinta estará em suas mãos.
Não com o temperamento de caçadores/ ou com habilidades selvagens de guerra,/ mas tudo ordenando com palavras sem vida,/ farão cordas das bestas e de pássaros,/ e rodas do vento e da estrela.
Virão com suavidade como clérigos monges,/ com muitos pergaminhos e penas; e vós vos virareis e olhareis para trás,/ desejando ainda viver nos dias de Alfred,/ quando os pagãos ainda eram homens.
Embora venham com pergaminho e pena/ e sérios como um clérigo sem barba,/ por esse sinal os reconhecereis,/que eles trazem ruínas e escuridão