A Tutela da Revolta e a Ascenção do Estado Totalitário

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Fonte da imagem: https://www.esbocandoideias.com/2017/03/leviata-na-biblia-e-um-demonio.html

 

Parte I: E Sereis Como Deus.

Parte II: A Revolta Metafísica em Ato.

 

Como dito nos dois posts anteriores, há no homem uma revolta metafísica, uma ruptura imaginária entre o ser e o dever ser, sendo que a ideologia de gênero aproveita-se exatamente desta nossa fraqueza para lançar seu apelo. Tal apelo encontrará eco naqueles indivíduos mais suscetíveis de abandonar a realidade e aderir ao seu dever ser imaginário.

Assim, os ideólogos de gênero conseguiram, por meio de muita propaganda midiática, criar uma demanda no corpo da sociedade. E, criada ela, era necessário, então, que, na outra ponta do processo, alguém fosse escalado para supri-la: os legisladores e os juízes. Para convencê-los, o apelo feito foi de outra natureza, mas que, igualmente, faz eco numa fraqueza ínsita a todo ser humano: apelou-se para o desejo que há em todo filho de Eva de ser como Deus (כֵּאלֹהִים). De fato, a vontade de sermos como Deus é coisa que continua reverberando dentro de nós. E aqueles que exercem efetivamente algum poder dentro da sociedade são pessoas muito propensas a aceitar este tipo mentira. Em nossas republiquetas modernas, os indivíduos talhados para a tarefa são os legisladores e, especial e infelizmente, os juízes.

O trabalho básico dos ideólogos de gênero nesse sentido tem sido o de nos convencer que a revolta metafísica em questão, não somente nada tem de patológica, mas ainda representa um valor a ser tutelado. Em princípio, melhor seria que a tutela fosse feita por meio de lei (ou seja, pelos legisladores); mas, como nem sempre isso é possível (visto que a pressão popular encontra eco muito amplificado dentro das casas legislativas), então que se faça ela pela via do Poder Judiciário.

Ora, devido às filosofias do século XX, muitos realmente creem que a linguagem humana cria a realidade e aceitam como verdade a mentira óbvia de que basta proclamar fiat lux para que a luz seja.

É nessa ilusão que vive boa parte dos membros do Poder Judiciário. Cremos que basta proclamar que José tornou-se Maria e que, depois, passou a ser uma égua para que, de fato, ele tenha deixado de ser homem e, finalmente, transformado-se num equino. Contudo, ainda que haja sentença averbada em cartório reconhecendo tal transformação, José continuará incapaz de sobreviver apenas à base de feno e não poderá jamais engendrar cavalinhos. Continuará, na realidade das coisas, a ser apenas e tão somente o mesmo José, como já o tem sido desde o nascimento.

Assim, ao cabo de tudo, há um obstáculo invencível: não somos כֵּאלֹהִים no sentido dado pela serpente e nossa linguagem é incapaz de alterar o ser das coisas. Quando muito, pode apenas descrever a realidade que nos cerca (e, mesmo assim, com notórias limitações); jamais alterá-la.

É necessário que se diga com franqueza a juízes, desembargadores e Ministros: podemos, à vontade, e por milhares de vezes, proclamar “fiat lux”, mas a luz não se fará! Por mais que isso fira os sentimentos de meus colegas magistrados, nosso יְהִי אוֹר não faz com que a luz seja.  Proclamarmos que José a partir de agora é Maria não faz com que o primeiro transforme-se na segunda.

Pura e simplesmente, não temos esse poder.

Mas (e é aqui que o jogo fica perigoso), embora o Estado, o grande Leviatã, não tenha poder para alterar a realidade, cada vez mais ele o tem para fazer com que o cidadão comum passe a se comportar como se a realidade tivesse sido alterada.

A sentença de um juiz, como já dito, não altera o fato de que José continua sendo José, por mais que queira ser Maria para se transformar, finalmente, numa égua. Porém, o Estado é capaz de fazer com que todos passem a tratar João como se fosse uma sob pena de terem a vida arruinada.

Num exemplo simples, suponha-se que Pedro obteve uma sentença na qual se proclamou ser ele Pietra. Suponha-se, ainda, que Pedro, numa pizzaria qualquer, queira utilizar-se do banheiro feminino. Neste cenário, a situação concreta é a seguinte: Pedro sabe não ser Pietra; o dono da pizzaria, também; o segurança do estabelecimento, também; os demais clientes (especialmente, as demais clientes), também; mas todos deverão aceitar como normal o fato absurdo de um homem estar usando o banheiro das mulheres, pois, quem se arriscar a agir conforme a realidade das coisas pode sofrer sérias consequências jurídicas.

De fato, o Estado dispõe de mecanismos de controle social e pode impor à maior parte de seus súditos que se comportem como se a realidade mesma tivesse sido alterada. Viver alheio à realidade é coisa de louco; viver conhecendo a realidade, mas fingindo desconhecê-la é coisa muito próxima à loucura.

Não se pode esquecer que o fenômeno do Estado totalitário é coisa recente. Apenas a partir de meados do século XX é que o totalitarismo emergiu e se impôs. Até há poucas décadas, o máximo que o mundo conhecera havia sido tiranos, alguns muito sanguinários, mas incapazes de controlar todos os aspectos da vida de seus súditos por não disporem dos meios necessários para tanto. No entanto, tais meios surgiram e os tiranos passaram a exercer, sobre o indivíduo comum, um poder de controle até então inimaginável, moldando os comportamentos conforme a sua vontade.

Alguns dizem que a ideologia de gênero está se aproveitando do Estado totalitário em formação para fazer avançar sua agenda. Penso haver nisso um ledo engano. Ao contrário, é o Estado totalitário em formação que está se aproveitando das demandas de gênero para, por meio de juízes e de legisladores sedentos em ser como Deus, aumentar seu controle sobre a vida dos indivíduos.

A essa altura, penso que chegamos ao cerne da questão. De fato, o casamento entre a revolta metafísica e a tutela dessa revolta está impulsionando o totalitarismo estatal. Com isso em mente, pode-se, então, deitar o argumento decisivo no debate acerca da ideologia de gênero, dando-se a razão invencível pela qual não podemos jamais aceitar as questões de gênero como valor a ser tutelado. A razão é esta (e precisamente esta): é rigorosamente impossível tutelarem-nas juridicamente sem que isso represente um cerceamento brutal do Estado à liberdade do indivíduo comum; não é possível avançar-se na adoção de políticas de gênero sem o correspondente avanço do totalitarismo estatal.

Que José queira viver como égua é coisa que não podemos senão lamentar; que queira que todos o reconheçam como equino, contudo, é coisa que somente pode ser feita se o Estado limitar brutalmente a liberdade dos demais indivíduos de viver de acordo com a realidade percebida.

Geralmente, nós, juízes, nos consideramos como pessoas muito inteligentes (e a maioria o é de fato), muito cultas (e a maioria o é de fato) e muito bem informadas (a maioria, infelizmente, não o é). Nada disso, contudo, impede que sejamos idiotas úteis nas mãos de grupos que querem engendrar um Estado totalitário. E reconhecer que temos sido precisamente isso (idiotas úteis) é vital para a sobrevivência do Ocidente.

Isso porque um Estado totalitário será totalitário para todos; tanto para o cidadão comum como para os magistrados; tanto para o filho da mais simples das pessoas quanto para os dos Ministros das altas cortes. Ninguém poderá escapar das mãos gélidas de Leviatã quando ele lançar suas garras em nossos pescoços para nos sufocar e nos subjugar. Se não o percebermos agora, enquanto ainda há alguma luz, não mais seremos capazes de, no futuro, quado tudo for trevas, percebê-lo. E não mais conseguiremos entender como foi exatamente que nossas liberdades todas se perderam, nem como foi exatamente que nós, magistrados, contribuímos para isso.

Em suma, seremos incapazes de perceber que a alienação do homem ocidental da realidade, que a revolta metafísica transformada em valor a ser tutelado e que o desejo cada vez mais incontido de agentes estatais de serem como Deus foram os ingredientes necessários para que um Estado totalitário se erguesse sobre todos, suprimindo a mais básica de todas as liberdades: aquela de agir conforme a realidade que nos cerca.

 

E, suprimida ela, todas as demais cairão.

 

Uma a uma, sem maiores resistências.

 

Pois até mesmo a possibilidade de apreender que as liberdades terão sido suprimidas e a possibilidade de agir conforme esta realidade não mais existirão.

 

Nossos filhos e netos nem podem imaginar o belo mundo novo que lhes estamos construindo…