
A guerra entre Rússia e Ucrânia acaba de completar dois meses. Ontem (24/04), houve eleições na França, cujo resultado impacta diretamente a política externa brasileira. Na China, novas medidas de lockdown assumem tons tão draconianos que, há alguns meses, seriam inimagináveis. A economia do mundo inteiro derrapa. No Brasil, já se vive o clima pré-eleitoral, há novas ameaças de choque entre instituições, a inflação ameaça disparar e o país é assolado por outro surto de dengue.
Apesar disso tudo, quem acessou os principais portais de notícias nos últimos dias foi brindado com fotografias e matérias sobre… o carnaval fora de época e o sucesso das rainhas de bateria! Não é surreal que, com tantas coisas de suma importância acontecendo nós, brasileiros, percamos tanto tempo e demos tanta importância a algo tão banal e tolo?
Esse deslocamento quase que absoluto entre a importância real dos acontecimentos e a forma pela qual nós os avaliamos parece ser uma tônica do comportamento do nosso povo. Há uma passagem deliciosa na saga O Tempo e o Vento que comprova esse fato com fina ironia.
O personagem principal do romance, o médico Rodrigo Cambará (não confundir com o famoso capitão Rodrigo, de quem ele é bisneto) recebe, em 1.925, uma carta de Terêncio Prates, amigo seu que vivia em Paris e que se mostra preocupadíssimo com os rumos que via o mundo tomar. “Estamos presenciando um cataclismo social em toda a Europa”, escreve em tom de desânimo. E segue: “É o caos. Não há mais fé, nem moral, nem Ética e nem mesmo estética.” Continua citando exemplos dessa decadência generalizada: “As mulheres perdem o pudor, cantam canções bandalhas, dançam danças lúbricas, desnudam-se em público, fumam, bebem, sim senhor, embriagam-se como homens”; “encontra-se em Paris (…) uma mulata norte-americana que se exibe num destes cabarés completamente nua, apenas com uma tanga de bananas”[1]. Lamenta que os europeus, antes acostumados à grande música, agora ouviam “essa ‘coisa’ cacofônica, barulhenta e negroide que é ‘jazz band’”. Na literatura, as coisas também não iam bem: “O que se vê agora por aqui é uma literatura pseudo-moderna, que não consigo estimar nem ao menos entender”. Prenunciando acontecimentos que atingiriam seu ápice décadas depois, descreve que “a mocidade parece ter tomado o freio nos dentes e saído a apedrejar homens e instituições, a rasgar e a espezinhar as velhas bandeiras tradicionais, quebrar as vidraças das academias”.
E, por fim, arremata a carta com uma boa dose de acerto quanto às causas da crise: “E sabes a quem cabe, em boa parte, a culpa de tudo isso? A dois tipos de mentalidade que estão procurando impor-se no mundo. A da Rússia, com seu bolchevismo materialista e iconoclasta, e a dos Estados Unidos, com sua irreverência esportiva e sua arrogância de ‘noveau riche’”. E, com não menos acerto, aponta qual a saída para ela: “contra o ateísmo russo e o mercantilismo calvinista dos ianques terá de erguer-se a força moral e histórica da nossa Igreja”.
Pois bem.
O Dr. Rodrigo Cambará lê a carta para um círculo de amigos e, terminada a leitura, esperando ver quais seriam suas considerações diante de acontecimentos tão graves, ouve, de um deles (Neco Rosa) a seguinte pergunta: “Como é mesmo a história da mulata que dança pelada?”
O mundo pegando fogo e o que interessou o sujeito foi apenas o detalhe da mulata dançando sem roupas. Quase um século se passou. Mas os portais de notícia dos últimos dias não deixam margens para dúvidas: a desproporção entre a importância real dos fatos e a tábua de preferência dos brasileiros continua rigorosamente a mesma.
[1] Trata-se de Josephine Baker que, tanto sucesso fez, foi sepultada no próprio Panteão de Paris.