Nota Pública

O Movimento Magistrados para a Justiça se solidariza com a colega, a Juíza de Direito Tatiane Moreira Lima da Vara da Região Oeste de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, do Foro Regional XV – Butantã, a qual, nesta data, no exercício de suas funções naquele Foro, foi atacada por um homem, portando vários coquetéis molotovs, o qual a rendeu e a fez refém, subjugando-a no chão, jogando gasolina em seu corpo, sob ameaça de atiçar fogo.

Esse fato lamentável expõe a público nossa fragilidade face a um sistema de segurança incapaz de garantir a incolumidade física não apenas dos magistrados, mas de todos que trabalham nas dependências dos foros.

A dignidade dos suspeitos, denunciados, réus e presos parece ser maior que a de uma autoridade, já que há sempre aqueles que se levantam com teses sociológicas e politicamente corretas para socorrer os primeiros no intuito de justificar o injustificável, encobrindo atos criminosos.

O comportamento do agressor reflete, em síntese, a decadência moral de nossa sociedade, em que não mais se respeita a autoridade constituída, visto que essa cena há 50 anos seria inimaginável.

A que ponto chegamos!

Tatiane passa bem, mas sua vida correu perigo e longos, certamente, foram aqueles minutos em que se viu a mercê de seu agressor.

Que essa tarde fatídica sirva de alerta, motive medidas concretas para obstar futuras agressões, antes que tal fato se transforme no primeiro de muitos outros que podem não ter um final tão feliz.

Um Novo CPC… que Será Vetusto em Breve

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Há poucos dias, entrou em vigor, como todos sabem, um novo Código de Processo Civil. Particularmente, não vejo a nova lei processual  com bons olhos. Em minha modesta opinião, o novo código capricha em tornar a vida dos juízes insuportável e, pode-se prever com alguma dose de certeza, acabará por fazer a administração da justiça ainda mais lenta. Não conheço nenhum colega magistrado que esteja muito entusiasmado com a mudança recém operada, e a imensa maioria dos juízes com quem troco algumas ideias não faz outra coisa senão lamentar a tempestade que parece estar se avizinhando.

 

Mas não gostaria de tecer lamentos que possam ser vistos como corporativistas. Não quero aqui falar de como nós juízes somos os grandes prejudicados com a lei nova. O que eu gostaria de abordar – advertindo o leitor que o faço desde um ponto de vista absolutamente pessoal – é o que significa termos um código novo apenas 42 anos após a edição do “código velho”.

 

No Ano da Graça de 1.973, a chegada do homem à Lua já não era novidade nenhuma; os computadores já existiam e a internet seria inventada meia dúzia de anos depois; a classe política que nos governa já estava toda formada (e pronta para nos deformar) e o Brasil já tinha as mesmas três copas do mundo a mais do que a Argentina como hoje as tem.

 

O ano de 1.973 foi, literalmente, anteontem. Com toda certeza, há muitos operadores do direito hoje que, então, já estavam na ativa. São pessoas que, por um azar danado, foram obrigadas a passar pelo trauma de ter que aprender todo um código processual novo duas vezes numa mesma vida.

 

Uma mulher que tenha nascido em 1.973 e que tenha passado por tantas cirurgias plásticas quantas foram as mudanças pontuais operadas no código revogado com certeza ainda é um avião em condições de fazer muito marmanjo perder a cabeça.

 

Então, não consigo aceitar a ideia de que o código de 1.973 fosse vetusto. Não consigo aceitar que já fosse necessário jogá-lo no lixo, trocando-o por um novo cujas consequências práticas são ainda imprevisíveis.

 

Afinal, eu nasci em 1.974 e, se o leitor ainda não percebeu, os reformadores do Código de Processo Civil me chamaram de velho! E isto é algo que eu, na flor da idade, não posso em absoluto aceitar!

 

Talvez seja por isto que os três ou quatro neurônios que ainda me restam, ao saberem que um novo código estava sendo gestado, entraram em pânico e buscaram alguma explicação para esta mania do homem moderno de mudar tudo a todo tempo. E, na medida de suas parcas possibilidades, os pobres acabaram por traçar uma parquíssima (talvez um ou outro leitor a entenda por porquíssima) explicação para este fenômeno. Há algumas frases lapidares de homens muito superiores a mim, que me ajudaram e que fizeram com que eu me acalmasse interiormente, permitindo-me a conclusão de que nem o código atual é velho (e de que, portanto, eu também não sou) nem havia qualquer necessidade de alterá-lo.

 

Farei as citações destes homens e, depois, tentarei amarrá-las.

 

Vamos lá!

 

1) O primeiro pensador que veio me socorrer foi ninguém mais ninguém menos do que nosso Gustavo Corção. Em seu magnífico livro “O Século do Nada” (que atualmente apenas é encontrado em sebos, mas que o leitor pode ler por inteiro neste link: https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/o_seculo_do_nada.pdf), no capítulo terceiro, da primeira parte, ao falar do “milagre da Idade Média”, Corção leciona (grifos acrescentados):

 

 

“Através da confusão da decadência do Império Romano desenha-se uma linha histórica marcada pela era patrística, que culmina com Agostinho, e das ruínas do mundo antigo começa a firmar-se a mais extraordinária e misteriosa experiência histórica: a Cristandade ou Civilização Cristã. Esta idade, ou essa statio da humanidade, realizada por mais de um milénio no ocidente cristão, se alguém quer admirá-la pelo que ela tem de mais admirável, terá de começar por aquilo mesmo de que ela é acusada pelo trepidante e insensato espírito moderno: terá de começar por admirar sua feição realmente estacionária.

 

A lição acima é lapidar.

 

Houve um tempo no Ocidente em que os homens realmente não viam a palavra “revolução” com bons olhos. Um tempo em que mesmo os mais simples contemplavam maravilhados a civilização que tinham diante deles e que lutavam para preservá-la contra quem quer que fosse que tivesse a pretensão petulante de destruí-la.

 

Este tempo é o que hoje chamamos de Idade Média, expressão que causa arrepios entre os ditos intelectuais modernos. Mas, como dirá Gustavo Corção, no mesmo livro, poucas linhas após aquelas já citadas, “as trevas da Idade Média — disse o judeu Gustave Cohen —- são realmente as trevas de nossa ignorância; e creio que Egon Friedel, outro judeu, disse por outras palavras a mesma coisa.”

 

Qualquer pessoa que estude a Idade Média percebe, claramente, este desejo dos medievais de preservar o patrimônio cultural adquirido de seus pais. Se é verdade que, nos tempos modernos, as grandes convulsões sociais visam subverter a ordem instituída (o termo “revolução” não é empregado por acaso para descrevê-las), na Idade Média elas nasciam do desejo de se evitar qualquer ruptura que atrapalhasse a ordem vigente. O exemplo da reação violente dos homens medievais ao catarismo é uma prova absolutamente irrefutável deste desejo de manter as coisas tal qual elas se encontravam.

 

2) Passemos, agora, ao segundo homem de escol a que me referi. Trata-se de um dos mais influentes Papas dos últimos séculos, Leão XIII, que governou a Igreja Católica de 1.878 a 1.903.

 

Talvez, naquela que seja sua mais conhecida encíclica (Rerum Novarum), Leão XIII ensina o seguinte:

 

A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito.”

 

 

Bem, se a Idade Média fora marcada por uma “feição realmente estacionária”, na qual os povos agitavam-se para manter tudo como estava, os tempos modernos marcam-se por uma “sede de inovações”, que os mantém todos num constante estado de “agitação febril”, agitação esta que não se volta mais contra os inovadores da ordem social, mas contra os que a querem manter.

 

Não consigo imaginar duas sociedades mais díspares uma da outra! A primeira, enraizada firmemente em sua própria cultura, nasceu pequena e, sempre mantendo-se no mesmo lugar, como fazem as grandes árvores, expandiu-se para os lados e para o céu, a ponto de ainda hoje maravilhar as nações. A segunda, desprezando quaisquer tipos de raízes, como erva daninha cresce apenas para os lados, rastejando junto ao chão sem qualquer ordem ou beleza, sendo incapaz de dar sombra ou alimento às almas sedentas do homem hodierno.

 

Compará-las ambas é como comparar uma sequoia e uma moita de capim. Com o agravante de que foram os nossos antepassados que repousaram ao pé da grande árvore enquanto somos nós que, sem disfarçar um orgulho boboca, sentamo-nos dentro do capinzal!

 

A primeira era uma sociedade capaz de guardar as mesmas leis por séculos; já a segunda atreve-se a chamar de velha uma legislação que tem a minha idade!

 

Faltava, apenas, uma explicação do porquê desta diferença tão abismal entre uma e outra.

 

E tal explicação, encontrei-a naquele que talvez tenha sido o homem mais inteligente do século XX.

 

3)  Em seu livro “Ortodoxia”, Chesterton, numa pincelada de mestre, esclarece o que está por detrás desta mudança. No capítulo “A Ética da Elfolândia”, ele assinala:

 

Todo o intenso materialismo que domina a mente moderna apóia-se, em última análise, numa suposição; uma suposição falsa. Supõe-se que se uma coisa vai se repetindo ela provavelmente está morta; uma peça numa engrenagem. As pessoas sentem que se o universo fosse pessoal ele variaria; se o sol estivesse vivo ele dançaria. O que é uma falácia até em relação a fatos conhecidos. Pois a variação nas atividades humanas é geralmente causada não pela vida, mas sim pela morte; pelo esmorecimento ou pela ruptura de sua força ou desejo. Um homem varia seus movimentos por algum leve elemento de incapacidade ou fadiga. Ele toma um ônibus por estar cansado de caminhar; ou caminha por estar cansado de ficar sentado imóvel. Mas se sua vida e alegria fossem tão gigantescas que ele nunca se cansasse de ir para Islington, ele poderia ir para Islington com a mesma regularidade com que o Tamisa vai para Sheerness. A própria velocidade e êxtase de sua vida teria a imobilidade da morte. O sol se levanta todas as manhãs. Eu não me levanto todas as manhãs; mas a variação se deve não à minha atividade, mas à minha inação.

 

Eis aí!

 

Ao contrário do que aconteceu durante a aurora do Ocidente, as sociedades de hoje mantêm-se num constante estado de agitação febril, buscando novidades que se tornam velhas ao menor piscar de olhos porque, de uma certa forma, perderam a seiva que lhes mantinha vivas. Buscam nas novidades o que já não podem mais achar em si mesmas, e pensam que, movimentando-se freneticamente de um lado para o outro, conseguirão encontrar o que ainda lhes falta.

 

As revoluções acontecem umas após as outras neste nosso bravo mundo moderno porque a mão da morte pesou sobre nós e, desesperados, não sabemos o que fazer para tentar sorver um pouco de vida.

 

O novo Código de Processo Civil insere-se precisamente neste contexto.

 

Quando surgiu, o código revogado veio, trinta e quatro anos depois, com promessas de superar o que então se considerava vetusto código de 1.939 (!). Teve, igualmente, vida curta, pois a sucessão frenética de legislações que nos atormenta a todos não é capaz, por si só, de realizar o que se espera que ela realize. Pelo simples fato de que a lei destina-se a concretizar a justiça, sendo incapaz de criar a realidade. Não são mudanças na lei que garantirão, por si só, a rapidez e a eficiência da prestação jurisdicional.

 

Em outras palavras, a rapidez estonteante com que as legislações se sucedem umas às outras não se fundamenta tanto na necessidade de reforma da legislação, mas numa necessidade do homem moderno de tudo descartar por não se contentar com nada. É certo as leis postas têm lá suas limitações e que reparos pontuais nelas se fazem necessários. Mas, numa sociedade saudável, as correções de um sistema legal deveriam ser feitas sem que, com elas, se joguem sistemas inteiros na lata do lixo, trocando-os por sistemas novos.

 

Pois, em breve, os novos sistemas também envelhecerão. E, dada a mentalidade já descrita, serão eles mesmos taxados de vetustos e jogados fora, substituindo-se-lhes por outros novinhos. Até que também estes sejam tidos por obsoletos.

 

Enfim, temo que, quando, dois meses depois da entrada em vigor do novo código, o homem moderno começar a se dar conta de que ele não será capaz de resolver nossos problemas processuais, um novo código comece a ser gestado na mente brilhante de nossos juristas, que, apesar de tudo, continuarão acreditando piamente que mudando a lei construirão o paraíso processualístico que almejam.

 

E talvez, eu, ainda um jovenzinho, terei de passar pelo trauma de, já tendo sido obrigado a pôr de lado (quando ainda sequer o tinha entendido) o código revogado, e, com certeza estando ainda engatinhando em minha compreensão do novo, boquiaberto, ter de estudar um terceiro sistema processual: o novíssimo Código de Processo Civil de, digamos, 2.031!

 

Quem viver verá…