Poucos pensadores do século passado tiveram um impacto tão grande na vida do homem ocidental comum quanto Hebert Marcuse, célebre membro da Escola de Frankfurt, um dos principais responsáveis pela revolução sexual das décadas de sessenta e setenta do século XX e, talvez, da ascensão do lumpesinato ao centro das políticas públicas em vários países (Brasil inclusive).
Neste pequeno artigo, dividido em duas partes, pretendo tecer algumas poucas considerações sobre o pensamento dele tal qual expresso em dois de seus livros de referência: “Eros e Civilização” e “O Homem Unidimensional”, apontando o que eu considero ser como a principal divergência que tenho com seu pensamento e, também, qual foi, em meu entender, o maior e mais surpreendente equívoco que ele cometeu.
Pois bem.
Para defender sua revolução hedonista, Marcuse parte da ideia de Freud segundo a qual há no ser humano dois princípios opostos: o princípio do prazer e o princípio da realidade. Pelo primeiro, todos tendem a satisfazer, sempre, seus desejos, dando-se prazer; pelo segundo, todos tendem a refrear esses mesmos desejos, adiando a satisfação deles justamente para permitir a vida em sociedade. Isso porque nunca houve (ao menos até o advento da sociedade industrial) suficientes bens à disposição para que cada indivíduo pudesse satisfazer todos os seus desejos; além disso, sempre há a necessidade de que se mantenham vínculos entre as pessoas, o que exige um respeito mútuo entre elas. De qualquer forma, segundo Marcuse, Freud observou que a civilização é necessariamente repressiva, pois é justamente o princípio da realidade que a torna possível.
Até aí, tudo bem. A ideia geral não é absurda e parece conter ao menos alguma verdade.
Porém, Marcuse alega que o quadro geral que sempre exigiu a repressão dos instintos humanos havia mudado. Esse é a pedra angular de pensamento revolucionário. A sociedade industrial (também chamada de “sociedade afluente” por ele) tornara possível, pela primeira vez, a conquista da escassez, produzindo bens em quantidade tal que já eram, à época, abundantes o suficiente para que, ao menos nas sociedades avançadas, todos pudessem colocar de lado o princípio da realidade e atirar-se na satisfação de seus desejos. O melhor disso tudo é que as máquinas é que faziam o trabalho pesado e, para a produção dos bens necessários para a vida boa de todos, mesmo a necessidade do indivíduo trabalhar se tornara obsoleta. O dolce far’ niente, como estilo de vida, era, pela primeira vez na história, algo possível.
Nesse cenário, Marcuse questiona as razões pelas quais os homens seguiam consumindo quase todo o seu tempo livre em labutas ao invés de se lançarem a atividades prazerosas. A resposta que ele mesmo dá é a seguinte: nos tempos de então, a repressão aos instintos se mantinha em pé não por conta de uma necessidade civilizacional, mas apenas para manter os privilégios das camadas mais ricas da população. Se, em todos os tempos, o homem viveu uma repressão necessária à sua própria sobrevivência e à manutenção da sociedade, atualmente vivia sob uma mais-repressão[1], mantida artificialmente pela burguesia e no interesse exclusivo desta.
Da mesma forma, a humanidade atingira um ponto em que os tabus sexuais, outrora instituídos para manter as relações sociais sob controle, haviam perdido sua razão de ser. Porém, eles mantinham-se vigentes e o homem ocidental ainda se pautava por velhos costumes, sem arriscar-se numa vida de luxúria. Para explicá-lo, sempre se referindo a Freud, Marcuse alega que, uma vez que a energia humana disponível ao sexo é a mesma disponível à agressividade, as camadas dominantes mantinham a repressão sexual com o objetivo de sustentar a agressividade do homem ocidental em níveis elevados, permitindo que a militarização das sociedades se tornasse uma atividade sustentável.
O quadro geral pintado por Marcuse não é, pois, difícil de apreender: temos tudo à mão para a felicidade nesta terra, mas, curvando-nos a interesses econômicos, gastamos nossas vidas inutilmente em labuta e em repressão de desejos sexuais transformando o paraíso potencial em inferno atual. Se o autor de Eros e Civilização estiver correto, o homem ocidental é o mais infeliz de todos os seres…
Por mais que se possa discordar deste quadro geral, ouso dizer que ele tem lá alguma razão em sua crítica. Tome-se, por exemplo, a Idade Média. Nela, os homens, embora vivendo em meio a uma escassez muito (muitíssimo) mais severa do que a experimentada pelos contemporâneos de Marcuse (isso para não dizer da experimentada em nossos tempos), trabalhavam muito menos. Resguardavam para si uma quantidade muito grande de tempo, que gastavam com sua família, com sua comunidade e, sobretudo, com Deus.
Isso demonstra que o homem contemporâneo, de fato, trabalha mais do que seria o necessário. A sociedade de consumo (filha da sociedade afluente de que fala Marcuse) acaba por convencer-nos a todos de um sem número de necessidades que, ao cabo, nada mais são do que superfluidades disfarçadas. Para obtê-las, o homem médio sacrifica seu tempo e pouco lhe resta para o que quer que seja. Nisso, Marcuse tem a mais profunda razão e sua crítica, a meu ver, acerta o alvo na mosca: dadas a imensa riqueza e a abundância de bens disponíveis, se o homem moderno for convencido a deixar de lado as superfluidades de que tenta se cercar, poderia trabalhar menos, vivendo uma vida mais simples, e sobrar-lhe-ia tempo para coisas outras que não o trabalho; porém, ao tomar o supérfluo por necessário, acaba ele escravizando-se inutilmente a um regime de vida no qual a melhor parte da vida mesma é jogada fora.
As semelhanças entre o pensamento dele e o meu terminam por aí: na constatação de que o homem moderno efetivamente deseja tão avidamente o supérfluo que acaba por permitir que o trabalho roube-lhe um tempo precioso de vida. A equação de vida do homem médio parece-me mesmo um tanto quanto descompensada, com o supérfluo sendo anteposto a necessidades humanas mais reais.
Contudo, Marcuse advoga que o tempo que então se liberaria caso se trabalhasse menos seja utilizado apenas para o prazer do indivíduo. O ser humano é, assim, idealizado como uma espécie de buraco negro a sugar tudo o que pode das coisas e das pessoas ao seu redor. Para brincar um pouco com suas próprias expressões, o homem “unidimensional” criticado por ele tornar-se-ia, caso seguisse seus conselhos, um homem “adimensional”: um mero ponto para o qual tudo converge, sem relação, no fundo, com nada nem ninguém que não seja consigo mesmo.
Minhas perspectivas, no caso, são um tanto quanto diferentes. Sim, é verdade: o homem moderno deve aprender a deixar de buscar o supérfluo não de modo a voltar-se apenas para seus próprios prazeres. Porém, isso deve ser feito não com o objetivo de busca desenfreada de prazeres, mas com o de poder abrir-se para o próximo e para Deus. O gozo do tempo então liberado (algo tão estimado por Marcuse) deve reverter-se numa abertura para a eternidade. Se Marcuse aponta para um homem “adimensional”, aponto eu para um que seja “metadimentsional”: um homem que vive todas as dimensões desta vida com os olhos fixos na eternidade, onde não há nem tempo nem espaço.
Perspectivas muito diversas, portanto…
Mas penso que o erro central de Marcuse é de outra natureza. E pretendo explorá-lo na sequência deste artigo.
[1] O termo cunhado por Marcuse é bastante constrangedor e mal esconde sua intenção de inserir seu pensamento na tradição marxista, num óbvio e evidente paralelo à mais-valia de Marx.