Marx e o Segredo do Sucesso

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Fonte da imagem: https://mises.org/library/marx-utopian

 

Marx, em uma de suas menores obras, revelou, ainda que sem o perceber, qual, ao final das contas, é o segredo do enorme sucesso do comunismo. Trata-se das famosas “Teses Sobre Fuerbach” onde ele afirmou: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.

Essa frase despretensiosa é uma das mais interessantes e reveladoras jamais feitas por ele. De fato, muitos se perguntam como é possível que, após mais de 170 anos de fracasso no campo econômico e de tragédias no campo humanitário (com as mais sangrentas ditaturas da história e com uma montanha de dezenas de milhões de vítimas diretas), o comunismo ainda atraia tantas pessoas e sobre ele ainda recaia como que uma aura de santidade capaz de fazer com que seus críticos não o consigam criticar senão pontualmente e senão sem antes esconder as críticas sob uma grossa camada de elogios. Esse sucesso estrondoso apesar de toda a incrível série de fracassos retumbantes repousa precisamente sobre a ideia de que o comunista dedica-se, em suma, a transformar o mundo. Contudo, a razão pela qual tal aforismo é a fonte inesgotável do encanto do comunismo é de natureza tal que o liberal comum não consegue sequer tangenciá-la. Pois, para perceber a incrível importância deste ponto, seria necessário que o indivíduo gastasse um pouco de seu precioso tempo para estudar algo do gnosticismo, coisa aparentemente tão distante de nós e (como direi?) com gosto tão acentuadamente supersticioso, que, para os desavisados, parece assunto de iletrados.

Àqueles, contudo, que ao menos mantiverem seu juízo suspenso por alguns instantes, passo a explicar o meu ponto.

Todo e qualquer ser humano que chega à idade da razão acaba se deparando com o problema  do mal existente no mundo. E há, em essência, duas vias diversas para explicá-lo.

A primeira (que eu chamo de “natural”) é a de tomar o mal como uma realidade que está no mundo e faz parte dele. O mundo é, pois, um local inóspito no qual fomos “jogados” (o termo aqui não é utilizado à toa) e no qual experimentamos e sofremos o mal; o homem, ainda que possa participar da maldade que o cerca, não é responsável direto por ela; antes, é seu principal padecente. Essa visão deu origem, ao longo dos séculos, entre outros, a diversos sistemas gnósticos, que postulam, em suma, a existência de uma outra realidade superior à nossa e da qual vivemos indevidamente isolados, presos neste plano criado por forças em maior ou menor grau (dependendo do sistema gnóstico adotado) sombrias. Uma vez que o mal está no próprio ser das coisas, resta ao homem apenas escapar deste mundo intrinsicamente mau para viver num outro que seja melhor e no qual se sinta em casa: o mundo espiritual do qual todos viemos. Desde o advento do helenismo, o gnosticismo deitou raízes e se tornou parte integrante da formação da alma ocidental, ainda que, enquanto sistema religioso, sofresse notável derrota após a vitória do cristianismo.

A segunda visão baseia-se não tanto na experiência direta do homem, mas na própria revelação judaico-cristã. Conforme se percebe já nos primeiros versículos do livro do Gênesis, o mundo, segundo tal revelação, foi desejado e criado por Deus, e, à medida que tudo criava, o Criador criava-o bom. O ser criado, sob esse ponto de vista, é essencialmente bom e o mal que existe foi introduzido no mundo pelo homem, que assim, não é, propriamente, a vítima do mal, mas o próprio autor dele. O mal no mundo é, portanto, o mal do homem, sendo que, nesse cenário, quem padece do mal existente é a própria criação (que geme como eu em dores de parto, para usarem-se as palavras de São Paulo). Portanto, caso queira vencer o mal, não cabe ao homem escapar do mundo, mas converter-se ao bem.

Com a ascensão do cristianismo no Ocidente, essa tornou-se a visão usual das coisas. Durante a Idade Média, a maioria dos indivíduos estava naturalmente convencida de que o mundo que nos cerca é bom e de que o que importa é a conversão pessoal ao bem. Ainda que grupos gnósticos tenham se levantado aqui e ali, o fato é que a visão gnóstica seguiu minoritária e, quando presente, sempre era vista com desconfiança e como um desvio.

Porém, à medida que o cristianismo foi retrocedendo na Europa (ainda durante a Idade Média), naturalmente o gnosticismo, sufocado há séculos, ocupou o espaço deixado. Se em essência há apenas duas posturas possíveis diante do mal no mundo, o retrocesso de uma delas acaba sendo preenchido pelo avanço da outra. E, no Ocidente, havia séculos que essa “outra” opção era apenas a gnóstica, que, então, passou a novamente se expandir. Durante o Renascimento, houve uma verdadeira explosão de gnosticismo em toda a Europa (a arte renascentista é a prova mais contundente deste fato) e, por mais perturbador que possa parecer, tal fenômeno foi um dos grandes responsáveis pelo surgimento da filosofia e da ciência modernas.

Ora, passado o Renascimento, o cristianismo seguiu retrocedendo em influência. As ideias do homem renascentista (ainda fortemente religiosas) foram, também elas, cedendo espaço a uma visão materialista das coisas e, ao final do século XVIII, o homem ocidental quase que perdera por completo a noção de transcendência. É nesse contexto que surge o comunismo, encarnando, desde o princípio, essa tendência materialista e apresentando-se como porta-voz dela.

Porém, por mais materialista que seja o homem moderno, ele segue tendo, diante de si, apenas duas formas de encarar o mal no mundo; e, por definição, para um materialista, a postura dada pela Revelação judaico-cristão está descartada ab initio. Porém, a adoção de um gnosticismo tradicional também não seria viável justamente porque todos os sistemas gnósticos creem na existência de realidades espirituais. O avanço do gnosticismo tradicional acabou, pois, por atingir seu limite externo e, daí para frente, apenas uma nova forma dele é que seria capaz de seguir preenchendo o espaço aberto pelo retrocesso contínuo (e aparentemente sem fim) do cristianismo.

Surgiu, assim, um gnosticismo com roupagem materialista, que segue (como haveria de seguir) vendo o mundo como mal; que ainda sente (como haveria de sentir) que o homem está “jogado” nesse mundo; que ainda toma (como haveria de tomar) o ser humano como vítima padecente deste mal, mas que já não tem (como não haveria mais de ter) um mundo transcendente para o qual dirigir suas esperanças.

A diferença básica entre o velho gnosticismo e o novo é que, no primeiro, o indivíduo, ansiando por escapar do mal no mundo, ansiava por um movimento vertical, elevando-se deste plano para repousar no mundo espiritual perfeito enquanto que, no último, o movimento desejado é horizontal: o mundo perfeito que se espera é esse mesmo, porém transformado pela ação humana no paraíso perdido.

No gnosticismo tradicional, visa-se escapar deste mundo para um outro melhor que já existia e que nos esperava; no novo modelo, visa-se a transformar o mundo presente (único que existe) num outro bem melhor, que, sem deixar de ser o mesmo, será contudo radicalmente diverso. O “outro mundo” para o qual caminhamos deixou de ser entendido como estando acima de nós; agora, ele está adiante de nós. O mundo atual não deve mais ser deixado; deve ser transformado.

Ou, como disse Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”

Agora, pode-se entender porque, em tal afirmação está o segredo do sucesso do marxismo em conquistar tantos corações apesar da absurdidade de sua teoria e do horror de sua prática. Uma vez que, para o homem moderno, desprovido do transcendente, não existe esperança nenhuma senão o novo mundo perfeito do futuro, para ele os movimentos que queiram transformar o mundo atual, derribando o mal que nele existe, são uma tentação quase que irresistível. E o comunismo é dos poucos movimentos (senão o único) que tem tal objetivo declarado; portanto, um dos poucos (senão o único) capaz de atrair o homem moderno cada vez mais fechado na imanência. O homem ocidental que, privado da transcendência cristã, viu nos movimentos gnósticos a alternativa natural para supri-la é, agora, o mesmo que lança mão do gnosticismo comuno-materialista depois que a transcendência gnóstica tradicional também lhe foi negada.

O comunismo, portanto, é e continuará a ser um sucesso porque, ao final das contas, encarna uma das poucas cosmovisões que sobraram no Ocidente. Derivando seu sucesso, em última análise, do fechamento do homem ao transcendente, a derrota do comunismo não será possível sem que se faça a reabertura da alma humana.

E isso revela, ainda, a razão do fracasso insistente do liberalismo em tentar derrubar seu opositor comunista. Como o liberalismo econômico é, ele próprio, filhote do mundo moderno imanente, a luta dos liberais contra o comunismo está fadada ao fracasso. Cada vez que demonstram algum erro teórico no pensamento comunista, obtêm uma vitória no varejo; mas, pelo simples fato de reforçarem o fechamento humano ao transcendente, ajudam a garantir a vitória comunista no atacado.

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