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As Consequências de Tudo

Em nossos dois primeiros artigos, exploramos um pouco dois conceitos estranhos que povoam o pensamento de Dworkin: o juiz Hércules e a interpretação criativa. Ou, se o leitor preferir: o logos do direito e o seu poder de fiat. Agora, queremos dar um passo adiante par fechar o raciocínio, explorando as consequências que advém de tais conceitos.

Na melhor tradição ocidental, a lei era vista como um ato da razão. O legislador, aplicando sua razão a situações reais, extraia uma norma que continha, em si, a justa solução para a generalidade dos casos. Porém, em se tratando de razão prática, quanto mais se desce do geral  para o particular, mais exceções se vão encontrando. Assim, o juiz, ao julgar, na maior parte das vezes, limita-se a aplicar a lei, mas, se o caso particular o justificar, pode excepcionar essa aplicação e dar a ele solução diversa, mas que realiza a mesma justiça que seria desejada pelo legislador caso tivesse previsto aquela situação singular.

No sistema de Dworkin, há uma mudança radical. A lei, de plano, torna-se apenas um elemento a ser levado em conta pelo julgador, devendo sempre ser contraposta com os princípios fundadores de uma determinada sociedade, com a jurisprudência e, a bem da verdade, com sua própria evolução histórica. Além disso, o entendimento do texto da lei é aberto, podendo o magistrado inserir nele significados que o legislador não previu ou não quis prever. E, a rigor, podendo mesmo inserir significados que o legislador expressamente quis evitar.

Dessa forma, a lei perde quase que totalmente seu caráter vinculante e, ao menos nos hard cases, transforma-se numa mera sugestão dada pelo legislador, uma dica, que o juiz pode ou não acatar. E se o juiz opta por aplicá-la, no fundo, ele o faz por estar convencido de que a norma prevista é, ao cabo de tudo, a solução mais coerente a ser dada ao caso concreto, e não porque esteja, efetivamente, obrigado a tanto. O legislador, assim perde sua importância na vida política da sociedade, sendo seu lugar ocupado pela magistratura.

Uma segunda consequência: se o juiz cria o direito a ser aplicado, e se, necessariamente, ele o faz ao julgar um caso concreto, então, nesse arranjo, o direito torna-se posterior ao fato. No fundo, em nossas relações jurídicas, jamais temos a certeza de estar agindo em conformidade com o direito ou contrariamente a ele, porque, a rigor, o direito que as vai reger ainda não existe. Passará a existir apenas quando Hércules se manifestar, o que nos joga a todos num mar de insegurança jurídica, coisa que, aliás, é perceptível mesmo aos brasileiros mais simples.

É verdade que, para nós, magistrados, a coisa toda é muito tentadora. Nossa importância, nessa visão de direito, cresce enormemente. O protagonismo passa a ser nosso. O problema é que a quebra do status vinculante da lei e a atomização dos atores com poder de criar o direito leva a uma situação quase de anomia e, portanto, de imprevisibilidade absoluta. E nenhuma sociedade pode sobreviver ao caos jurídico que daí decorre. Cedo ou tarde, virá alguma reação e ninguém pode prever a qual lugar exatamente o Poder Judiciário será relegado quando ela vier. O que hoje é atrativo, amanhã pode se revelar, para o próprio Poder Judiciário, simplesmente catastrófico .

Melhor, então, voltarmos à visão clássica. E, como mera ilustração, cito um trecho da Suma Teológica:

É melhor que todas as coisas se ordenem por lei do que deixar ao arbítrio dos juízes. E isso por três razões: Em primeiro lugar, porque é mais fácil achar poucos sábios, que bastem para estabelecer leis retas que muitos, que seriam requeridos para julgar retamente casa caso. Em segundo, porque aqueles que estabelecem as leis, já de muito tempo consideram o que deve ser estabelecido por leis, mas os juízos sob fatos singulares fazem-se a partir de casos subitamente aparecidos. Mais facilmente um homem pode ver o que é reto a partir da consideração de muitos casos do que a partir de um fato único. Em terceiro lugar, porque os legisladores julgam no universal e sobre coisas futuras, mas os homens que presidem aos julgamentos julgam sobre coisas presentes, em relação às quais são afetados por amor, por ódio ou por alguma cobiça, e assim, se deprava o julgamento.

Uma vez que a justiça viva do juiz não se encontra em muitos e é flexível, assim foi necessário que, em todos os casos em que era possível, a lei determinasse o que devia ser julgado, e deixasse pouquíssimas coisas ao arbítrio dos homens.[1]

Santo Tomás parece ter escrito esse texto para rebater as excentricidades de Dworkin… com setecentos anos de antecedência. O que é uma medida razoável para que tenhamos uma ideia da superioridade intelectual de um sobre o outro.


[1] Suma Teológica, I Secção da II Parte – questão 95, artigo segundi.

A Preferência Nacional

Josephine Baker

A guerra entre Rússia e Ucrânia acaba de completar dois meses. Ontem (24/04), houve eleições na França, cujo resultado impacta diretamente a política externa brasileira. Na China, novas medidas de lockdown assumem tons tão draconianos que, há alguns meses, seriam inimagináveis. A economia do mundo inteiro derrapa. No Brasil, já se vive o clima pré-eleitoral, há novas ameaças de choque entre instituições, a inflação ameaça disparar e o país é assolado por outro surto de dengue.

Apesar disso tudo, quem acessou os principais portais de notícias nos últimos dias foi brindado com fotografias e matérias sobre… o carnaval fora de época e o sucesso das rainhas de bateria! Não é surreal que, com tantas coisas de suma importância acontecendo nós, brasileiros, percamos tanto tempo e demos tanta importância a algo tão banal e tolo?

Esse deslocamento quase que absoluto entre a importância real dos acontecimentos e a forma pela qual nós os avaliamos parece ser uma tônica do comportamento do nosso povo. Há uma passagem deliciosa na saga O Tempo e o Vento que comprova esse fato com fina ironia.

O personagem principal do romance, o médico Rodrigo Cambará (não confundir com o famoso capitão Rodrigo, de quem ele é bisneto) recebe, em 1.925, uma carta de Terêncio Prates, amigo seu que vivia em Paris e que se mostra preocupadíssimo com os rumos que via o mundo tomar. “Estamos presenciando um cataclismo social em toda a Europa”, escreve em tom de desânimo. E segue: “É o caos. Não há mais fé, nem moral, nem Ética e nem mesmo estética.” Continua citando exemplos dessa decadência generalizada: “As mulheres perdem o pudor, cantam canções bandalhas, dançam danças lúbricas, desnudam-se em público, fumam, bebem, sim senhor, embriagam-se como homens”; “encontra-se em Paris (…) uma mulata norte-americana que se exibe num destes cabarés completamente nua, apenas com uma tanga de bananas[1]. Lamenta que os europeus, antes acostumados à grande música, agora ouviam “essa ‘coisa’ cacofônica, barulhenta e negroide que é ‘jazz band’”. Na literatura, as coisas também não iam bem: “O que se vê agora por aqui é uma literatura pseudo-moderna, que não consigo estimar nem ao menos entender”. Prenunciando acontecimentos que atingiriam seu ápice décadas depois, descreve que “a mocidade parece ter tomado o freio nos dentes e saído a apedrejar homens e instituições, a rasgar e a espezinhar as velhas bandeiras tradicionais, quebrar as vidraças das academias”.

E, por fim, arremata a carta com uma boa dose de acerto quanto às causas da crise: “E sabes a quem cabe, em boa parte, a culpa de tudo isso? A dois tipos de mentalidade que estão procurando impor-se no mundo. A da Rússia, com seu bolchevismo materialista e iconoclasta, e a dos Estados Unidos, com sua irreverência esportiva e sua arrogância de ‘noveau riche’”. E, com não menos acerto, aponta qual a saída para ela: “contra o ateísmo russo e o mercantilismo calvinista dos ianques terá de erguer-se a força moral e histórica da nossa Igreja”.

Pois bem.

O Dr. Rodrigo Cambará lê a carta para um círculo de amigos e, terminada a leitura, esperando ver quais seriam suas considerações diante de acontecimentos tão graves, ouve, de um deles (Neco Rosa) a seguinte pergunta: “Como é mesmo a história da mulata que dança pelada?

O mundo pegando fogo e o que interessou o sujeito foi apenas o detalhe da mulata dançando sem roupas. Quase um século se passou. Mas os portais de notícia dos últimos dias não deixam margens para dúvidas: a desproporção entre a importância real dos fatos e a tábua de preferência dos brasileiros continua rigorosamente a mesma.


[1] Trata-se de Josephine Baker que, tanto sucesso fez, foi sepultada no próprio Panteão de Paris.

Interpretação Criativa

Pai, foste cavaleiro. 

Hoje a vigília é nossa. 

Dá-nos o exemplo inteiro 

E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada, 

Novos infiéis vençam, 

A bênção como espada, 

A espada como benção!

(Fernando Pessoa).

§ 7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.

(Lei 11.101/06, artigo 6º, §7º-A).

O que o leitor pensaria se alguém lhe dissesse que os dois textos acima devem ser lidos ambos sob a mesma clave interpretativa? Julgaria a afirmação razoável? Pois um dos mais famosos juristas dos últimos tempos faz exatamente essa sugestão.

 Como dito em nosso último artigo, o juiz ideal para Ronald Dworkin, mais do que um super-herói, é um deus com um poder específico: o da interpretação criativa.

O jurista afirma que a interpretação “conversacional” costumeiramente utilizada pelos magistrados quando se debruçam sobre textos legais não é a mais indicada para a tarefa. E por quê? Bem, porque, numa interpretação conversacional, o que prepondera é o significado do texto que o emissor da mensagem (no caso: o legislador) quis passar. Em outras palavras, o intérprete se esforça por tentar entender quais as intenções do legislador ao firmar, por exemplo: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” Para o jurista americano, seria quase impossível entender-se exatamente o que está por trás de um texto tão “complexo”. De fato, ao falar de Hermes, o juiz que ainda tenta empregar essa interpretação tão obsoleta, ele afirma:

Já é muito difícil descobrir as intenções de amigos, colegas, inimigos e amantes. Como poderia ele sonhar em entender as intenções de estranhos que viveram no passado e que talvez já estejam todos mortos? E como poderia ele ter certeza de que, ao final das contas, há alguma intenção útil a ser descoberta?[1]

Em outras palavras, o fato de termos dificuldades em nos entendemos uns aos outros seria prova da inutilidade de se tentar entender a mensagem que o legislador quis nos passar ao redigir uma lei. A comunicação humana, segundo Dworkin, é quase impossível. É claro que os livros dele são exceção à regra e seus leitores podem efetivamente entender as ideias que visam transmitir. Os demais textos, contudo, devem todos ser lidos em clave diversa. 

E qual seria, então, essa clave? Simples: o operador do direito deve interpretar a lei como se interpreta um texto literário. Deve ler a Lei de Falências com a mesma abertura de alma com que lê Fernando Pessoa.

Ora, numa boa obra literária, o texto traz, em si, diversos significados com os quais o próprio autor quis enriquecê-lo. A pluralidade semântica é a marca da boa literatura. Mas o leitor, respeitando essa pluralidade – e esse é um ponto fundamental para Dworkin – pode encontrar no texto significados outros, que nem mesmo o autor imaginaria nele existirem. De forma que o leitor, explicitando esses novos significados, torna o texto mais profundo do que o autor jamais sonharia. Nessa interpretação, portanto, os significados pretendidos pelo autor e aqueles dados pelo leitor têm a mesma importância.

Seria brilhante, se não fossem dois problemas.

Em primeiro lugar, a intepretação criativa advogada por Dworkin se dá em dois momentos: no primeiro, o intérprete capta todos os significados desejados pelo autor do texto; no segundo, empresta ao texto significados novos de forma a enriquecê-lo. A compreensão do que autor do texto quer dizer é a condição prévia para a construção de novos significados. O primeiro passo da interpretação criativa, portanto, nada mais é do que uma interpretação conversacional, coisa que Dworkin reputava, no início de sua argumentação, como praticamente impossível.

Além disso, essa interpretação conversacional embutida na interpretação criativa traz uma dificuldade a mais quando comparada com aquela que é tradicionalmente usada por juízes. Isso porque, nessa última, pressupõe-se que o legislador quis dar um comando e que, portanto, por debaixo do texto, existe um único significado a ser descoberto. Já na interpretação criativa, buscam-se nela todos os significados possíveis por detrás da letra da lei, como se as palavras do legislador tivessem sido empregadas com a mesma abertura semântica desejada por Fernando Pessoa em seus poemas.

Com todo o respeito aos que apreciam a ideia, trata-se de uma tolice rematada montada sobre uma contradição evidente, Mas, por tola e contraditória que seja a ideia, ela serve, ao cabo de tudo, a um propósito: o de libertar o intérprete das amarras da letra da lei, dando-lhe poderes para construir, ele próprio, o direito a ser aplicado ao caso concreto.

Os resultados disso serão tratados em outro artigo.


[1] No original: It is hard enough to discover the intentions of friends and colleagues and adversaries and lovers. How can he hope to discover the intentions of strangers in the past, who may allbe dead? How can he be sure there were any helpful intentions to be discovered? (Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Belknap Harvard, p. 317)

Hércules, Herbert e Hermes

Um dos pontos mais interessantes da obra do conhecido jurista Ronald Dworkin é que ele criou, para melhor ilustrar e explicar suas teses, três personagens, todos juízes: Hércules, Herbert e Hermer. Cada um deles encarna um tipo diferente de magistrado, sendo desnecessário dizer-se que, para o autor, o tipo ideal está representado no primeiro. Vamos traçar as características gerais de cada um.

Comecemos por Herbert. Trata-se de um juiz comum, do tipo clássico. Daqueles que, ao julgar seus casos, acredita mesmo estar adstrito às normas existentes, agindo discricionariamente apenas na medida em que tais normas o permitem. Nos dizeres de Dworkin, ele adota uma teoria do exercício da magistratura segundo a qual os “juízes decidem os casos em duas etapas: primeiramente, encontram o limite exigido pelo direito posto e, então, exercem sua discricionariedade para legislar sobre questões que a lei não alcança[1].

E Hércules? A descrição dele dada por Dworkin é reveladora: “Inventei, para esses objetivos, um jurista de habilidade, erudição, paciência e perspicácia sobre-humanos, a quem chamarei de Hércules.”[2] É verdadeiramente um super-herói, com um superpoder especial: o da interpretação criativa.

A postura de Hércules diante de um caso a ser julgado é completamente diferente da do pobre Herbert. Ele não dá importância alguma a quaisquer limites prévios ao agir. Como diz Dworkin, Hércules “parte de seu próprio julgamento para determinar quais direitos legais as partes perante ele têm” sem se dobrar às convicções da população em geral e – suprema imparcialidade – sem nem mesmo permitir que as suas próprias interfiram em suas decisões.[3]

Em outras palavras, o que o direito é ou deixa de ser depende, exclusivamente, de como Hércules o entende. Ele é, em essência, a fonte do direito.

O nome desse personagem ímpar não foi escolhido ao acaso (Dworkin o afirma textualmente). As habilidades de Hércules, são, de fato, sobre-humanas. Ele, por exemplo, conhece todas as normas e toda a jurisprudência acumulada sobre cada uma delas. Ao julgar uma demanda, ele leva em conta a integralidade desse arcabouço. E, se o caso for difícil, usa de sua inteligência ilimitada para, levando em conta todas as normas e todas as decisões anteriores sobre casos semelhantes, decidir a questão, criando o direito a ser aplicado ao caso.

Herbert se submete ao direito; Hércules o cria. Seu único limite é ter que observar todas as normas e toda a jurisprudência já acumulada sobre a questão. É como um pedreiro que, ao colocar seu próprio tijolo na construção de um muro, sabe que está fazendo o muro crescer, mas respeita todos os tijolos que os demais pedreiros, vindos antes dele, também colocaram. Mas isso é fácil. Afinal, ao abordar os textos legais e jurisprudenciais que o “vinculam”, ele é livre para interpretá-los como quiser e adicionar significados àquilo que está escrito. Trata-se de uma “vinculação” bastante peculiar, portanto…

Uma vez que Hércules cria significado aos textos legais e jurisprudenciais, percebe-se que, mais do que um semi-deus grego, ele, na verdade, ocupa, na trama do direito, a mesma posição que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ocupa na fé cristã: ele é o Logos por meio do qual o direito se faz.

E Hermes? Bem, nos dizeres de Dworkin, esse é um juiz que tem as mesmas habilidades notáveis de Hércules, mas que ainda aceita a tese de que os textos legais e jurisprudenciais devem ser lidos buscando-se entender o que o legislador e os julgadores do passado efetivamente quiseram dizer. Hermes rejeita a interpretação criativa e, assim, rejeita a posição de Logos do sistema. Tinha tudo para ser como Hércules, mas, falhando em dar o passo final e se livrar de entraves linguísticos, acaba se limitando quase a um mero Herbert. Tem lá seus superpoderes, mas apresenta uma falha de… hermenêutica. Como o leitor vê, Dworkin sabe ser criativo.

É obvio que qualquer juiz, entre Herbert, Hermes e Hércules, preferiria ser como esse. O primeiro é um tolo; o segundo, um fraco; o terceiro, um deus.

Ser como Hércules é muito tentador. E, de fato, muitos, hoje, perfazem o papel do juiz dworkiniano (permitam-me esse neologismo) perfeito sem o saber. Mas a proliferação de deuses dentro do Poder Judiciário também tem o seu preço. Isso será, contudo, abordado num próximo texto.


[1] No original: “…judges decide cases in two steps: they find the limit of what the explicit law requires, and they then exercise an independent discretion to legislate on issues which the law does not reach.” (Dworkin, Ronald. Taking Laws Seriously – kindle version)

[2] No original: “I have invented, for this purpose, a lawyer of superhuman skill, learning, patience and acumen, whom I shall call Hercules.” (id.)

[3] No original: “He uses his own judgment to determine what legal rights the parties before him have, and when that judgment is made nothing remains to submit to either his own or the public’s convictions.” (id.).

Greta e os Transformadores do Mundo

Algumas pessoas me perguntam o que eu acho da figura de Greta Thunberg, a simpática sueca que deseja, humildemente, transformar o mundo. Por ter uma grande preguiça em responder a essa pergunta, achei por bem escrever o presente texto para livrar-me da tarefa de uma vez por todas.

Começo dizendo – por estranho que possa parecer – que não sei nada sobre veterinária. E sei menos ainda sobre técnicas cirúrgicas. Por isso, se algum de vocês, um dia, precisar de meus préstimos para fazer uma cirurgia de emergência naquele pet que tanto amam, aconselho que não insistam quando ouvirem, logo de cara, minha negativa e não queiram me convencer do contrário. Creiam: o animalzinho terá mais chances de seguir vivo deixado à própria sorte do que colocado em minhas mãos.

Isso é coisa que devia ser óbvia para todo mundo: quem se dispõe a realizar uma tarefa deve ter alguma qualificação para ela. Por mínima que seja. Do contrário, é melhor deixar as coisas caminharem por si só já que a interferência humana, nesses casos, costuma provocar catástrofes incomensuráveis.

E, se isso é verdade quanto a assuntos de menor importância (como a cirurgia no seu pet), quanto mais não o é no que tange a outras um bocadinho mais complexas, como, digamos, a tarefa de transformar o mundo. Então, a resposta básica a ser dada sobre a jovem Greta é, no fundo, uma pergunta: ela realmente entende o mundo que deseja transformar?

Já é conhecido do leitor desse blog[1] que uma das afirmações mais famosas de Marx foi a de que os filósofos, até o século XIX, tinham se limitado a interpretar o mundo, mas o que realmente importava era transformá-lo. A afirmação até que tem seu charme e capta a atenção (a Greta que o diga). Mas, pensando dois segundos nela, percebe-se que o que tem de charmosa tem igualmente de estapafúrdia. Tentar transformar o mundo sem antes conhecê-lo é como operar cirurgicamente um animalzinho sem saber nada de operações cirúrgicas… e nem de animaizinhos.

Qual o resultado dessa tolice? Penso que Chesterton já criou a melhor das analogias para exemplificar o que se espera num cenário como esse:

Suponhamos que surja em uma rua grande comoção a respeito de alguma coisa, digamos, um poste de iluminação a gás, que muitas pessoas influentes desejam derrubar. Um monge de batina cinza, que é o espírito da Idade Média, começa a fazer algumas considerações sobre o assunto, dizendo à maneira árida da Escolástica: “Consideremos primeiro, meus irmãos, o valor da luz. Se a luz for em si mesma boa…”. Nesta altura, o monge é, compreensivelmente, derrubado. Todo mundo corre para o poste e o põe abaixo em dez minutos, cumprimentando-se mutuamente pela praticidade nada medieval. Mas, com o passar do tempo, as coisas não funcionam tão facilmente. Alguns derrubaram o poste porque queriam a luz elétrica; outros, porque queriam o ferro do poste; alguns mais, porque queriam a escuridão, pois seus objetivos eram maus. Alguns se interessavam pouco pelo poste, outros, muito; alguns agiram porque queriam destruir os equipamentos municipais. Outros porque queriam destruir alguma coisa. Então, aos poucos e inevitavelmente, hoje, amanhã, ou depois de amanhã, voltam a perceber que o monge, afinal, estava certo, e que tudo depende de qual é a filosofia da luz. Mas o que poderíamos ter discutido sob a lâmpada a gás, agora devemos discutir no escuro.[2]

Acho que deu para entender…

Não me perguntem se Greta Thunberg percebe que sua geração e ela própria estão fazendo precisamente o que Marx exigiria que fizessem. Não há como eu possa saber. E, ainda que houvesse, eu também teria preguiça de pesquisar sobre esse ponto. Digo somente uma coisa: percebendo ela ou não, pouco importa. O que importa é que, querendo operar um animalzinho sem os conhecimentos mínimos, estão todos condenando o pobre coitado a uma morte dolorosa. Só que, no caso, a morte a dor serão suportadas não por um pet que, por simpático que seja, hoje é e amanhã deixa de ser. Antes, serão suportadas pelas futuras gerações de seres humanos, supondo, claro, que chegarão a existir. Pois sempre há o risco da humanidade não suportar o pós-cirúrgico…


[1] https://mmjusblog.wordpress.com/2019/09/23/marx-e-o-segredo-do-sucesso/

[2] G. K. Chesterton, Hereges, Ed. Ecclesiae, p. 35

Liberdade Religiosa em tempos de pandemia

Vivemos tempos estranhos. Tempos em que cidadãos de bem estão sendo literalmente trancados em casa e nos quais bandidos perigosos são postos em liberdade. Tempos em que a polícia pode descer até a praia reprimir banhistas, mas não pode subir o morro para reprimir traficantes. Tempos em que shopping centers podem funcionar com todo o fluxo de pessoas que daí resulta, mas nos quais o cidadão brasileiro comum não pode ir a uma igreja cultuar o seu Deus, o Deus de seus pais, o Deus em torno do qual se formou a civilização ocidental. A razão pra tudo isso? O combate a um vírus; e a desculpa de ser necessário agir-se para salvarem-se vidas. O que muitos deixaram de se questionar, contudo, é precisamente aquilo que esse pequeno texto, com a devida vênia aos que pensam de forma diversa, questiona: existe, ao final das contas, base jurídica para todo esse descalabro e, sobretudo, para a interdição de igrejas e templos religiosos?

De plano, tem-se que a Constituição Federal salvaguarda o direito de culto em seu artigo quinto, inciso sexto, em texto já conhecido de todos: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. O texto constitucional, portanto, é claro como o dia: todo brasileiro tem a garantia individual de poder cultuar livremente o seu Deus, e o Estado, em regra, não o pode impedir. Alguns artigos adiante, em texto já não tão bem conhecido, a Constituição Federal reforça essa proteção: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (artigo 19, I, da Constituição Federal). Portanto, seja o poder público federal, sejam os estaduais, sejam os municipais, a nenhum deles é dado “embaraçar” o funcionamento de igrejas ou de templos religiosos em geral. Em outras palavras, não é permitido obstar o culto religioso nem por meio de leis, quanto menos por meio de decretos.

Argumenta-se que nenhum direito é absoluto e que todos devem ceder a exigências maiores. Em primeiro lugar, a colocação é daquelas com as quais não se pode concordar,  visto que a liberdade de culto é uma garantia que não brota do Estado mas da natureza mesma do homem e, portanto, o Estado não tem possibilidades de restringi-la sem colocar-se contra a própria natureza humana. E, em segundo lugar, porque, ainda que se adotasse visão tão canhestra dos direitos, ainda assim é no próprio texto constitucional que se deveriam procurar quais as possibilidades de restrição de uma garantia fundamental. E o texto da Constituição Federal prevê apenas duas hipóteses para tanto: o estado de defesa (artigo 136) e o estado de sítio (artigo 137).

Ora, tanto o estado de defesa como o estado de sítio (repita-se: únicas hipóteses em que o Estado pode limitar os direitos e garantias individuais) somente podem ser decretados pelo Presidente da República, e, mesmo assim, ou com a prévia autorização do Congresso Nacional (estado de defesa) ou sob o referendo posterior deste (estado de sítio). E, como é sabido, o atual Presidente da República em nenhum momento decretou nem estado de defesa nem estado de sítio e, portanto, nenhum direito ou garantia individual está, juridicamente falando, sob qualquer restrição, o que já deveria bastar para que se tomasse a presente discussão como encerrada.

Tão dramática, pois, é essa limitação que não há nenhum espaço para que governadores estaduais ou prefeitos possam, eles próprios, por mais grave que seja a situação com a qual devam lidar, fazer qualquer restrição a tais direitos e liberdades. Permitir que façam, como muitos tem tomado por certo que podem fazê-lo, é simplesmente esgarçar a federação, fazendo com que o Estado brasileiro se cinda em diversas unidades autônomas, nas quais os direitos dos respectivos moradores se medem de acordo com a boa vontade de seus governantes.

Porém, aqueles que não se contentam com essa linha de raciocínio argumentam que as draconianas medidas tomadas pelos mais diversos governadores e prefeitos encontram respaldo na Lei Federal nº 13.979/20, editada pelo próprio Presidente da República. Tal lei visa enfrentar a epidemia atual e permite que algumas medidas de contenção sejam tomadas tais como o isolamento e a quarentena. Dois pontos, contudo, devem ser ressaltados. Em primeiro lugar: uma simples lei ordinária não pode se sobrepor à Constituição Federal, razão pela qual, se a lei limitasse direitos e garantias individuais, ela seria simplesmente inaplicável. E, em segundo lugar: tanto o isolamento quanto a quarentena, tal como previstos na lei, são medidas a serem adotadas apenas quanto a pessoas doentes ou suspeitas de estarem com o vírus. Eis o texto da lei naquilo que aqui nos interessa:

Art. 2º  Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:

II – quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.

I – isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e

Em outras palavras, não existe margem, nem mesmo na lei mencionada, para qualquer possibilidade de que pessoas saudáveis sofram quaisquer restrições em suas liberdades, seja na liberdade de andar na rua, seja na liberdade de abrir seu estabelecimento comercial, seja na liberdade de cultuar o Deus de sua crença. É necessário que se diga sem meias palavras: tanto nos acostumamos a tomar por certa a possibilidade de impor restrições a pessoas saudáveis em virtude do vírus chinês que a maioria de nós sequer se dá ao trabalho de averiguar se tais restrições são possíveis, seja na natureza mesma das coisas, seja na estrutura do ordenamento jurídico pátrio. Pois, quando nos voltamos para aquela ou para esse, vemos que a imensa maioria das restrições que estão caindo sobre o brasileiro comum são imorais e antijurídicas, sendo que a determinação de proibir cultos religiosos não é exceção.

Mas os defensores das restrições não se dão facilmente por vencidos. Ao contrário, uma vez que nem a Constituição Federal nem a Lei Federal nº 13.979/20 amparam suas pretensões, voltam-se eles ao Supremo Tribunal Federal e afirmam que a mais alta corte do país assegurou aos governadores e prefeitos o direito de que impusessem tais restrições. Novamente, de tão acostumados a tal ideia, muitos não vão às fontes verificar a veracidade delas, pois, quando se vai a tal fonte, o quadro altera-se por completo. Isso porque o Supremo Tribunal Federal simplesmente reconheceu o direito de que governadores e prefeitos possam tomar medidas locais em face de realidades locais, porém sob a observância dos preceitos constitucionais e das disposições da legislação federal já mencionada. E, como se viu, uma vez que nem uma nem outra permitem que igrejas sejam fechadas, ao cabo de tudo continua-se com a única possibilidade verdadeiramente existente: o culto religioso é livre e sua proibição, seja pelo fato de estarmos sob uma pandemia, seja por qualquer outro fato, não é sustentável.

Mais do que isso!

No julgamento da ADI 6341, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se apenas sobre o parágrafo nono do artigo terceiro da Lei Federal nº 13.979. segundo o qual “O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º”. Ora, o parágrafo oitavo mencionado, por sua vez, assevera que as medidas de contenção “quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.”

Assim, nos termos da lei mencionada, atividades essenciais, mesmo em meio à pandemia, ainda que o governador e o prefeito não gostem disso, devem ser resguardadas e, portanto, não podem ter seu funcionamento obstado. E, ao contrário do que em geral se pensa, o Supremo Tribunal Federal não deixou ao alvedrio dos governadores e dos prefeitos decidirem o que deve e o que não deve ser tido por atividade essencial. A prerrogativa de defini-lo é apenas do Presidente da República, que deverá fazê-lo mediante decreto. O próprio Ministro Luis Roberto Barroso, numa recente aparição na rede mundial de computadores, deixou claro esse fato. Citam-se, agora, as palavras o próprio Ministro quando mencionou que o Supremo Tribunal Federal não tolheu, quanto a esse ponto, as atribuições do Presidente da República (g.n.): “A União continua com competências muito importantes. A própria definição de quais são as atividades essenciais que podem e devem voltar é do governo federal por decreto.”[1]

Ora, o Presidente da República, como é sobejamente conhecido, baixou de fato o Decreto nº 10.342/20 para especificar quais seriam as atividades essenciais. E, em seu artigo terceiro, parágrafo primeiro, inciso XXXIX, elencou entre elas as “atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”. [2]

Em suma, ao cabo de tudo, tem-se que a proibição de missas e de cultos públicos não encontra amparo nem na Constituição Federal, nem na legislação federal e nem em decisões do Supremo Tribunal Federal. Não encontra, ainda, amparo na natureza da alma humana, como já se disse. E, como corolário, supor que meros decretos estaduais possam fazê-lo parece-me conceder ao administrador público que ultrapassa em muito o seu normal poder de regulamentar leis.

Mas uma última palavra se faz necessária.

A proibição não encontra, nesse momento difícil pelo qual passamos, amparo sequer no simples bom senso. Lojas estão abertas. Shopping centers estão abertos. Supermercados e bancos estão abertos (e, em geral, lotados). Se todos esses espaços abertos ao público são seguros desde que seguidos protocolos simples, porque razão igrejas seriam locais perigosos?

No fundo, a determinação de que se fechem as igrejas encontra amparo numa única coisa: o preconceito tolo, típico do homem ocidental pragmático, de que cultuar a Deus é coisa sem importância, hábito de simplórios, atividade que em nada agrega à sociedade. Em suma: não é coisa que faça o dinheiro rodar. É esse preconceito tolo que se pretendeu deixar claro com esse pequeno texto.


[1] A declaração pode ser vista no seguinte link (entre os segundos 38 e 49): https://www.youtube.com/watch?v=XIZE6vWt09Q

[2] É certo que a previsão está sendo questionada em ações judiciais, mas, aqui, discute-se apenas o que o Supremo Tribunal Federal decidiu, e como juízes singulares estão abordando a questão.

A Subversão do Profano

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Parte I

 

Parte II

 

 

O que se tem de mais original (e de mais revelador) no Life’s Dominion é a afirmação de que o aborto é, em si mesmo, um assunto religioso. Por sua própria natureza e inescapavelmente, todo e qualquer debate sobre o aborto seria um debate envolvendo conceitos religiosos, ainda que um dos debatedores seja ateu. Se, ao tratar do sentimento religioso que se manifesta na defesa da vida desde a concepção, o autor subvertera o conceito do sagrado, agora, ao erguer barricadas de proteção em favor dos que lutam pela legalização do aborto, ele passa a subverter o conceito de profano. Após argumentar que o sentimento religioso comum pertence ao domínio da natureza, era de se esperar uma argumentação no sentido de que o profano pertencesse ao domínio do verdadeiramente religioso. Tudo em consonância com um livro que nada mais faz do que sugerir que na morte encontra-se o verdadeiro “domínio da vida”.

Dworkin defende a tese de que é possível a existência de uma religião “ateia” (o termo, aqui, também é enganador). Ele conclama as pessoas a abandonar a ideia de que religião seja necessariamente algo que se refira a uma divindade e menciona, inclusive, a existência de religiões ateias como o budismo e o hinduísmo (ou, ao menos, algumas formas deles).[1]

Façamos abstração à referência feita ao hinduísmo, visto que essa é a religião politeísta por excelência e não se entende exatamente como uma fé na qual há centenas (talvez milhares) de divindades possa ser “ateia”. Não se percebe como o comprometimento com vários deuses possa equivaler a um comprometimento com nenhum e nem Dworkin tenta esclarecer tal afirmação (dando a impressão de que ele simplesmente não sabe do que está falando). Fiquemos apenas com o budismo, ao menos por um instante. A pergunta que se faz quando da colocação de Dworkin é a seguinte: há alguém que não saiba que o budismo é uma religião ateia? Há alguém que, conhecendo algo de religião comparada, desconheça esse fato? Se não há (como se espera que não haja), então, como pôde ele tomar o budismo quase como um trunfo para defender uma ruptura da visão de que religião tem algo a ver com a crença numa divindade? Qualquer um que conheça algo do budismo sabe que nela não há um deus; sabe, então, que é uma religião ateia; e, portanto, sabe que o conceito de religião não implica necessariamente a crença em uma divindade.

O que se tem nesse ponto do livro é falso triunfalismo. Houve uma distorção inicial das coisas com a afirmação de que ser religioso é crer em um deus para, depois, comprovar-se que essa afirmação distorcida está equivocada. É fácil que o leitor simplesmente não perceba que ele está destruindo uma noção inexistente de religião, artimanha que, se não tem o efeito de explicar os fatos, ao menos passa a impressão de que quem os tenta explicar tem argumentos sólidos para fazê-lo.

De fato, pode haver religião sem um deus; o que não pode haver, contudo, é uma religião sem transcendência. O que caracteriza uma fé como sendo religiosa não é propriamente a referência que ela faça a deuses, mas a referência que ela faz à existência de uma realidade que, sem deixar de ser real, não se esgota no aqui e no agora deste mundo. Retirar do conceito de religião a transcendência que é própria de todas elas é esvaziá-lo a tal ponto de não ser mais possível diferenciar uma religião de uma filosofia ou mesmo de uma ideologia.

Caso se perceba, portanto, a distorção inicial do argumento, perceber-se-á que a conclusão final nada prova. Porém, caso não se perceba (e, não raro, tem-se a impressão de que o autor efetivamente espera que o leitor não o perceba), então, Dworkin pode retirar as duas mais surpreendentes conclusões de sua obra.

A primeira é a de que o aborto é uma questão necessariamente religiosa mesmo para os ateus, pois ela diz respeito ao fim último da vida humana. E, se assim o é, então, o Estado simplesmente não pode legislar no sentido de proibi-lo porque, legislando, estaria proibindo pessoas de… praticar sua religião! Ainda que afirmem não ter nenhuma! Diz-se textualmente que “um governo que criminalize o aborto nega o livre exercício da religião, tanto para tais mulheres” (i.e. para aquelas que optam pelo aborto) “quanto para as mulheres que derivam conscientemente suas opiniões sobre o aborto da fé religiosa.” [2]

Ou seja: tanto a mulher que decide manter uma gravidez por razões abertamente de fé quanto aquelas que optam por abortar (por qualquer razão que seja), ambas estão exercendo uma opção religiosa e, como tal, o Estado nem pode impedir a primeira nem pode criminalizar a conduta da segunda. O ato de abortar, então, cai definitivamente no âmbito religioso, não porque sua prática fira os sentimentos religiosos da maior parte da população, mas porque sua proibição cerceia a liberdade religiosa de uma minoria que, em geral, não tem crença religiosa alguma, salvo aquele arremedo de fé ateia imanente que Dworkin inventou somente para sustentar seu próprio argumento.

Mas o que já era ruim iria piorar.

De fato, como qualquer pensador liberal, Dworkin defende com unhas e dentes a laicidade do Estado, no sentido que essa expressão acabou por assumir em tempos recentes: o Estado deve ser neutro em matéria religiosa e opiniões religiosas não devem ter qualquer peso nas decisões políticas de um país. Como consequência, é inadmissível que se financie publicamente qualquer culto religioso, visto que tal financiamento necessariamente acaba por privilegiar a fé do culto financiado em detrimento de todas as demais.

Mas é claro que, em se tratando de aborto, sempre se pode criar uma exceção…

Pois Dworkin defende que o direito religioso ao aborto requer financiamento público e que o Estado, justamente por ser o aborto matéria de fé religiosa, não pode se negar a financiar quem se disponha a praticá-lo, pois, se o negasse, acabaria, por vias indiretas, sufocando o credo abortista. Para que não nos acusem de estar distorcendo as palavras do autor, entendo por bem citá-las textualmente (tradução nossa, seguindo o original em nota de rodapé):

 

Então, eventual decisão governamental de retirar o financiamento para abortos medicamente necessários com o argumento de que tais abortos não são de “interesse público” é equivalente a estabelecer uma interpretação da santidade da vida como o credo oficial de uma comunidade, e isso levanta uma questão muito mais séria da Primeira Emenda do que a Corte reconheceu.[3]

 

Nesse trecho, ele faz referência apenas a “abortos medicamente necessários”, abrindo uma exceção notável à regra (defendida por ele próprio) de que ninguém tem o direito de obrigar o Estado a custear o tratamento médico que desejar. Se o tratamento médico for o aborto, então, esse direito existe e sua existência se fundamenta na liberdade de culto.

Porém, o alvo é muito mais amplo. Não se defende, com base no argumento da liberdade religiosa, o direito ao custeio público do aborto apenas em casos de necessidade médica, mas em todo e qualquer caso. Afirma-se textualmente que “regulamentos federais e estaduais excluindo o aborto de programas de saúde são uma questão diversa, pois eles se destinam a afetar as escolhas que as pessoas fazem bem como quem paga por elas”.[4]

Aqui, já não se fala na necessidade imperiosa de que o Estado arque com os “abortos medicamente necessários”, mas com todo e qualquer aborto. Negar-se o custeio público significa agir para afetar escolhas (entendidas no texto como escolhas religiosas) dos indivíduos. Já em outro trecho, lemos o que segue (g.n.):

 

Pode-se objetar que, se um governo apoia financeiramente o aborto, ele usa fundos coletados em impostos daqueles que acreditam que o aborto insulta a santidade da vida, negando-lhes, assim, o livre exercício de suas crenças essencialmente religiosas. Ou que, recusar-se a pagar pelo aborto é a única maneira de o governo permanecer neutro sobre o assunto. Mas financiar tratamento médico para pessoas cujas práticas religiosas alguns contribuintes consideram ofensivas não nega a esses contribuintes seu direito à liberdade religiosa mais do que o uso de caminhões de bombeiros municipais para apagar um incêndio em uma igreja que eles também desaprovam, e seria ridículo interpretar que uma política de ajuda financeira que inclua os cuidados médicos durante a gravidez, inclusive o aborto e o parto, revele um preconceito em relação ao primeiro. [5]

 

Para quem não entendeu, eu explico. Assim como o Estado deve agir para, por exemplo, apagar um incêndio num templo protestante mesmo sabendo que seus cidadãos católicos condenam a religião que ali se pratica, deve ele, da mesma forma, financiar o aborto mesmo sabendo que essa prática “religiosa” é condenada por muitos outros credos religiosos. Trata-se de proteger o livre exercício da prática religiosa, e o Estado, se necessário, deve pagar por tal proteção.

Novamente, nada há aqui a indicar que o direito ao financiamento público do aborto se resume apenas àqueles medicamente necessários (o que, repita-se, no esquema traçado por Dworkin, já representa uma notável exceção à neutralidade estatal em matéria religiosa); antes, todo e qualquer aborto deve ser financiado publicamente e negar tal financiamento equivale a negar uma prática religiosa.

Aqui, claro, há mais uma das famosas pegadinhas intelectuais de Dworkin. Ela se desvela numa afirmação absurda seguida de um salto lógico inconsistente. A afirmação absurda: a de que o aborto é matéria religiosa por envolver questões de natureza religiosa; o salto lógico: o de que, sendo matéria religiosa, tanto recusar-se a praticá-lo quanto decidir fazê-lo são fatos que caem no âmbito da prática religiosa dos indivíduos.

Ainda que se compre a ideia de que tudo o que envolve o aborto é religioso (e, para ficar claro: esse escriba não a compra), daí não se segue a conclusão de que, quando alguém decide a abortar, tal pessoa está abortando por prática religiosa. Apenas se a religião ateia dela mandasse abortar nesta ou naquela situação é que impedir tal pessoa de fazê-lo equivaleria a impedir a prática de sua religião. Mas, nem Dworkin nem os liberais em geral afirmam ter convicções religiosas que impõem o aborto e nenhum deles jamais (ao menos até onde eu saiba) veio a público para afirmar que, mais do que um direito, a mulher religiosamente ateia tem o dever religioso de abortar em determinadas circunstâncias.

Pode até ser que tal religião abortista de fato exista. No mundo moderno, afinal, todas as insanidades da alma humana parecem ganhar livre curso. Mas, se existir, a questão do direito religioso ao aborto se resumiria aos membros de, digamos, tal credo. Mas esse não é o credo liberal defendido no livro; a defesa do aborto no Life’s Dominion não se refere a ele. E, dificilmente, Dworkin ou os liberais que o admiram subscreveriam a possibilidade de que tal religião fosse encampada e financiada pelo Estado.

À subversão do profano (agora alçado a condição de religião com privilégios especiais), portanto, seguiu-se a subversão da lógica.

Mas, a essa altura do livro, isso tem pouca importância, pois todos os conceitos do verdadeiro debate já foram retorcidos e subvertidos. Já se trocou o conceito de ser humano pelo de pessoa; já se estabeleceu um conceito de santidade que nada tem a ver com a fé religiosa; já se trocou a transcendência necessária a todas as religiões por uma fé em divindades ausente ao menos de algumas delas; já se estabeleceu que o aborto é uma prática religiosa e que o Estado, apesar de laico, está obrigado, apenas nesse caso, a abrir mão de sua neutralidade e passar ao sustento financeiro dessa nova religião. A defesa do direito de matar já sofreu o upgrade inicialmente desejado e, se o leitor não se precaveu, desde o início, contra as diversas armadilhas intelectuais plantadas ao longo do livro, provavelmente estará, ou embevecido com a sabedoria do autor, ou irritado com os argumentos dele, sem saber, contudo, muito bem como contestá-lo.

 

 

[1] No original: “But many established religions—some forms of Buddhism and Hinduism, for example—include no commitment to such a supreme being.” (Dworkin, Ronald. Life’s Dominion (p. 155). Knopf Doubleday Publishing Group. Edição do Kindle.)

[2]No original (g.n.): a government that makes abortion a crime denies the free exercise of religion as much to such women as to women who do self-consciously draw their views about abortion from religious faith. (Dworkin, Ronald. Life’s Dominion (p. 165). Knopf Doubleday Publishing Group. Edição do Kindle.)

 

[3] If so, then government’s deciding to withhold funds for medically necessary abortions on the ground that such abortions are not “in the public interest” is tantamount to establishing one interpretation of the sanctity of life as the official creed of the community, and that raises a much more serious First Amendment issue than the Court recognized.

[4]No original: “But federal and state regulations excluding abortion from general health-care programs are a different matter, because they are designed to affect the choices people make as well as who pays for them.”

[5] No original: “It might be objected that if government supports abortion financially, it uses funds collected in taxes from those who believe that abortion insults life’s sanctity and so denies them the free exercise of their essentially religious beliefs. Or that refusing to pay for abortions is the only way that government can remain neutral on the issue. But financing medical treatment for people whose religious practices some taxpayers find offensive no more denies those taxpayers religious freedom than does using municipal fire trucks to put out a fire in a church they also disapprove, and it would be ludicrous to interpret a policy of financial aid for all medical care during pregnancy, which includes abortion as well as childbirth, as showing any bias toward the former. (Dworkin, Ronald. Life’s Dominion (p. 176). Knopf Doubleday Publishing Group. Edição do Kindle.”.

A Subversão do Conceito de Sagrado

Unborn

 

Parte I

 

No primeiro artigo desta pequena série, tratamos do expediente inicialmente utilizado no Life’s Dominion para subverter os termos do debate que se trava em torno do aborto. Agora, tratar-se-á da concepção, bastante estranha para se dizer o mínimo, defendida no livro para se discutir o valor da vida humana, concepção essa que, por sua vez, subverte o conceito de sagrado.

No que se refere a tal ponto, Dworkin usa de expediente interessante. Ele concede que a maior parte das pessoas reconheça que mesmo a vida de um embrião possui valor intrínseco, havendo nela um quê de “santidade/inviolabilidade”, termos que passa a usar como intercambiáveis. Para os leitores que têm fé, o uso da palavra  “santidade” funciona como uma espécie de capitatio benevolentiae; para os decididamente ateus, “inviolabilidade” está ali para lembrá-los de que lado o próprio Dworkin se encontra nesse debate.

De qualquer forma, ele constrói seu argumento sobre a alegação de que a medida de santidade/inviolabilidade de qualquer coisa depende da quantidade de investimento feito nela seja pela natureza seja por outro ser humano. A afirmação é notável e merece ser explicada.

Segundo essa tese, nós lutamos, por exemplo, para preservar uma bela paisagem natural (tendo-a por intocável ou por inviolável ou mesmo por sagrada) porque reconhecemos (ou ao menos a maioria de nós toma isso por certo) que a natureza levou milhões de anos para produzi-la. Fica-se, ainda, horrorizado ao ver uma catedral como a de Notre Dame em chamas (e, portanto, sob o risco de perder-se para sempre) porque se percebe haver nela uma quantidade admirável de investimento de trabalho humano, seja braçal, seja artístico.

Essa é a tese do livro. Aplicando-a ao debate sobre o aborto, Dworkin defende que:

 

a) há pessoas que tendem a considerar que o valor da vida depende principalmente do investimento humano que há nela, razão pela qual, durante a gestação, uma vez que a mãe, seja no aspecto físico, seja no emocional, seja, por fim, no financeiro, investiu pouco no feto, a santidade/inviolabilidade da vida deste último seria muito baixa e, portanto, a defesa dela não teria força moral suficiente para se sobrepor aos interesses da gestante, que, assim, teria a última palavra acerca de interromper ou não a gravidez;

b) há outros que, por sua vez, consideram que valor da vida depende principalmente do investimento da natureza, e, neste caso, esse valor mesmo pode variar do máximo ao mínimo, dependendo do que se entenda por tal investimento natural.

 

Os defensores do aborto  estão, em sua maioria no primeiro grupo.

Já os cristãos estão no segundo grupo. E, ainda que Dworkin não o afirme textualmente,  ocupam a extrema direita dele. Afinal, o autor diz que aqueles que defendem a vida humana é sagrada em virtude de sua origem divina invocam, na verdade, um investimento máximo da natureza já na vida recém-concebida. Ainda que digam que a sacralidade da vida deriva de Deus, querem, na verdade, dizer que deriva da natureza, atribuindo a um investimento mínimo dela um valor máximo de santidade/inviolabilidade. Mas nem todos os membros desse segundo grupo são tão extremistas. Há, na outra ponta do espectro, os que entendem que o investimento da natureza, no caso, se resume ao crescimento vegetativo do produto da concepção; então, para esses, o aborto no início dela seria de uma bagatela a toda prova, e a possibilidade de realizá-lo diminui à medida que a gestação avança.

Repita-se: a tese é notável. A defesa intransigente da vida sob o argumento religioso seria, portanto, um encobrimento artificial daquilo que verdadeiramente ocorre: uma excessiva valorização do investimento natural na vida intrauterina. O pobre do cristão, que nada entende de seus próprios sentimentos religiosos, toma, de forma bastante primitiva, a natureza por Deus e, depois, atribui ao próprio Deus o valor da vida humana desde o primeiro instante da concepção. No fundo, ainda que Dworkin mesmo não o diga, a tese dele acaba por resumir a oposição ferrenha ao aborto a um primitivismo intelectual e moral daqueles que creem em Deus.

Por mais engenhosa que seja, a tese é flagrantemente falsa. Imagine-se, apenas a título de exemplo, um casal de fiéis católicos que recebe a notícia de que o bebê ainda na barriga da mulher não terá senão poucos minutos de vida extrauterina e que, mesmo assim, decide levar a gravidez a termo para que se possa batizar seu filho, crendo, com isso, que ele, após breve passagem nesse mundo, passará a gozar de uma eternidade feliz na presença beatífica de Deus. O caso não é meramente hipotético e, de fato, acontece no cotidiano. Pergunta-se: exatamente o que considerações acerca do investimento da natureza e/ou de outro ser humano na geração e conservação deste filho têm a ver com a decisão de fazê-lo nascer para dar-lhe a visão beatífica dos santos? Onde tais considerações, que necessariamente deveriam existir na tese posta por Dworkin, entram no cálculo deste casal acerca da dura decisão que devem tomar? A resposta é evidente: a decisão deles, não levando em conta nada do que Dworkin diz que levaria, simplesmente não cabe no esquema montado no Life’s Dominion e coloca por terra toda a argumentação do livro.

Exemplos como esse existem muitos. Há pais que decidem levar a gravidez apenas por medo de um castigo eterno; há outros que a levam na esperança de um milagre; há ainda os que a mantêm aceitando-a como um sofrimento redentor; e há os que a levam alegremente apenas por ver, no sofrimento de manter uma vida destinada a uma morte rápida após o parto, uma chance de testemunhar sua fé. E há muitas outras situações concretas, do dia a dia, que se poderiam invocar.

O que não existe, de fato, são pessoas que decidem manter uma gravidez ou abortar fazendo o cálculo descrito por Dworkin. Quando se desce do Olimpo das ideias e passa-se a confrontá-las com o mundo real, não é incomum que sejam desnudadas em sua superficialidade e artificialidade. A tese dele somente produz algum encanto sobre pessoas já acostumadas a jamais confrontar ideias com fatos e ansiosas por encontrar algum argumento para sustentar a tese do aborto. Para todas as demais (isso é: para as pessoas comuns), ela é simplesmente palavrório vazio e sem sentido.

Vale ainda anotar um último ponto sobre o assunto: a afirmação de que o valor que damos à vida humana depende da quantidade de investimento nela colocada (seja pela natureza, seja por outro ser humano) é semelhante (aliás: curiosamente semelhante) à teoria de Marx sobre o valor econômico dos bens, que se mediria pela quantidade de trabalho socialmente útil neles embutida. É tão semelhante que seria estranho não haver entre elas uma relação de causa e efeito, ou, se o leitor preferir, de “modelo e cópia”. De qualquer forma, a tese de Dworkin sofre do mesmo defeito da de Marx: ela pode convencer os que já querem ser convencidos, mas não vale absolutamente nada como explicação dos fatos a que se refere.

De fato, o valor de um bem nada tem a ver com o trabalho socialmente útil nele contido e reside, em última análise, no interesse que um comprador tem em sua aquisição. Uma máquina de escrever pode exigir um trabalho imenso para ser fabricada, mas, como ninguém hoje em dia deseja ter um instrumento destes, seu valor econômico é próximo do zero. Já um artigo de moda, pelo simples fato de ostentar uma marca famosa, pode valer dez vezes mais que um similar de marca desconhecida, ainda que a quantidade de trabalho para fazer um e outro seja rigorosamente a mesma (e ainda que a qualidade do segundo seja objetivamente superior à do primeiro).

Da mesma forma, a afirmação de que a santidade/inviolabilidade de algo reside na quantidade de investimento que a natureza ou o ser humano nela alocou é de uma gratuidade como poucas vezes vista. Uma obra de arte, para usar exemplos do próprio Dworkin, estaria entre as coisas que temos por santas/invioláveis. Mas, literalmente ninguém, ao ouvir uma sinfonia de Mozart, atribui-lhe valor artístico em virtude de um suposto imenso investimento intelectual que o compositor embutiu em sua obra. Mesmo porque, em se tratando de Mozart, não raro suas composições eram feitas com facilidade tal que ele próprio não levava mais do que poucas horas para compor obras imensas. Antes, o valor artístico de uma sinfonia reside na beleza da obra, beleza essa que se revela na harmonia de suas partes e do conjunto.

E, a propósito, há compositores que investiram anos de trabalho em algumas composições que são simplesmente abjetas e cujo valor artístico tende a zero. Igualmente, ainda que Dworkin tenha levado anos pensando na sua tese aqui discutida, nela alocando uma quantidade imensa de seu próprio trabalho humano, o valor dela para explicar as razões pelas quais alguém defende a santidade da vida humana é nenhum. Trata-se de um raro caso de tese que se impugna a si mesma.

No próximo artigo (último da série) tratar-se-á de uma tese ainda mais notável defendida no livro: a de que o aborto é um ato religioso e de que, justamente por sê-lo, merece tamanha  proteção do Estado que esse sequer pode se negar a financiá-lo. Se há alguma exceção ao princípio da laicidade, essa exceção (ora, vejam só) reside justamente no ato de abortar. Mas os detalhes ficam para a próxima publicação.

 

Parte III

Sob o Domínio da Morte

Morte

 

Ler Life’s Dominion de Ronald Dworkin é como entrar num universo à parte. Poucos livros que me chegaram à mão são tão alheios à realidade das coisas; em poucos (talvez em nenhum outro que eu já tenha lido) existe um esforço tão deliberado em chamar o mal de bem e o bem de mal; as trevas de luz e a luz de trevas. A começar pelo título (absolutamente bizarro para um livro que assume a defesa aberta e incondicional do aborto e da eutanásia), toda a obra é um esforço de subversão dos mais comezinhos termos do debate que se trava sobre os limites do direito de matar.

Porém, o autor não se apresenta como defensor de um dos polos do debate. Por mais que seja claro que sua visão não é neutra (afinal, a cada linha do livro ele nada mais faz do que defender o direito ao aborto e à eutanásia), ele apresenta-se quase como que um mediador imparcial. Afirma sua simpatia por ambos os lados e alega que eles somente não cessam o combate porque nem os defensores do aborto nem os detratores da ideia realmente entenderam o que está em jogo e qual a verdadeira natureza da questão. Se todos pudessem ver o problema com as mesmas luzes com as quais o autor o vê, se todos pudessem participar da análise da questão com a mesma agudeza de raciocínio, então, haveria paz na Terra entre os homens. Dworkin, assim, se propõe a estender sua mão amiga a ambos os lados de forma a fazer cessar as contendas, sem que nenhum deles se possa considerar vencedor ou perdedor, muito embora, ao final, o esquema que se propõe represente uma capitulação completa daqueles que defendem a vida e um regozijo absoluto daqueles que desejam impor o aborto e a eutanásia. A neutralidade, ao final do livro, revela sua face verdadeira na mais absoluta parcialidade da argumentação.

Não é possível analisarem-se, aqui, todos os argumentos do autor. Quem quer que já o tenha lido conhece seu estilo. Argumentos são lançados às centenas, sem uma ordem interna, sem qualquer preocupação de uma sistematização mais lógica e mesmo sem maiores preocupações com coerência. Rebater todos os argumentos equivocados exigiria não um artigo (ou sequer uma série de artigos, como aqui se pretende), mas um outro livro. Assim, intenta-se, aqui, apenas a análise dos pontos que se consideram essenciais na obra, pois, superados esses, tem-se que toda a tese (com todos os demais argumentos que visam sustentá-la) está impugnada. Como caveat, advirto o leitor de que não se analisarão, aqui, os argumentos a favor da eutanásia, fechando-se a análise apenas no tocante à defesa que Dworkin faz do aborto, o que, ademais, ocupa a maior parte do livro.

Neste primeiro artigo, a título de mera introdução, limito-me ao ponto mais escorregadio do livro.

De plano, tem-se que Dworkin não encara o mais poderoso argumento (na verdade, o argumento definitivo) contra o aborto: o de que o produto da concepção é já um ser humano e, assim, não existe nenhuma diferença de natureza entre o aborto e o homicídio. Ele argumenta ser inútil tal discussão e afirma que os termos usados no argumento são ambíguos, pelo que qualquer debate com base neles é completamente inútil. Como saída, de forma bastante sutil, defende que se passe a discutir a questão sobre outra base, qual seja: se o concepto é ou não uma “pessoa” e, como tal, dotada de interesses (e de direitos) próprios.

A isca, assim, é lançada, na esperança de que o peixe a morda e fique preso no anzol.

Ora, o verdadeiro debate que se trava sobre o tema é precisamente aquele que Dworkin se nega a debater: se o concepto, desde o momento mesmo da concepção, é ou não um ser humano. Pois, se for, repita-se, não há nenhuma diferença entre o aborto e um assassinato puro e simples; se não for, então é possível debater-se a possibilidade do aborto, seja em seu aspecto temporal (até que momento se pode abortar?), seja no seu aspecto circunstancial (em que casos se deve permitir o aborto), seja, ainda, em seu aspecto moral. Assim, ao simplesmente dispensar a indagação como “ambígua”, Dworkin passa a travar um debate falso: um debate que o movimento pró-vida não encampa e que, portanto, Dworkin pode vencer sem maiores dificuldades.

Afinal, enquanto a indagação acerca da natureza humana do concepto se volta para a realidade das coisas, o falso debate acerca de ser ele ou não uma “pessoa” foca-se em meros conceitos jurídicos, mais ou menos maleáveis e, em qualquer caso, sempre dependentes de quem os formula. Pois, mesmo no direito brasileiro, antes do nascimento com vida, não há “pessoa” propriamente dita: a personalidade é um atributo que o ordenamento jurídico somente concede a quem logra nascer. Não basta que se seja humano para ter personalidade; é necessário nascer-se com vida. A rigor, um escravo pode, dependendo da lei vigente em determinado país, ser considerado como “coisa” e não como “pessoa”, mas, a rigor, nem Dworkin nem ninguém deixaria de o considerar como um ser humano (ou, ao menos, é o que espera).

Contudo, não é difícil que o leitor menos atento aceite essa mudança de termos, uma vez que, na comunicação cotidiana, o termo “pessoa” e a expressão “ser humano” são facilmente intercambiáveis e muitos tomam um pelo outro. Caso se caia em tal armadilha, então, o defensor da vida terá, em última análise, desistido do debate, pois terá passado a debater coisa diversa do que inicialmente se propunha. E, fatalmente, o vitorioso no debate, nesses novos termos, será o lado defensor do aborto.

Com uma só tacada, assim, livra-se do argumento inconveniente (e, diria eu, incontornável), redefine-se a discussão e se prepara o terreno para que um dos lados a vença. A rejeição desta ideia central, pois, é imperiosa para que o leitor não se deixe enganar no restante do livro. E, sobre os pontos essenciais restantes, falar-se-á na sequência desta pequena série de artigos.

Aos Ofendidos de Plantão

 

How Do I Not Offend Anyone?
Fonte da imagem: https://goodenoughnow.com/how-do-i-not-offend-anyone/

 

Está sendo muito comentada na internet uma sentença da Drª Adriana Gatto Martins Bonemer proferida em ação civil movida pelo Ministério Público na qual se pediram indenizações por danos sociais em face de indivíduo que teria liderado um “trote” universitário. O tal “dano social” se origina do fato de que, no “trote” entoaram-se cânticos de cunho machista e pejorativo para com as mulheres. Nesse pequeno artigo, não desejo adentrar no mérito do julgado (mesmo porque a legislação não o permite); desejo, antes, apenas manifestar-me sobre um certo tipo de recepção que a sentença, crítica ao movimento feminista, está tendo nas redes sociais. É verdade que têm havido muitas manifestações de apoio e de concordância com tais críticas; porém, ao lado delas (e é sobre essas que pretendo comentar) há outras de indignação pelo fato de que uma juíza (uma mulher, pessoa do sexo feminino, portadora de cromossomos XX) possa se posicionar tão radicalmente contra o feminismo, que tanto espaço teria conquistado para mulheres seja no âmbito social, seja no político, seja no econômico.[1]

Ora, quem se deu ao trabalho de efetivamente ler a sentença (coisa que duvido que muitos dos ofendidos tenham feito), verá que, nela, a própria magistrada já traz exemplos de outras mulheres que também não veem o feminismo com bons olhos. Cita-se, por exemplo, a deputada Ana Caroline Campagnolo, que escreveu um livro para tratar do assunto. Cita-se, ainda, a filósofa americana Camiglie Paglia, pessoa que milita longe das “milícias conservadoras” e cuja oposição ao tipo de feminismo tratado na sentença é bem conhecida. Haveria muitos outros exemplos que poderiam ser citados, como o de Ann Coulter (nos EUA) e o de Sara Winter (no Brasil).

Ou seja: a oposição de mulheres (pessoas do sexo feminino, portadoras de cromossomos XX) ao feminismo é coisa tão abrangente que não se pode duvidar que as afetações de indignação e de ofensa que permearam as reações de muitos ao tomar conhecimento da sentença ou são fingidas ou são frutos de um deslocamento formidável dos ofendidos com a realidade que os cerca.

O fato de que as mulheres não se sintam representadas pelo movimento feminista é tão evidente que, surpreendentemente, é o ponto de partida do famoso livro de Judith Butler “Gender Trouble: Feminism and Subversion of Identidy”. Deixemos que ela mesmo fale:

 

De fato, a fragmentação dentro do feminismo e a paradoxal oposição das “mulheres” a quem o feminismo alega representar sugerem os limites necessários da política de identidade.[2]

 

O grifo é meu; as aspas colocadas para o termo “mulheres” é da autora.

Judith Butler, portanto, visou responder tal deslocamento das mulheres para com suas representantes feministas e foi para fazê-lo que escreveu seu bombástico livro, cujas consequências nos atingem a todos até hoje. E qual foi a resposta a que ela chegou? Simples: a de que mulheres como tais não existem (daí porque ela ter colocado aspas no termo). Novamente, deixemos que ela fale:

 

Talvez, paradoxicalmente, “representação” mostrar-se-á como fazendo sentido para o feminismo apenas quando o sujeito “mulher” não for presumido em lugar nenhum.[3]

 

As mulheres não se sentem representadas pelo feminismo? Isso não se deve ao fato de que, efetivamente, o movimento não as represente, mas ao fato de que o feminismo se deixou enganar pelas aparências (ou pela “metafísica de essências”, para usar uma expressão própria de Judith Butler) e julgou que efetivamente existia algo chamado “mulher”. A saída, então, é que todo o movimento feminista se livre desse jugo e passe a lutar em outro terreno. A saída é um feminismo sem “mulher”.

A dissociação real existente, pois, entre o movimento feminista e a aspiração efetiva da maioria das mulheres é tamanha que o movimento (ou aquilo no qual se transformou) jogou as mulheres na lata de lixo e passou a lutar por coisas diversas. O feminismo já abandonou a luta pelas mulheres; mas há quem se ofenda na internet brasileira quando uma mulher diga ser contra a um movimento que já nem a considera como digna de atenção.

Portanto, aos ofendidos de plantão, afirmo que suas manifestações de indignação pela posição abertamente contrária ao feminismo tomada por uma juíza (uma mulher, um indivíduo do sexo feminino, portador de cromossomos XX) são derivadas ou de pura afetação ou de um puro fechamento à realidade que nos cerca a todos: não há e nunca houve uma verdadeira adesão da maior parte das mulheres ao movimento feminista. E isso é tão óbvio que sequer deveria ser necessário dizê-lo.

 

[1] Tais pessoas partem do pressuposto de que homens e mulheres estão em campos irremediavelmente opostos, pelo que a conclusão lógica de suas manifestações é a de que seria igualmente ofensivo que homens apoiassem o feminismo, que tanto espaço lhes teria roubado seja no campo social, seja no político, seja no econômico.

 

[2] No original: Indeed, the fragmentation within feminism and the paradoxical opposition to feminism from “women” whom feminism claims to represent suggest the necessary limits of identity politics. (Butler, Judith. Gender Trouble (Routledge Classics) (p. 6). Taylor and Francis. Edição do Kindle).

 

 

[3] No original: Perhaps, paradoxically, “representation” will be shown to make sense for feminism only when the subject of “women” is nowhere presumed. (Butler, Judith. Gender Trouble (Routledge Classics) (p. 8). Taylor and Francis. Edição do Kindle).