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Direitos humanos e direito natural

Palestra proferida para o IEP-Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa, em 11 de novembro de 2021.

Por Ricardo Henry Marques Dip

Não é infrequente deparar-nos em nossos tempos com algum uso intercambiável −ou, quando não, ao menos muito acercado− dos termos direitos naturais e direitos humanos, a cuja aproximação, além disso, concorre o termo direitos fundamentais. Alguns concebem os direitos fundamentais sob o modo de uma realização histórica dos direitos naturais; outros referem-se às perspectivas iusnaturalistas dos direitos humanos; há quem entenda que a expressão mesma direitos humanos é apenas um modismo contemporâneo, porque seria ela um sinônimo do termo direitos naturais; há ainda quem seja proclive a suprimir a referência aos direitos naturais, inclinando-se simpliciter a substituí-la pelo termo direitos humanos; ou, encerrando essas indicações recrutadas a título meramente ilustrativo, há como que um positivismo iusnaturalista −ou seja, um positivismo de direitos naturais, reduzidos a serem só possivelmente os direitos fundamentais expressos nos ordenamentos particulares. Tenha-se ainda em conta que, desde a segunda metade do século XX, uma parte considerável do pensamento católico −não só o dos leigos, mas também o de uma parcela não negligenciável de integrantes da hierarquia eclesial− inclinou-se à defesa e à promoção dos direitos humanos, fenômeno que José Miguel Gambra designou como o batismo desses direitos; muito longe está-se, pois, da condenação que o Papa Pio VI, na Encíclica Adeo nota (23-4-1791), infligira aos direitos humanos da Declaração francesa de 1789 por serem “diciassette articoli (…) contrari alla religione e alla società”, e às sucessivas impugnações pontificais desde a Quanta cura e do Syllabus de Pio IX, passando pelas acusações de Leão XIII à civilização moderna, pela doutrina contramodernista do Papa S.Pio X −assinaladamente na Encíclica Pascendi e ao condenar o movimento do Sillon−,  até chegar, em meados do século XX,  às reiterações críticas do Papa Pio XII, tal esta passagem, a título ilustrativo, da Alocução destinada aos juristas italianos, em 6 de novembro de 1949: “L’errore del razionalismo moderno è consistito appunto nella pretesa di voler costruire il sistema dei diritti umani e la teoria generale del diritto, considerando la natura dell’uomo come un ente per sè stante, al quale manchi qualsiasi necessario riferimento ad un Essere superiore, dalla cui volontà creatrice e ordinatrice dipende nell’essenza e nell’azione”.

              Vem a propósito do tema a distinção desfiada por Antonio Perez Luño, que, sem desconhecer o usus loquendi −que leva a uma sinonímia prática destes termos direitos humanos, direitos fundamentais e direitos naturais−, chega, no entanto, a uma proclividade doutrinal e normativa em corresponder o termo direitos fundamentais para denominar os direitos naturais positivados no âmbito interno dos vários estados, ao passo em que o nome direitos humanos seria mais usual para os direitos naturais positivados nas declarações e convenções internacionais. Essa referência de Perez Luño sugere reconhecerem-se os direitos naturais como conteúdo quer dos direitos fundamentais, quer dos direitos humanos; e em dada medida isto não consona com a realidade, porque fosse esse conteúdo nota absoluta para essas distinções terminológicas, já não se saberia por quais motivos, aqui num único exemplo, o direito de antena, previsto na legislação constitucional portuguesa, pôde já estimar-se fundamental.

          Sem embargo de uma sobreposição factual frequente de hipóteses de direitos que a um só tempo se considerem naturais, humanos e fundamentais, não parece possa afirmar-se sua equivalência essencial. Essa impossibilidade pode escancarar-se num exemplo gráfico, quando se tenha em conta que, à altura da Declaração universal dos direitos humanos, pela Organização das Nações Unidas, em 1948, a inviolabilidade da vida humana era tida por direito inalienável do homem, ao passo em que agora, no espectro dos chamados direitos humanos reprodutivos, incluem alguns um suposto direito humano ao aborto, pondo em manifesto xeque a identificação absoluta dos direitos humanos com os direitos naturais.  Se percorrermos, além disso, algumas indicações da série que, de direitos humanos fundamentalizados em diferentes países, recolheu o pensador argentino Juan Fernando Segovia, vamos encontrar desde o direito à prática esportiva, à ginástica e à atividade física (em Cuba, Gana, Nicarágua, Portugal, Suíça, Turquia e Uganda) até os direitos específicos dos artistas (no Panamá, na Turquia); do direito dos inquilinos contra alugueres abusivos (na Polônia e na Suíça) ao direito dos concubinos em equiparar-se às famílias legalmente constituídas (em Angola, no Equador, na Guatemala, em Nicarágua, no Paraguai); dos direitos dos cientistas (na Hungria), aos quais se outorga exclusividade para decidir em questões de verdades das ciências, ao direito do ócio (na Espanha, na Holanda, no Peru); do direito ao regozijo cultural e social (na Bélgica) ao direito contra a fome (na Nicarágua); do direito de acesso à informação eletrônica (na Grécia) ao direito de acesso às bibliotecas (na Libéria), etc.

          Dostoievski, nas páginas de Os demônios, profetizara de algum modo a trivialização dos direitos humanos, ao dizer que seu mínimo era o de possuir um guarda-chuva. Não se recuse, é verdade, que do fenômeno atual dessa banalização provenha a vantagem de ter contribuído a uma dada consciência popularizada acerca do direito −ou, sobretudo e mais exatamente, dos direitos (subjetivos)− e até ao de sua elevação a um plano de supralegalidade. Todavia, os tributos que se pagam por essa estendida popularidade são o da avulsão de muitos novos direitos humanos e o da cada vez mais notória erosão de seu consenso de base.

          Pode pensar-se, em abono dessa eclosão de novos direitos humanos, que seu florescimento depois da Segunda Guerra Mundial correspondeu a uma reação iusnaturalista aos crimes de Estado perpetrados sobretudo −mas não só− pela Alemanha nazista, e decerto não faltarão bons motivos para diagnosticar alguns signos do antigo direito natural genuinamente cristão nesta retomada contemporânea da ideia de substantividade universal do direito.  Calha, entretanto, que esses signos de enraizamento dos direitos humanos à concepção (que pode dizer-se) clássica do direito natural merecem uma prudente aproximação distintiva, porque, se bem seja fato que o rol dos direitos catalogados, por exemplo, em 1948, na Declaração universal da Organização das Nações Unidas, não conflite com as noções próprias do iusnaturalismo tradicional, essa conformidade expressiva emergiu no plano de um consenso meramente prático, assim o admitiu Jacques Maritain, afirmando que esse concerto sobre os direitos humanos apenas se concluíra com a condição de que ninguém perguntasse sobre seu por quê. Era, pois, de todo adivinhável que, mais cedo ou mais tarde, símile consenso não fundacional levasse paulatinamente a resultados dissonantes entre si. Bastaria percorrer os nomes da comissão de expertos que a Unesco recrutou para elaborar o catálogo de direitos humanos da ONU, e, prontamente, ver-se-ia por notório que seu consenso se apoiava em um ecleticismo fundacional, com a consequente prognose muito reservada quanto a seu êxito, Com efeito, a consideração de que a ideologia dos direitos humanos os converteu numa espécie de leito de Procusto (na metáfora de Contreras e Poole) parece dar bastante razão aos que desfiam crítica a Bobbio e Maritain por entenderem ser apenas de praticarem-se os direitos humanos, sem que importe justificá-los (assim, Danilo Castellano).

          Não é já exagero falar em diáspora fundacional dos direitos humanos e até cabe entender, posta essa pluralidade de seus alicerces teóricos, o motivo pela qual esses direitos terminariam, como terminaram, por fundamentalizar-se, especialmente na esfera constitucional, suprindo a intensa labilidade de suas raízes movediças e, em muitos aspectos, contraditórias entre si. Ou seja, a multiplicidade (tantas vezes) conflitiva de fundamentos acarretou o aperturismo conceitual dos direitos humanos atuais, e sua livre determinação objetiva  fomentou a busca de alguma sorte de fonte, ainda que meramente manifestativa, como se dá com sua positivação particular nas constituições dos estados. Se essa fundamentalização, todavia e por mais que em não poucas vezes afeiçoada a proclamações de sua aceitação mundial, pôde exprimir, per accidens, alguns direitos efetivamente universais, o fato é que, hoje, o mundo convive com uma nacionalização dos direitos humanos, que não parece ter mais limites para conterem-se do que a só imaginação criativa de quem tenha poderes para impô-los ou reclamá-los como exercício irrestrito da autonomia individual, é dizer, da liberdade negativa.

          Seria injusto, é verdade, recusar algum mérito no projeto de restaurar uma ética para instruir e animar um direito que, sob a pauta ideológica do normativismo da primeira metade do século XX, clausulara-se aos valores, e deve louvar-se a superação teórica da ideia −como a referiu Radbruch− de que “ordens são ordens”, de que “a lei é a lei”, pois essa concepção de que a lei valia por ser lei “foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as normas mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas”. Bem por isso, ao chegar a seu quinto minuto de filosofia pós-guerra, Radbruch advertia que “há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo”. 

          Sem deixar, pois, de admitir o bem que havia na reação antinormativista dos meados do século XX ao buscar incluir no gênero normativo a classe dos princípios, normas finalísticas, destinadas ao melhor dos mundos possíveis, o fato é que essa busca ficou a meio caminho: sua visão de uma ordem jurídica universal contentava-se com uma visão racionalista do direito natural, cujos supostos exatamente reincidiam num positivismo substituinte do anterior. Talvez seja de fato possível diagnosticar uma síndrome que parece acometer parcela considerável dos juristas, nisto que incapazes de perceber o direito à margem das letrinhas dos diários das leis, e isso poderá explicar o motivo de a proclividade especulativa refratária ao normativismo kelseniano se ter acomodado à ideia de princípios transpositivos, é dizer, de algum modo indeterminados, mas postos o mais possível a salvo de intervenções ablatórias: daí a atribuição de força normativa às constituições, imputando-se ao novo direito constitucional o papel que o iusnaturalismo dito clássico reservara ao direito natural.  Enfim, os velhos segmentos do direito subconstitucional não somente passaram a subordinar-se às constituições, senão que, gradativamente, inclinaram-se a sujeitar-se a ela mais e mais, na medida em que elas paulatinamente se tornaram extensas e difusas, subtraindo espaços normativos que antes eram próprios das órbitas infraconstitucionais.

          Essa constitucionalização ou fundamentalização de princípios, por mais tentasse resguardá-los contra interferências supressivas no plano legislativo, perseverou sob o domínio da livre determinação de conteúdo dos direitos humanos, o que passou a sugerir procedimentos de substantivação por um órgão jurisdicional que completasse as normas abertas e garantisse, assim, esses direitos humanos até mais além dos propriamente tornados fundamentais. Esse órgão judicial, em palavras de Cristina Queiroz, operará ao modo de um “substituto funcional da Revolução”, transmudando, de fato, a supremacia legicêntrica  em uma supremacia judicial, escorada nas sentenças dos tribunais.

          Assim essa tendência de fundamentalização dos direitos humanos −ou seja, sua constitucionalização em um grau de superioridade formal no ordenamento jurídico−,  ao desviar-se pela trilha da codeterminação judiciária tinha de redundar logicamente no numerus apertus dos direitos humanos, de modo que não apenas as constituições estariam aptas a, formalmente, recepcionar novos direitos fundamentais −que não cessam de ter novas gerações ou dimensões−,  senão que, além disso, haveria, como já há, o reconhecimento de direitos fundamentais não constitucionalizados. Se, de uma parte, pode pensar-se em que o novo constitucionalismo corresponderia a uma forma histórica de ressurgimento do direito natural, por meio da positivação de princípios referíveis à dignidade da pessoa humana, cabe, de outra parte, considerar se a reserva estatal de determinação e sobredeterminação das normas não levaria apenas, na expressão de Robert Dahl, a um “novo normativismo”, a um normativismo de sistema aberto, no qual as normas são ora mandatos precisos e claros −equivale a dizer, são regras−, ora, diversamente, mandatos incompletos, princípios; mas sempre normas. Ou seja, tem de perguntar-se se o novo direito natural, com sua roupagem de direitos humanos, não é já somente uma espécie de positivismo, o positivismo (agora, sobretudo) judicial, em que o direito se ostenta como um grande código revestido por togas.

              Não parece, entretanto, que se possa resolver o tema dos direitos humanos com um simples acordo em torno de conveniências práticas ou mediante sua positivação em leis humanas ou por via judicial. É que, com rigor, os direitos humanos devem fundar-se, de algum modo, objetivamente, na natureza humana, e isto demanda um acercamento metafísico e não um consenso ou uma imperação de vontades ocasionais, porque a falta de ancoragem numa base objetiva universal leva, com maior ou menor rapidez, à anarquia ou ao absolutismo.

              E assim parece bem que, em relação ao direito natural clássico, distingam-se os atuais direitos humanos menos por alguma consonância ocasional de sua listagem com as res iustæ da ética iusnaturalista, mas por meio de uma resposta fundacional ao problema antropológico: quæ sit hominis natura, para aqui repetir a interrogação de Cicero em De finibus bonorum et malorum. Em outras palavras, o que decidiria sobre a caracterização dos direitos humanos estaria posto na definição do homem: “la natura o l’essenza del diritto [disse o Papa Pio XII] non può essere derivata se non dalla natura stessa dell’uomo”.  Se essa definição do homem é a de um ente apenas material e com vontade autônoma, tem-se aí a consequente configuração dos direitos humanos ao modo imanentista e voluntarista −o que se acomoda à predominante expressão contemporânea desses direitos; se, diversamente, definir-se o homem como pessoa dotada de corpo e alma espiritual, entendendo-se a espiritualidade da alma não somente como uma faculdade racional, mas também como um sujeito que é imagem e semelhança de Deus, os direitos correspondentes apresentam-se como oriundos de um princípio transcendente.

              Decerto, entretanto, não bastaria uma referência nominal à natureza humana −em que se assentam a doutrina do direito natural clássico, mas, não diversamente, ideologias de variado espectro e até opostas entre si, como as de Locke, Hobbes e Rousseau. Tem nisto muita razão Juan Fernando Segovia, ao dizer que, nos tempos pós-modernos, “el genio inventivo sigue alimentando nuevos derechos para un ser humano que no ha terminado aún de moldearse a sí mismo”. A solução real do problema parece estar, designadamente, em decidir ou pela imanência ou pela transcendência da natureza humana.

              O  confronto entre esses modelos pode estampar-se nas figuras respectivas do homo imago hominis e do homo imago Dei, com suas consequentes antropologias. É porque, no homem que se entroniza como seu próprio e bastante modelo, ao perder-se o reto conhecimento do que é o homem, do que é a natureza humana e, de modo primal, sua vocação transcendente, perde-se também o reto conhecimento do direito, assim pareceu ao magistério de Pio XII, “le cose divine ed umane, che secondo la definizione di Ulpiano formano l’oggetto più generale della giurisprudenza, sono così intimamente congiunte, che non si possono ignorare le prime, senza perdere la esatta valutazione delle seconde”.

              Vários embates, no fim e ao cabo, parecem desiludir uma equivalência essencial entre os direitos humanos atuais e o direito natural clássico: os enfrentamentos do imanentismo ao transcendentalismo, do voluntarismo à prelação do intelecto, da autonomia ética à heteronomia, do subjetivismo ao realismo temperado. Uma personagem de Fiódor Dostoiévski, em Os demônios, Kírillov, resume, graficamente, esses embates: “É um absurdo alguém reconhecer que Deus não existe e no mesmo instante não reconhecer que é um Deus…”, e talvez, quanto à esfera do direito, seja possível, sobre a divergência entre fundamentos estritamente antropológicos e fundamentos teocêntricos e teotrópicos, reconstruir essa sentença de Kírillov: “É um absurdo alguém negar que Deus seja o fundamento último do direito e no mesmo instante não reconhecer que os direitos não sejam mais do que a liberdade humana ilimitada de quem possua a potestade de os impor ou exigir”.   

DISCURSO DE SUA SANTIDADE PAPA PIO XII AOS PARTICIPANTES DA VI CONVENÇÃO NACIONAL DE ESTUDO DA UNIÃO DOS JURISTAS CATÓLICOS ITALIANOS* (SOBRE A CULPA E A PENA).

Discurso de Sua Santidade PAPA PIO XII
AOS PARTICIPANTES DA VI CONVENÇÃO NACIONAL 
DE ESTUDO DA UNIÃO DOS JURISTAS CATÓLICOS ITALIANOS*

Acolhei, ilustres Senhores, a Nossa saudação de boas-vindas. Dirigimo-nos a vossa digna Assembleia com os mesmos sentimentos de alegria e confiança com os quais vos recebemos no ano passado. A questão que hoje tomamos em exame foi-Nos relatada por um dos vossos, o insigne Professor Carnelutti. É a função da pena, o redimir o culpado mediante a penitência; questão que Nós gostaríamos de formular assim: a culpa e a pena na sua mútua conexão. Gostaríamos, desse modo, de traçar genericamente o caminho do homem desde o estado de não culpabilidade, através do fato da culpa, até o estado de culpa e de pena (reatus culpae et poenae[1]); e vice-versa, o retorno deste estado -por meio do arrependimento e da expiação- àquele de libertação da culpa e da pena. Nós poderemos então ver mais claramente qual é a origem da pena, qual é a sua essência, qual é a função, qual forma essa deve tomar para conduzir o culpado à sua libertação.

  1. – O CAMINHO PARA A CULPA E PARA A PENA

Ocorre aqui fazer duas advertências.

Antes de tudo, o problema da culpa e da pena é um problema de pessoa, e isso em um dúplice aspecto. O caminho para a culpa inicia-se pela pessoa do sujeito ativo, pelo seu “Eu”. Na soma dos atos, que provêm da pessoa como centro de ação, devem-se considerar aqui apenas aqueles que se baseiam em uma determinação consciente e voluntária; atos, a saber, que o Eu podia realizar ou não realizar, que realiza porque ele próprio livremente o deliberou. Esta função central do Eu para si mesmo – ainda que operante sob influências de naturezas diversas – é um elemento necessário, se se quer falar de verdadeira culpa e de verdadeira pena.

O fato culpável é, porém, sempre também uma posição de pessoa contra pessoa, tanto se o objeto imediato da culpa é uma coisa, como no furto, quanto se é uma pessoa, como no homicídio: além disso, o Eu da pessoa, que se torna culpável, dirige-se contra a Autoridade superior, portanto, em conclusão, sempre contra a autoridade de Deus. Em que Nós, que temos em vista o genuíno problema da culpa e da pena propriamente ditas, prescindimos da culpa meramente jurídica e da sua consequente penalidade.

É, pois, de se observar que a pessoa e a função pessoal do culpado formam uma estreita unidade, a qual, por sua vez, apresenta diferentes aspectos. Refere-se, ao mesmo tempo, aos campos psicológico, jurídico, ético e religioso. Estes aspectos se podem, contudo, considerar-se também separadamente; mas, na realidade, culpa e pena estão entre si tão conectadas que apenas no seu complexo é possível formar-se um conceito justo sobre o culpado e sobre a questão da culpa e da pena. Não se pode, portanto, sequer tratar este problema unilateralmente, apenas sob o aspecto jurídico.

O caminho para a culpa é, portanto, este: o espírito do homem se encontra na seguinte posição: diante de um fazer ou de um omitir, que a ele se apresenta como simplesmente obrigatório, como um absoluto “tu deves”, uma exigência incondicionada de agir com pessoal determinação. A esta exigência o homem recusa-se a obedecer: rejeita o bem, adota o mal. À interna resolução, quando essa não se exaure em si mesma, segue-se a ação externa. Dessa forma, o ato culpável é realizado em seus elementos interno e externo.

Natureza e vários aspectos do ato culpável

No que se refere ao lado subjetivo da culpa, para um reto juízo, deve-se considerar não somente o fato exterior, mas também as influências, provenientes do interior e do exterior, que cooperaram para a resolução do culpado, como: disposições inatas ou adquiridas, impulsos ou impedimentos, marcas da educação, irradiações das pessoas e das coisas em meio às quais vive, fatores circunstanciais, e, de modo particular, a intensidade habitual e atual do querer, a assim chamada “energia criminal”, que contribuiu à execução do fato culpável.  

Considerado em seu fim, o fato culpável é um arrogante desprezo da Autoridade, que ordena a manutenção da ordem daquilo que é justo e bom, e que é a fonte, a guardiã, a tutora e a vingadora da ordem mesma. E uma vez que toda Autoridade humana não pode senão de Deus derivar, todo fato culpável é uma oposição contra Deus mesmo, contra o seu supremo direito e contra a sua suma majestade. Este aspecto religioso está imanente e essencialmente conjugado com o fato culpável.

Fim deste fato é também a comunidade de direito público, se e enquanto ele coloca em perigo e viola a ordem estabelecida pelas leis. Todavia, nem todo verdadeiro ato culpável, como foi supra descrito, tem o caráter de culpa de direito público. O poder público deve ocupar-se apenas daquelas ações culpáveis que ofendem a regular convivência na ordem fixada pelas leis. Daqui a regra acerca da culpa jurídica: Nulla culpa sine lege[2]Mas uma tal violação, se é de fato em si mesma um verdadeiro ato culpável, é sempre também uma violação da norma ética e religiosa. A partir disso, segue-se que aquelas leis humanas, as quais se encontrem em contradição com as leis divinas, não podem formar a base para um verdadeiro fato culpável de direito público.

Ao conceito de fato culpável liga-se um outro: de que o seu autor torna-se merecedor de pena (reatus poenae[3]). O problema da pena, pois, tem assim princípio em cada caso, no momento em que o homem torna-se culpado. A pena é a reação, requerida pelo direito e pela justiça, à culpa: são como golpe e contragolpe. A ordem violada pelo ato culpável exige reintegração e restabelecimento do equilíbrio turbado. É função própria do direito e da justiça a de guardar e preservar a correspondência entre o dever, de uma parte, e o direito, de outra, e de restabelecê-la, se lesada for. A pena não toca por si o fato culpável, mas o seu autor, a sua pessoa, o seu Eu, que, com consciente determinação, realizou a ação culpável. Do mesmo modo, a punição não vem como que por um abstrato ordenamento jurídico, mas pela pessoa concreta investida da legítima Autoridade. Como a ação culpável, assim também a punição coloca frente a frente pessoa a pessoa.

Sentido e finalidade da pena

A pena propriamente dita não pode, portanto, ter outro sentido e finalidade senão aquele há pouco enunciado: o de reconduzir novamente na ordem do dever o violador do direito, que a havia deixado. Esta ordem do dever é necessariamente uma expressão da ordem do ser, da ordem do verdadeiro e do bom, única a ter o direito de existência, em oposição ao erro e ao mal, que representam aquilo que deve não ser.  A pena cumpre o seu ofício ao seu modo, enquanto obriga o culpado, em razão do ato realizado, a um sofrimento, isto é, à privação de um bem e à imposição de um mal. Porém, para que este sofrimento seja uma pena, é essencial sua conexão causal com a culpa.

  1. – O ESTADO DE CULPA E DE PENA

Acrescentamos que o culpado criou com o seu ato um estado que por si não cessa com o cessar do fato mesmo. Ele permanece alguém que violou consciente e voluntariamente uma norma obrigatória (reatus culpae[4]) e com isso incorreu na pena (reatus poenae[5]). Este estado pessoal perdura, também na sua posição frente à Autoridade da qual ele depende, ou seja, à Autoridade humana de direito público, porquanto esta tem parte no correspondente processo penal, e, além disso, e sempre, frente à suprema Autoridade divina. Forma-se assim um durável estado de culpa e de pena, que indica uma particular condição do culpado diante da Autoridade ofendida e desta para o culpado (cf. S. Tom. S. Th. 3 p. q. 69 a. 2 obj. 3 et ad 3).

Tentou-se, partindo do conceito de que tempo e espaço, formalmente enquanto tais, não sejam simplesmente realidades, mas instrumentos e formas do pensamento, extrair-se a conclusão de que depois da cessação do fato culpável e da pena mesma não se possa mais falar de uma sua qualquer permanência na realidade, na ordem real, e, portanto, de um estado de culpa e de pena. Se assim fosse, dever-se-ia renunciar ao princípio: «Quod factum est infectum fieri nequit»[6]. Aplicado a um fato espiritual – e tal é em si mesmo o ato culpável -, aquele princípio se basearia – assim se afirma – sobre uma falsa avaliação e sobre um errado uso do conceito de «tempo» – Ultrapassaríamos os limites deste Nosso discurso se aqui quiséssemos tratar a questão do espaço e do tempo. Bastará notar que o espaço e o tempo são não uma simples forma do pensamento, mas têm um fundamento na realidade. De todo modo, a consequência que se quer extrair contra a existência de um estado de culpa, não vale. Sem dúvida, a queda do homem na culpa ocorre sobre esta terra em um determinado lugar e em um determinado tempo, mas essa não é uma qualidade daquele lugar e daquele tempo, e, pois, a sua cessação não está ligada à cessação de um «aqui» e de um «agora».

Tudo o que expusemos refere-se à essência do estado de culpa e de pena. Por outro lado, no que diz respeito à Autoridade superior, à qual o culpado negou a devida subordinação e obediência, sua indignação e desaprovação se dirigem não apenas contra o fato, mas contra o próprio autor, contra a sua pessoa por causa de seu ato.

Ao ato da culpa junta-se imediatamente, como já se acenou, não a pena mesma, mas a culpabilidade e a punibilidade do próprio ato.  Não obstante a isso, não está excluída uma pena, na qual se incorra, em virtude de uma lei, automaticamente, no momento do ato culpável. No direito canônico se conhecem as poenae latae sententiae ipso facto commissi delicti incurrendae[7]No direito civil uma tal pena é rara, e mesmo desconhecida em alguns ordenamentos. Sempre, pois, este automático incorrer na pena supõe uma verdadeira e grave culpa.

Os pressupostos de toda sentença penal

Em regra, portanto, a pena é infligida pela Autoridade competente. Isso pressupõe: uma lei penal vigente; uma legítima investidura da autoridade penal, e nela o seguro conhecimento do ato por punir, tanto pelo lado objetivo, vale dizer, na realização do delito tipificado pela lei, quanto pelo lado subjetivo, vale dizer, pelo que se refira à culpabilidade do réu, à sua gravidade e extensão.

Este conhecimento necessário para emanar uma sentença penal é, ante ao tribunal de Deus, Juiz Supremo, perfeitamente claro e infalível, e havê-lo indicado não pode ser sem interesse para o jurista. Deus estava presente ao homem na resolução interna e na realização externa do fato culpável, a tudo plenamente penetrando, com o seu olhar, até aos últimos pormenores; tudo está diante dEle, agora como no momento da ação. Mas este conhecimento – em absoluta plenitude e em soberana segurança, em cada instante da vida e sobre cada ação humana – é próprio apenas de Deus. Por isso, cabe unicamente a Deus o último juízo sobre o valor de um homem e a decisão sobre a sua sorte definitiva. Ele pronuncia este juízo da forma em que encontra o homem no momento no qual o chama à eternidade. Todavia, há um juízo infalível de Deus também durante a vida terrena, e não apenas sobre todo o conjunto, mas ainda sobre cada ato singular culpável e cada pena correspondente; pois, de fato, em não poucos casos, Ele a executa já durante a vida do homem, não obstante a sempre pronta disposição divina à remissão e ao perdão.

A certeza moral nos juízos humanos

O juiz humano o qual -diversamente- não tem a onipresença e a onisciência de Deus, tem o dever de formar, antes de proferir a sentença judicial, uma certeza moral, é dizer, que exclua toda dúvida razoável e séria acerca do fato exterior e da culpabilidade interna. Ora, o juiz humano, no entanto, não tem uma imediata visão do estado interior do imputado, como estava no momento da ação; ao contrário, no mais das vezes, não está em grau de reconstruí-lo com plena clareza a partir dos elementos de prova, e, por vezes, nem pela própria confissão do culpado. Mas esta falta e impossibilidade não devem ser exageradas, como se fosse de ordinário impossível ao juiz humano conseguir uma suficiente segurança e, portanto, um sólido fundamento para a sentença. Segundo cada caso, o juiz não deixará de consultar especialistas renomados sobre a capacidade e responsabilidade do presumido réu e de considerar os resultados das modernas ciências psicológicas, psiquiátricas e caracteriológicas. Se, não obstante a todas estas ponderações, permanece ainda uma dúvida importante e séria, nenhum juiz consciencioso prolatará uma sentença de condenação, tanto mais quando se trata de uma pena irremediável, como a pena de morte.

Na maior parte dos delitos, o comportamento exterior manifesta já suficientemente o sentimento interno, a partir do qual se originou. Portanto, em regra, pode-se – e, antes, às vezes deve-se – a partir do exterior deduzir uma conclusão substancialmente exata, se não se quer tornar impossíveis as ações jurídicas entre os homens. Por outro lado, não se deve ainda esquecer que nenhuma sentença humana decide -em última instância e definitivamente- a sorte de um homem, mas somente o juízo de Deus, tanto pelos atos individuais quanto pela vida inteira. Então, para tudo aquilo em que os juízes humanos são falhos, o Juiz supremo restabelecerá o equilíbrio, primeiro, imediatamente após a morte, no juízo definitivo sobre a vida inteira de um homem e, em seguida, mais tarde e plenamente, diante de todos, no último juízo universal. Não que isso dispense o juiz de uma conscienciosa e exata cautela na investigação; mas é algo grandioso saber que haverá uma última adequação da culpa e da pena, que nada deixará a desejar para a sua perfeição.  

Quem é encarregado da assistência ao condenado no cárcere preventivo não descuide de considerar qual o peso e qual o sofrimento que já a própria investigação (processo) causa ao detento, ainda quando não se aplicam métodos de investigação que não podem de modo algum ser admitidos.  Estes sofrimentos não são ordinariamente calculados na pena que será finalmente imposta, mesmo porque dificilmente isso poderia conseguir-se. Permanece, no entanto, a consciente recordação.

No campo jurídico externo, é decisiva para o pleno estado da culpa e da pena, a sentença do tribunal.

Algumas propostas de reforma

Entre vós, ilustres Senhores, manifestou-se o desejo de que se introduza pela via legislativa algum arrefecimento do vínculo que liga o juiz aos artigos do Código Penal, já não no sentido da atividade do pretor no direito romano  «adiuvandi, supplendi vel corrigendi iuris civilis gratia»[8], mas no sentido de uma mais livre apreciação dos fatos objetivos para além das normas jurídicas gerais circunscritas pelo poder legislativo; de modo a que também no direito penal se possa aplicar uma certa «analogia iuris», e o poder discricionário do juiz experimente uma ampliação dos limites até agora vigentes. Crê-se que por tal caminho haveria uma notável simplificação das leis penais e uma considerável diminuição do número dos delitos, e conseguir-se-ia fazer com que o povo compreendesse melhor aquilo que o Estado considera como merecedor de pena e por quais motivos.

A tal conceito (concepção), pode-se sem dúvida reconhecer algum fundamento. De qualquer forma, os fins para os quais se fez tal proposta, isto é, a simplificação das normas legais; a valoração não apenas do estrito direito formal, mas também da equidade e do são espontâneo juízo; a maior adequação do direito penal ao sentimento do povo; estes fins – dizemos – não dão lugar a objeções. A dificuldade deveria surgir não tanto pelo aspecto teórico quanto pela forma de sua realização, a qual, por um lado, deveria conservar as garantias do regramento vigente, e, por outro, considerar as novas necessidades e os razoáveis desejos de reforma. O direito canônico oferece exemplos em tal sentido, como se releva nos cân.  2220-2223 do C. I. C.

Variedade e eficácia das penas

Quanto ao que se refere às várias espécies de penas (penas concernentes à honra [a capacidade jurídica], os bens patrimoniais, a liberdade pessoal, o corpo e a vida – as penas corporais não estão compreendidas no direito italiano), nesta Nossa exposição Nos restringiremos a considerá-las apenas enquanto nelas se manifestam a natureza e a finalidade da pena. Como, porém, conforme já assinalamos, alguns não são da mesma opinião a respeito do sentido e do fim da pena, a consequência é que diversa é também a sua atitude quanto às diferentes penas.

Até um certo grau pode ser verdadeiro que a pena do cárcere ou da reclusão, devidamente aplicada, é a mais apta a obter o retorno do culpado à reta ordem e à vida da comunidade. Mas disso não decorre que essa seja a única boa e justa. Vem aqui a propósito o quanto Nós mesmos dissemos em Nosso discurso sobre direito penal internacional de 3 de Outubro de 1953, quanto à teoria da retribuição (cf. Discursos e Radiomensagens, vol.  15, pg. 351-353). A pena retributiva é, embora não por todos, rejeitada por muitos, mesmo se é proposta como não exclusiva, mas junto às penas medicinais. Nós afirmamos, então, que não seria justo rechaçar, em linha de princípio e totalmente, a função da pena retributiva. Enquanto o homem está sobre a terra, também essa pode e deve servir à sua salvação definitiva, quando ele próprio de outra maneira não oponha obstáculo à eficácia salutar da própria pena. Tal eficácia de fato não está de modo algum em oposição à função de equilíbrio e de reintegração da ordem turbada, a qual já indicamos como essencial à pena.

Execução da pena

A inflição de uma pena encontra o seu cumprimento natural com a sua própria execução, assim considerada como a efetiva privação de um bem ou a imposição positiva de um mal, determinadas pela legítima Autoridade como reação ao ato culpável.  É uma conformação não imediatamente da culpa, mas da turbação da ordem jurídica. O ato culpável manifestou na pessoa do réu algum elemento que não está de acordo com o bem comum e com uma ordenada convivência social. Tal elemento deve ser removido do réu. Este processo de remoção é comparável à intervenção médica no organismo, intervenção que pode ser muito dolorosa, especialmente quando se devem atingir não apenas os sintomas, mas a própria causa da doença. O bem do réu, e talvez mais ainda da comunidade, exige que o membro doente torne a ser são. Mas como a cura do enfermo, assim também a aplicação da pena requer um claro diagnóstico não somente sintomático, mas também etiológico, uma terapia adequada ao mal, uma cuidadosa prognose e uma apropriada profilaxia complementar.

As reações do condenado…

Qual caminho o réu deva tomar, indica-se pelo senso objetivo e pela finalidade da pena, bem como pela intenção, no mais das vezes conforme, da Autoridade punidora. É o caminho da consciência do mal feito, que lhe causou a pena; o caminho da aversão e do repúdio do próprio ato; a via do arrependimento, da expiação e da purificação, do propósito eficaz para o futuro. É o caminho que o condenado deve tomar. A questão, porém, é qual via ele tomará de fato. Com o olhar dirigido a tal questão, pode ser útil considerar o sofrimento causado pela pena segundo os diversos aspectos que essa apresenta; o psicológico, o jurídico, o moral e o religioso, embora normalmente estes vários aspectos estejam -na verdade- como unidos em um só.

…no aspecto psicológico…

Psicologicamente, a natureza reage espontaneamente contra o mal concreto da pena, de modo tanto mais veemente quanto mais profundo é o sofrimento que atinge a natureza do homem em geral, ou o temperamento particular do indivíduo. A isso acompanha, também espontaneamente, o dirigir-se e o fixar-se da atenção do réu sobre o ato culpável, causa da pena, cuja conexão é viva diante de seu espírito ou que, em todo caso, faz-se Agora em Primeira linha presente à sua consciência.

Após tais comportamentos mais ou menos involuntários, aparece a reação consciente e deliberada do Eu, centro e fonte de todas as funções pessoais. Esta reação mais alta pode ser uma aceitação voluntária positiva, assim como manifestada nas palavras do bom ladrão na Cruz: «Digna factis recipimus»: «Recebemos aquilo que mereciam as nossas ações» (Luc. 23,41). Pode ser também uma passiva resignação; ou, ao invés, um profundo exacerbamento, um total desmoronamento íntimo; mas também um soberbo endurecimento, que às vezes chega até a um enrijecimento no mal; ou, finalmente, uma impotente revolta interna e externa quase selvagem. Tal reação psicológica toma diversas formas, caso se trate de uma pena durável, ou, ao contrário, de uma pena restrita -quanto ao tempo- a um único momento, mas que, em suas altura e profundidade, ultrapassa toda medida de tempo, como a pena de morte.

…no âmbito jurídico…

Juridicamente, a execução da pena significa a ação efetiva e válida do poder superior e mais forte da comunidade jurídica (ou melhor, de quem detém a autoridade na comunidade jurídica) sobre o violador do direito, que, na sua vontade obstinada e contrária à lei, transgrediu culposamente a ordem jurídica estabelecida, e está agora obrigado a submeter-se às prescrições dessa mesma ordem, – para o maior bem da comunidade e do próprio réu. Com isso, aparece claramente o conceito e a necessidade do direito penal.

De outro lado, a justiça exige que na execução das disposições da lei penal seja evitado todo agravamento das penas sancionadas na sentença, todo arbítrio e toda a dureza, todo maltrato e toda provocação. A Autoridade superior tem o dever de vigiar a execução da pena e de dar-lhe a forma correspondente à sua finalidade, não no rígido cumprimento de suas particulares prescrições e parágrafos, mas em possível adaptação à pessoa sujeita à pena mesma. Já a seriedade e o decoro da autoridade penal e de seu exercício sugerem naturalmente, à Autoridade Pública, reconhecer a sua principal função no contato com a pessoa do réu.  Deverá, pois, julgar segundo as circunstâncias particulares, se os misteres do cargo poderão plenamente ser providos por meio de seus próprios órgãos. No mais das vezes, senão sempre, uma parte deverá ser confiada a outros, especialmente o verdadeiro e próprio cuidado das almas. 

Foi proposto por alguns que seria oportuno fundar uma Congregação religiosa ou um Instituto secular, ao qual seja cometida a assistência psicológica dos encarcerados na mais vasta medida. Sem dúvida, já há muito tempo boas religiosas têm levado um raio de sol e os benefícios da caridade cristã às penitenciárias femininas; e é esta para Nós uma ocasião muito oportuna para dirigir-lhes uma palavra de reconhecimento e de gratidão. Aquela proposta Nos parece digna de toda consideração, e aliás exprimimos a esperança não apenas de que uma fundação similar – juntamente aos órgãos religiosos e eclesiásticos já ativos naquelas casas – deixem operar as energias que surgem pela fé cristã, mas também que todos os resultados seguros provenientes das investigações e das experiências psicológicas, psiquiátricas, pedagógicas e sociológicas sejam usados em benefício dos prisioneiros. Isso naturalmente supõe nos que são chamados a aplicá-las, uma plena formação profissional.

Ninguém que esteja de algum modo familiarizado com a realidade da execução da pena nutrirá utópicas esperanças de êxitos importantes. A boa vontade do condenado, que não se pode obter à força, deve ir ao encontro das influências exteriores. Queira a Providência divina despertá-la e dirigí-la com a sua graça!

…no aspecto moral…

O aspecto ético da execução da pena e do sofrimento que essa acarreta está relacionado com as finalidades e com os princípios que devem determinar as disposições da vontade do condenado.

Sofrer nesta vida terrena significa quase um volver o espírito do exterior ao interior; é um caminho que distancia da superfície e conduz à profundidade. Assim considerado, o sofrer é, para o homem, de um alto valor moral. A sua aceitação voluntária, supondo a reta intenção, é uma obra preciosa. «Patientia opus perfectum habet[9]», escreve o Apóstolo S. Tiago (1, 4). Isso vale também para o sofrimento causado pela pena. Esse sofrimento pode ser um progresso na vida interior. Segundo a sua Própria natureza, é uma reparação e um restabelecimento da ordem social culposamente violada mediante a pessoa e na pessoa do réu que a deseja. A essência do retorno ao bem consiste propriamente não na aceitação voluntária do sofrimento, mas no distanciamento da culpa. A isso pode conduzir o próprio sofrimento, e a conversão da culpa pode, por sua vez, conferir ao sofrimento um valor moral mais alto, e facilitar e elevar a sua eficácia ética.  Assim, o sofrimento pode levar ao heroísmo moral, à paciência heroica e à expiação.

No campo da reação moral, também não faltam, porém, reações contrárias. Frequentemente o valor ético da pena não é sequer conhecido; com frequência, é consciente e deliberadamente rejeitado. O réu não deseja reconhecer nem admitir qualquer culpa sua, não quer de modo algum submeter-se e curvar-se ao bem, não deseja nenhuma expiação ou penitência pelas culpas pessoais.

…no elemento religioso…

E agora uma breve palavra sobre o aspecto religioso do sofrimento causado pela pena.

Toda culpa moral do homem – ainda que cometida materialmente apenas no âmbito das legítimas leis humanas, e atualmente punida pelos homens segundo o direito positivo humano – é sempre também uma culpa perante Deus, e de Deus atrai sobre si um juízo penal.  Não é do interesse da autoridade pública simplesmente não lhe fazer caso. A Sagrada Escritura ensina (Rom. 13, 2-4) que a autoridade humana, no âmbito da sua competência, outra coisa não é, no cumprimento da pena, senão a executora da justiça divina. «Dei enim, minister est, vindex in iram ei, qui malum agit»[10].

Este elemento religioso da execução da pena encontra na pessoa do réu a sua expressão e a sua realização, porquanto ele se humilha sob a mão de Deus que pune por meio dos homens; aceita, pois, o sofrimento como vindo de Deus, oferece-o a Deus como parcial desconto do débito que tem diante dEle. Uma pena assim suportada torna-se para o réu sobre esta terra uma fonte de purificação interior, de plena conversão, de fortalecimento para o futuro, de proteção contra toda recaída. Um sofrimento assim suportado com fé, arrependimento e amor é santificado pelas dores de Cristo e acompanhado pela sua graça. Este sentido religioso e sacro do sofrimento causado pela pena é-nos revelado nas palavras do bom ladrão ao seu companheiro de crucifixão: «Digna factis recipimus»: «Recebemos aquilo que mereciam as nossas ações», e na oração ao agonizante Redentor: «Domine, menzento mei, cum veneris in regnum tuum» «Senhor, recorda-te de mim quando entrares na glória do teu reino»; oração que, posta sobre a balança de Deus, trouxe ao pecador arrependido a garantia do Senhor: «Hodie mecum eris in paradiso» «Hoje estará comigo no paraíso» (Luc. 23, 41-43): praticamente a primeira indulgência plenária, pelo próprio Cristo concedida.

Todos aqueles que caíram sob os golpes da humana justiça, possam sofrer a pena que lhes foi infligida não por pura obrigatoriedade, não sem Deus e sem Cristo, não revoltados contra Deus, não espiritualmente fraturados em sua dor; mas, por meio disso, seja possível abrir-se-lhes o caminho que conduz à santidade!


*Discursos e Radiomensagens de Sua Santitade Pio XII, XVI,  Décimo Sexto ano do Pontificado, 2 de março de 1954 –  1º de março de 1955, pp. 277 – 289 Tipografia Poliglota Vaticana

Original em Italiano disponível em: Alla unione dei giuristi cattolici italiani (5 dicembre 1954) | PIO XII (vatican.va)

Tradução: Daniel Serpentino

Revisão: Alexandre Semedo de Oliveira e Domenico Sturiale


[1] Livremente traduzido como “Estado de culpa e de pena”.

[2] “Não há pena sem lei”

[3] Livremente traduzido como “réu passível de pena”.

[4] “Estado de culpa”

[5] “Estado de pena”

[6] “O que está feito não pode ser desfeito”.

[7] Pena incursa automaticamente pelo crime cometido

[8] “confirmar, suplementar ou corrigir o direito civil”.

[9] “A paciência realiza a obra perfeita”.

[10] “É ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal.”

Breves Apontamentos Para Um Curso de Lógica

                                                    Noções de Lógica do Juízo

                                                          Por Ricardo Dip (texto antigo)

1. – Conceitos de Juízo e de Proposição.

         A lógica das proposições deve apoiar-se na teoria lógica dos juízos. Em rigor, o objeto direto da lógica é o juízo e não a proposição (DE ALEJANDRO, 158). Exatamente porque carecem de uma dimensão peculiar a propósito do juízo, algumas teorias lógicas enfocam a proposição como a expressão de um conteúdo meramente convencional, incidindo em nominalismo, vale dizer, na impossibilidade de considerar a lógica como um caminho e um instrumento para a obtenção da verdade. A importância da teoria dos juízos é tamanha que alguns autores (p.ex., SENTROUL e HESSEN) tratam antes dos juízos e, depois, dos termos. Uma lógica, ao reverso, desocupada dos juízos, que não tenha, enfim, uma séria preocupação apofântica, é uma lógica do irreal, que pouco serve ou nada, pode dizer-se, à razão humana.

         A circunstância de que não possa haver uma lógica apofântica desamparada de uma teoria dos juízos não impede, contudo, que, reconhecida a base indispensável ao estudo das proposições, não se separem o exame destas e a consideração dos juízos, pela boa razão de que a proposição (verbal) é apenas a exteriorização, a figuração lingüística do juízo. Em verdade, o que se atribuir à proposição, a ela se adjudicará em razão de um conteúdo mental (scl.,  a proposição mental, que abrange o juízo).

         Juízo define-se “o ato da inteligência, pelo qual unimos ou separamos duas idéias, por meio da afirmação ou da negação” (SINIBALDI, 28): o ato do intelecto pelo qual se une, afirmando, ou se separa, negando (MARITAIN, 106; TRICOT, 104; GARDEIL, 97; FRÖBES, 98; essa definição corresponde à que ensinava a escolástica: actio intellectus qua componit vel dividit affirmando vel negando).

         Proposição define-se a expressão do juízo (SINIBALDI, 30; TRICOT, 104); designa-se propriamente proposição oral ou verbal a que exprime verbalmente a proposição mental (VAN ACKER, I-129). A expressão do juízo, seja ela mental, seja verbal, designa-se, de modo próprio, enunciação, quando se considera em si mesma, e proposição, se se considera como elemento do raciocínio ou da argumentação (VERNEAUX, 109). Não é incomum, entretanto, que a enunciação e a proposição se tratem como sinônimas (MARITAIN, 122 ss.; especialmente: DE ALEJANDRO, 158, 159). Pode ainda distinguir-se entre o julgamento (ato de julgar) e a proposição mental (que é seu produto), bem como entre a proposição mental ou verbal meramente enunciativa (desacompanhada de assentimento intelectual; objeto projetado de um julgamento) e a proposição iudicata (VAN ACKER, I- 88 ss.; MARITAIN, 108,109).

2. O próprio do julgamento

         A propriedade principal do juízo é a verdade ou a falsidade: o discurso ou enunciado é “aquele em que reside o verdadeiro ou falso” (ARISTÓTELES, 17 a); conceitua-se mesmo a enunciação como a “oração em que se dá o verdadeiro ou o falso” (S.TOMÁS DE AQUINO, Comentário ao Peri Hermeneias, I-VI).

         Assim, conter a verdade ou a falsidade do conhecimento é uma propriedade (omni, soli et semper) do juízo. Efetivamente, a simples apreensão, em que o intelecto não compõe, nem divide, é insuscetível de verdade ou falsidade: na consideração absoluta da essência de uma coisa, o entendimento é deficiente (por não abrangê-la em sua totalidade), mas nele não há falsidade: o equívoco pode ocorrer sobre as circunstâncias que rodeiem a essência ou no estabelecimento de relações, o que implica já composição e divisão (S.TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 85, art. 7º). Por outro lado, embora não faltem freqüentes referências à verdade ou à falsidade no raciocínio ou na argumentação (p.ex.: “…falsum in propositione vel in argumentatione est contrarium vero”, “…per falsum argumentationem abducitur a scientia veritatis”, “…ex parte agumentationis falsae”- S.TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q.89, art. 6º, respondeo), essa verdade ou falsidade está propriamente ou na conclusão ou nas premissas do raciocínio e por analogia se estende a este (outrossim, fala-se em proposição conseqüente em sentido analógico, porque propriamente conseqüente é a argumentação).

         Essa propriedade apofântica das proposições (vale dizer, o serem os enunciados suscetíveis de verdade ou falsidade) importa em que o intelecto possa equivocar-se na composição e na divisão dos conceitos objetivos, salvo no que se refere às proposições que se conhecem de modo imediato, uma vez conhecida a essência dos termos: quanto a essas proposições relativas aos primeiros princípios seja da razão especulativa, seja da razão prática—, a inteligência não pode errar (S.TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 85, art. 7º, respondeo; Ia.-II.æ., q. 92, art. 2º; SANTIAGO RAMíREZ, 88 ss.).

         Acrescente-se que, no campo da teoria do conhecimento prático e no da lógica prática (nela incluindo-se a lógica das normas ou deôntica), tem similar importância a suscetibilidade de as proposições serem verdadeiras ou falsas. Demonstrou-o amplamente KALINOWSKI (Le problème de la verité en morale et en droit; ver ainda: La signification de la logique déontique pour la morale et le droit), lembrando, em outra parte (Sur les syllogismes méréologiques), primeiro: que Aristóteles e S.Tomás de Aquino figuram entre os precursores da lógica deôntica; segundo: que o intelecto é prático por extensão do especulativo (na linguagem tomista: intellectus theoricus per extensionem fit practicus).

3. Os elementos da proposição

         Integra-se a proposição de dois elementos que são sua matéria próxima (termos) e de um elemento que é sua forma própria (cópula). Aqueles —designados como termos proposicionais, termos silogísticos ou extremos— relacionam-se entre si como a matéria e a forma: ao termo que desempenha papel de matéria nesse relacionamento dos extremos, denomina-se sujeito; ao termo que atua nessa relação à maneira de forma, designa-se predicado (e, por isso, se diz que o predicado é o elemento formal remoto da proposição). Diz S.TOMÁS que  “… o predicado se compara com o sujeito como a forma com a matéria”, motivo por que antes ensinara que “… o predicado é a parte principal da enunciação, em razão de ser a parte formal e completiva dela” (Comentário ao Peri Hermeneias, I-VIII). Sujeito é aquilo de que se fala, e predicado, aquilo que se afirma do sujeito (SENTROUL, 24); sujeito, o termo submetido à atribuição de outro: predicado, o termo atribuído a outro (VAN ACKER, II-25); sujeito, uma natureza ou coisa; predicado, uma quidditas abstrata que se atribui ao sujeito (DE ALEJANDRO, 146). Esses conceitos últimos guardam harmonia com o que Aristóteles ensinou (17 a, 25 ss.): uma proposição afirmativa é a declaração de que uma coisa se relaciona a outra; uma enunciação negativa é a declaração de que uma coisa está separada de outra.

         A cópula é o elemento formal da proposição; é o vínculo que a formaliza. Sem a cópula não existe proposição; a cópula é sua qualidade essencial (VAN ACKER, I-90, 91). O que não significa, porém, que a cópula seja sempre manifesta (FRÖBES, 106, 107); p. ex., a proposição “chove” é completa, ainda que deficiente em virtude da morfologia idiomática: a esse respeito, comprovando a completeza lógica dessa proposição, observa DE ALEJANDRO (160, 161) que, também no espanhol (llueve) e no latim (pluit), a proposição “chove” se expressa com um só vocábulo; em alemão, a cópula já é manifesta (embora só se exprima um dos termos silogísticos: es regnet); no inglês, contudo, a proposição se expressa com os dois extremos e a cópula (it is raining).

         Para Aristóteles, a cópula distingue-se dos extremos essencialmente porque apresenta uma significação temporal, deficiente nos termos. Ao defini-los, diz o Estagirita que o termo é um som vocal sem referência ao tempo (16 a), e a cópula, aquilo que junta a sua própria significação a do tempo (16 b). Para DE ALEJANDRO, “la cópula verbal sólo puede constituirse en presente. Cualquier otra relación temporal recaería en el P (= predicado). (…) El lógico no puede manejar fácilmente relaciones de tiempo no presentes, y buscará el medio de hacerlo presente todo; por ejemplo, los justos serán felices. Esta proposición no cabe en Lógica si no se la presencializa: los justos son felices futuros” (160). Com razão, TRICOT (108) observa que houve algum exagero no sublinhar essa significação temporal da cópula, acenando às proposições intemporais (p.ex., “os três ângulos de um triângulo equivalem a dois ângulos retos”).

         Ademais de uma função vinculativa dos extremos (o que se designa por função propriamente copulativa), a cópula apresenta uma função judicativa ou assertiva, que indica uma existência ao menos possível ou ideal (TRICOT, 108). Daí a redução lógica de todos os verbos manifestos nos enunciados ao verbo ser: ARISTÓTELES ensinou, na Metafísica (1017 a), que os predicados variam em sua significação (uns significam a substância, outros, a qualidade, outros ainda, a relação, outros , a ação ou a paixão, outros, o lugar, outros, o tempo), mas a cada uma dessas categorias corresponde um dos sentidos do ser. Por isso mesmo, em rigor a cópula é um predicado, que dele se decompõe nas proposições de tertio adjacente (p.ex.: “Alckmin é Ministro do Supremo Tribunal Federal”), não, contudo, nas de secundo adjacente (v.g., “Alckmin decide”).

4. A extensão dos predicados proposicionais e suas quantificações.

         Os juízos podem enunciar-se desde o ponto de vista da compreensão quanto desde o da extensão. A perspectiva mais comum ou natural (MARITAIN) é a da compreensão: por isso, os lógicos dizem que o predicado se encontra no conteúdo do sujeito (Prædicatum inest Subjecto; MARITAIN, 149). Com efeito, “julgar é, antes de tudo, determinar a compreensão do sujeito” (GARDEIL, 103). Assim, no juízo não se considera, por primeiro, a extensão dos termos, mas sua compreensão (DE ALEJANDRO, 173).

         Se, pois, o predicado é a forma determinante da compreensão do sujeito, o contido no predicado se encontra no sujeito proposicional a que se atribui, de modo que se pode concluir: em todas as proposições, o sujeito é mais compreensivo do que o predicado. Ora, a compreensão e a extensão —propriedades dos termos— relacionam-se de modo inverso. Logo, em todas as proposições, o predicado é mais extenso do que o sujeito. Essa é a regra da extensão do predicado proposicional.

         Conforme sejam, entretanto, as proposições afirmativas ou negativas, diferencia-se nelas a quantidade da compreensão e da extensão de seus predicados.

         Nas proposições afirmativas, ao sujeito se atribui um predicado que se toma segundo a totalidade de sua compreensão mas não segundo a totalidade de sua extensão (FRÖBES, 129: “…de S enuntiatur P secundum totam suam comprehensionem … ; non autem de se secundum totam suam extensionem”). Nas proposições negativas, o predicado separa-se do sujeito segundo a totalidade de sua extensão (FRÖBES, 129: “S est nullum P; S non continetur in P”); quanto à compreensão, o predicado é tomado em parte nas negativas, enquanto suas notas não se tomam em conjunto, mas divisamente (VAN ACKER, I-104; FRÖBES, 129).

         Não há exceções a essas regras (VAN ACKER, II-28, 29; TRICOT, 125 ss.). Lembra MARITAIN (152) que, nos enunciados de identidade formal do sujeito e do predicado (ex.: “todo homem é animal racional”), a extensão do predicado é igual à do sujeito “en raison de la matière, non en raison de la constitution logique ou de la forme de la proposition,  vis propositionis” (cf. loc. cit., nota 33).

5. Classificação das proposições

         De muitos modos podem classificar-se as proposições. Aqui se examinarão algumas de suas divisões possíveis:

a) segundo a quantidade extensiva do sujeito:

– proposições totais (ou universais), em que o sujeito é tomado na totalidade de sua extensão (todo S = P; todo S : P ou nenhum S = P; exs.: “toda a virtude é um hábito”, “nenhuma lei verdadeira é oposta ao direito natural”);

– proposições particulares (ou parciais), em que o sujeito é tomado em parte de sua extensão (algum S = P; algum S : P ou nem todo S = P; exs.: “alguma forma de governo é a república”, “nem toda forma de governo é a república”);

– proposições indeterminadas (ou indeferidas), em que o sujeito não apresenta signo de quantidade (exs. “a ciência é um conhecimento pelas causas”, “a virtude é um hábito”); considera-se a proposição indeterminada como total ou particular segundo o que enuncia (no primeiro caso, p.ex. “o homem é mortal” significa “todo homem é mortal”; no segundo caso, p. ex. “a ciência é o conhecimento comprovado por experiências” significa “alguma ciência < vale dizer:  a ciência experimental> é o conhecimento comprovado por experiências”; “a ciência é demonstrativa da existência de Deus” significa “alguma ciência <equivale a dizer: a teologia racional ou teodicéia> é demonstrativa da existência de Deus”);

– proposições singulares, em que o sujeito é um ente individuado e não um individuum vagum (exs.: “Dínio Garcia é o autor de Introdução à Informática Jurídica”; “Galvão de Sousa é um dos teóricos contemporâneos do direito natural”; “este livro é de lógica”;). Desde Aristóteles, as proposições singulares são assimiladas às totais (17 b; TRICOT, 113);

b) segundo a qualidade essencial ou cópula:

– proposições simples ou categóricas, em que a cópula é atributiva do predicado ao sujeito (VAN ACKER, II-32), e que podem ser afirmativas (ex.: “toda lei é conforme ao direito natural”) ou negativas (ex.: “toda lei contrária ao direito natural não é verdadeira lei”);

– proposições compostas ou hipotéticas, em que, demais da cópula atributiva, há uma cópula supositiva, em que se visa “a um modo eventual de argumentar” (VAN ACKER, II-33); as proposições hipotéticas reúnem e coordenam proposições categóricas (MARITAIN, 127; TRICOT, 142); dividem-se as proposições compostas em formalmente hipotéticas e virtualmente hipotéticas: as primeiras também denominadas de claramente compostas; as segundas, de ocultamente compostas. São formalmente hipotéticas:

– as proposições copulativas, em que há simples coordenação de proposições categóricas, que se ligam pela partícula e (ex.: “o usufruto é direito real, e o comodato é direito obrigacional”); a verdade da copulativa depende da verdade de ambas as categóricas unidas: a falsidade da copulativa deriva da falsidade de ao menos uma das categóricas (TRICOT, 143);

– as proposições condicionais, em que há uma subordinação condicional mas necessárias entre as categóricas unidas (VAN ACKER, I-92); são as condicionais as hipotéticas propriamente ditas (TRICOT, 144), que se unem pela partícula se. O exemplo clássico de PORT-ROYAL é este: “se a alma é espiritual, ela é imortal”. Outros exemplos: “se o homem é racional, todo homem é social” (VAN ACKER); “se o homem é racional, ele é livre” (GARDEIL); “se o que eu penso não acontece, se o que eu resolvo não se cumpre, eu não sou Deus” (BOSSUET). A primeira categórica (conforme ao primeiro exemplo: “se a alma é espiritual”) denomina-se antecedente ou condição; a segunda categórica (id.: “ela é imortal”), conseqüente ou condicionado. Basta para a verdade da proposição condicional que o condicionado seja a conseqüência do antecedente, porque a asserção repousa apenas sobre a relação das proposições (TRICOT, 144); assim, é verdadeira a condicional “se o direito não é aferível pelo bem e pela verdade, então o direito é a vontade dos mais fortes”, embora as categóricas unidas sejam ambas falsas;

– as proposições disjuntivas, em que a cópula (ou … ou) exclui de modo absoluto as categóricas formalmente unidas (exs.: “ou a lei positiva é conforme ao direito natural, ou é corrupção da lei”; “ou haverá um governo honesto, ou não haverá ordem pública” -VAN ACKER; “ou a Terra gira em torno do Sol, ou o Sol em torno da Terra” -PORT-ROYAL; “ou a lei humana é conclusão do direito natural, ou é determinação dele”). A verdade das disjuntivas depende apenas da verdade de uma das categóricas; a falsidade, da falsidade de ambas as categóricas. Nas disjuntivas, as proposições simples não podem ser verdadeiras nem falsas ao mesmo tempo (TRICOT, 143).

– proposições conjuntivas, em que a cópula exclui a simultaneidade das categóricas unidas (exs.: “este direito não pode ser real e obrigacional ao mesmo tempo”; “ninguém pode ser ao mesmo tempo juiz e réu” -VAN ACKER). Nas conjuntivas, as categóricas não podem ser verdadeiras de modo concomitante, mas podem ser ambas simultaneamente falsas (no primeiro exemplo supra, pense-se no direito da personalidade).

São virtualmente hipotéticas (ou ocultamente compostas):

– as proposições exclusivas, em que a cópula indica que o predicado convém apenas a um sujeito (exs.: “só a justiça pode realizar a paz pública” -VAN ACKER; “só o homem é racional” -TRICOT; “entre as virtudes cardeais, só a prudência é intelectual”).

– as proposições exceptivas, em que a cópula abre exceção às categóricas que se unem (exs.: “o homem é livre, exceto no sono e na loucura” -VAN ACKER; “a prioridade registral, no direito brasileiro, é tabular, salvo quanto ao expresso concurso de hipotecas”; “o homem é suscetível de erro ao julgar, salvo quanto às proposições relativas aos primeiros princípios da razão especulativa e da prática”).

– as proposições reduplicativas, em que a cópula (enquanto) repete o sujeito ou lhe acrescenta uma determinação (“A ut A es B”, FRÖBES, 154; exs.: disse CÍCERO que “a autoridade que se aparta da lei não tem valor de autoridade”; o que se deve entender como reduplicativo: “a autoridade que se aparta da lei <enquanto se aparta da lei> não tem valor de autoridade”; “o homem, enquanto homem, é livre” -VAN ACKER; “a natureza humana, enquanto manifestativa da lei eterna, é fonte do direito natural” (ou seja, a natureza humana não é fonte constitutiva da lei natural); “A ut musicus excelens est” -FRÖBES, 154; vale dizer: “… in his activitatibus, cum de aliis eius facultatibus nihil dicatur”; “a justiça legal, enquanto ordena o ato de outras virtudes a seu fim, se denomina virtude geral” -S.TOMÁS DE AQUINO); “a matéria da justiça é a operação exterior, enquanto que esta, ou a coisa que por ela usamos, é proporcionada a outra pessoa a que somos ordenados pela justiça” (S.TOMÁS DE AQUINO);

Outros tipos de proposições compostas: (a) as proposições adversativas (ex.: “A justiça e a temperança são duas das virtudes cardeais, mas delas apenas a primeira é social”), que se reduzem às copulativas; (b) as proposições comparativas (ex.: “a justiça pode ser virtude geral melhor que a temperança e a fortaleza” -S.TOMÁS DE AQUINO) reduzem-se às adversativas ou às copulativas;  (c) as proposições causais (exs.: “o direito é principalmente o justo, porque é o objeto da virtude da justiça”: “o homem é social, porque é racional”), que se reduzem às  copulativas; (d) as proposições relativas (v.g.: “a justiça, que é virtude, é hábito” –VAN ACKER; “a propriedade, que é direito real, é direito absoluto”, redutíveis às causais.

c) segundo a qualidade acidental:

– proposições atributivas (ou de inesse), meramente categóricas (todo S = P, nenhum S = P, algum S = P, nem todo S = P);

– proposições modais, que não apenas atribuem o predicado ao sujeito, mas indicam o modo de sua existência no sujeito (VAN ACKER, I-99), dividem-se em:

 modal de possibilidade (ex.: “é possível que um registro seja anulado”);

modal de impossibilidade (ex.: é impossível que uma hipoteca não possua seqüela”);

modal de contingência (ex.: “é contingente que uma locação se rompa pela venda do imóvel seu objeto);

modal de necessidade (ex.: “é necessário que a lei humana provenha do direito natural, por determinação ou conclusão”).

6. – Propriedades das proposições

         Das propriedades das proposições, aqui apenas se examinarão: (a) a oponibilidade, (b) a subalternação e (c) parte da conversão. Outrossim, limitar-se-á ainda o exame às proposições atributivas.

         Da oposição:

         Oposição (ou oponibilidade) define-se a propriedade correlativa das proposições que, essencialmente, relaciona duas proposições de mesmo sujeito, mesmo predicado e cópula diversa.

         Três são suas espécies:

– a contraditoriedade que, ademais das notas essenciais da oposição em geral, apresenta mudança da quantidade do sujeito. São contraditórias entre si, as proposições do tipo:

“todo S = P” …………… “algum S : P”

“nenhum S = P” …………… “algum S = P”.

         Posta uma proposição (isto é, assentida como verdadeira), dispõe-se sua contraditória: disposta uma proposição (scl., tomada como falsa), põe-se sua contraditória. Por isso, a contraditoriedade designa-se oposição em grau máximo;

– a contrariedade que, além das notas essenciais da oposição genérica, relaciona proposições com sujeito universal ou total. São contrárias entre si as proposições do tipo “todo S = P” e “todo S : P”; posta uma proposição total, dispõe-se sua contrária: disposta uma proposição total, nada se segue quanto a sua contrária; daí que se diga que a contrariedade é oposição de grau médio;

– a subcontrariedade que, juntamente com as notas essenciais de toda oposição, relaciona entre si proposições particulares. São subcontrárias entre si as proposições do tipo: “algum S = P” e “nem todo S = P”. Posta uma proposição particular, nada se segue quanto a sua subcontrária; disposta, porém uma proposição particular, põe-se sua subcontrária. De que resulta chamar-se a subcontrariedade oposição em grau mínimo;

(b) Subalternação (ou subordinação) conceitua-se a propriedade correlativa das proposições que relaciona proposições de mesmo sujeito, mesmo predicado, mesma cópula e diversa quantidade do sujeito. Ocorre, pois, entre totais e particulares de mesma cópula; as totais chamam-se nessa relação subalternantes (ou subordinantes); as particulares, subalternadas (ou subordinadas).

São subalternas entre si as proposições do tipo:

“todo S = P” …………… “algum S = P”

“todo S : P” …………… “algum S : P”

         Posta uma total, põe-se sua subalternada. Posta uma particular, nada se segue quanto a sua subalternante. Disposta uma particular, dispõe-se sua subalternante. Disposta uma total, nada se segue quanto a sua subalternada.

         (c) Conversão define-se a propriedade correlativa das proposições que relaciona proposições com sujeito e predicado transpostos e de mesma cópula. Divide-se em conversão simples, conversão per accidens e conversão por contraposição.

         Na conversão simples, além das notas essenciais de toda conversão, mantém-se a quantidade do sujeito. Dá-se a conversão simples nas proposições totais negativas e nas proposições particulares afirmativas:

original do tipo “todo x : y”

conversa: “todo y : x”

original do tipo “algum x = y”

conversa: “algum y =x”.

         Posta a original, põe-se a conversa simples. Disposta a original, dispõe-se a conversa simples. Posta a conversa simples, põe-se a original. Disposta a conversa simples, dispõe-se a original.

         A conversão per accidens, com as notas genéricas da conversão, apresenta mudança da quantidade do sujeito. Ocorre com as totais afirmativas e com as negativas totais:

original do tipo “todo x = y”

conversa: “algum y = x”

original do tipo “todo x : y”

conversa: “algum y : x”.

         Posta a original, põe-se a conversa per accidens. Disposta a original, nada se segue quanto à conversa per accidens. Posta a conversa per accidens, nada se segue quanto à original. Disposta a conversa per accidens, dispõe-se a original.

         Notas complementares:

– a conversão por contraposição diz respeito às proposições totais afirmativas e particulares negativas, antepondo-se uma negação tanto ao sujeito, quanto ao predicado da conversa (exs.: original: “todo x = y”, conversa: “todo não-y = não-x”; original: “algum x : y”, conversa: “algum não-y : não-x”);

– a reciprocidade é peculiar das afirmativas totais, e a recíproca não mantém o sentido da original (ex.: original, “todo x = y”, conversa: “todo y = x”).

– a inversão também só ocorre com as afirmativas totais que, com afetação de negativa ao sujeito, se transforma em uma negativa  total (ex.: original: “todo x = y”, inversa: “todo não-x : y”); não mantém o sentido da original, mas: posta a original, põe-se a inversa de sua recíproca, e posta a inversa da original, põe-se a recíproca da mesma original. Exemplos: põe-se “toda ciência é conhecimento pelas causas”, logo põe-se a inversa de sua recíproca (scl.: “todo não conhecimento pelas causas não é ciência”): põe-se “todo homem é animal”, logo põe-se a inversa de sua recíproca (isto é, “todo não-animal não é homem”):

– a obversão diz respeito a todos os tipos de proposição atributiva e mantém o sentido da original:

         nas afirmativas, apõem-se duas negativas, uma na cópula, outra no predicado (ex.: original do tipo “todo S = P”, obversa: “todo S : não P”):

         nas negativas, passa-se a negação copulativa para o predicado (ex.: original do tipo “algum S : P”, obversa: “algum S = não- P”).

*****************

Questões e exercícios sugeridos:

  1. Qual o conceito de juízo?
  2. Como se define proposição verbal?
  3. Qual a propriedade fundamental do juízo?
  4. Quais os elementos materiais da proposição?
  5. Qual o elemento formal da proposição?
  6. Enuncie a regra da extensão do predicado proposicional.
  7. Qual a quantidade do predicado nas proposições afirmativas?
  8. Qual a quantidade do predicado nas proposições negativas?
  9. Como se classificam as proposições segundo a quantidade extensiva do sujeito?
  10. Como se dividem, genericamente, as proposições segundo sua qualidade essencial?
  11. Como se dividem, genericamente, as proposições segundo sua qualidade acidental?
  12. Mencione dois tipos de proposição formalmente hipotética.
  13. Relacione duas propriedades das proposições.
  14. Enuncie duas proposições: uma, reduplicativa; outra, condicional.
  15. Dê dois exemplos de proposição: um, do tipo conjuntivo; outro, do tipo copulativo.
  16. Dê dois exemplos de proposição: um, do tipo disjuntivo; outro, do tipo causal.
  17. Posta a proposição “alguma virtude é a justiça”, qual é a contraditória de sua subalternante? A proposição encontrada é verdadeira ou falsa? Por que?
  18. Disposta a proposição “toda prudência é social”, qual é a subcontrária de sua contraditória? A proposição encontrada é verdadeira ou falsa? Por que?
  19. Tomando-se por original a proposição “toda lei é conforme ao direito natural”, enuncie: a) sua contraditória; b) sua contrária; c) sua subalterna; d) sua conversa per accidens.
  20. Pondo-se a mesma proposição referida no exercício nº 19, esclareça sobre a verdade ou a falsidade das proposições encontradas.
  21. Disposta a conversa per accidens de “toda virtude é social”, deve também dispor-se a contraditória dessa original? Por que?
  22. Classifique, segundo o tipo, as proposições seguintes:

“Ou o réu é condenado, ou é absolvido”.

“A vida social não resulta de um contrato (…), porque o dever de fazer o bem aos outros nos obriga antes de todo contrato” (MARCEL CLÉMENT);

“Se a propriedade privada defende a liberdade concreta, então o registro também a defende”.

“O homem é, com efeito, segundo a fórmula de Nietzsche, o único animal que pode fazer promessas (MARCEL DE CORTE);

“A natureza humana, que é receptora da lei eterna, é manifestativa do direito natural”.

“A lei positiva, enquanto conclusão ou determinação da lei natural, obriga em consciência”.

“A prudência e a justiça são as únicas virtudes, entre as distintas cardeais, pelas quais se ordena o homem ao bem de um modo imediato” (PIEPER);

“Tenho direito porque devo” (TOMÁS CASARES);

“Se a liberdade consiste na faculdade de entender e querer, a liberdade perfeita consistirá em entender e querer perfeitamente” (DONOSO CORTÉS).

Bibliografia:

Aristóteles, Organon (Peri Hermeneias) e Metafísica, consultados na edição Vrin, Paris, 1984 e 1981, respectivamente, com tradução de Jean Tricot. Citação conforme ao texto de Bekker.

J.Mª DE ALEJANDRO, La lógica y el Hombre, ed. BAC, Madrid, 1970.

I. FRÖBes, Tractatus Logicae Formalis, ed. Universidade Gregoriana, Roma, 1940.

H.D. GARDEIL, Iniciação à Filosofia de Santo Tomás de Aquino, tradução brasileira por Wanda Figueiredo, ed. Duas Cidades, São Paulo, 1967.

G. KALINOWSKI, Le probléme de la vérite en morale et en droit, ed. Emmanuel Vite, Lyon, 1967, e “La signification de la logique déontique pour la morale et le droit” e “Sur les syllogismes méréologiques”, in Études de logique déontique, ed. Lib. Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1972 (tomo I).

J. MARITAIN, Éléments de philosophie – L’ordre des concepts – Petit logique, ed. Pierre Téqui, Paris, 1933.

SANTIAGO RAMÍREZ, Derecho de Gentes, ed. Studium, Madrid, 1955.

CH. SENTROUL, Tratado de Lógica, ed. Liv. Francisco Alves, São Paulo – Rio de Janeiro, 1912.

T. SINIBALDI, Elementos de Philosophia, ed. França Amado, Coimbra, 1906 (tomo I).

S.TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, ed. BAC, Madrid, e Comentário ao Peri Hermeneias, trad. chilena de Mirko Skarica, ed. Cerro Alegre, Viña del Mar, 1990.

J. TRICOT, Traité de logique formelle, ed. J. Vrin, Paris, 1973.

L.VAN ACKER: I – Introdução à Filosofia Lógica, ed. Acadêmica e Saraiva. São Paulo, 1932.

II – Elementos de Lógica Clássica Formal e Material, ed. Revista da Universidade Católica de São Paulo, 1971.

R. VERNEAUX, Introducción General y Lógica, trad. espanhola de Josef A. Pombo, ed. Herder, Barcelona, 1982.

O novo normal

É difícil resumir o que se passa com uma parcela do povo brasileiro. Em poucos dias, o sentimento de indiferença foi substituído por uma confiança cega nos bons propósitos dos governantes. E o amor pela liberdade confundiu-se com a defesa da censura e da violência estatais.

Estamos presenciando uma mudança radical em nossas vidas. Mudança esta que não queremos, não pedimos e não autorizamos, mas, todavia, caminhamos rapidamente para um mundo incerto e perigoso.

De repente, passamos a achar natural pedir autorização para sair de casa – e ser multado, preso ou violentado em caso de descumprimento dos decretos. Aceitamos que atividade essencial é aquela que o governo diz que é, sem nos importar que, para o homem comum, trabalho algum é dispensável quando o que está em jogo é a sobrevivência.

Em que lugar e época uma pessoa precisou pedir permissão para exercer direitos que lhe são naturais? O que explica esta situação, em que iluminados se sentem com poder suficiente para proibir alguém de sair de casa para encontrar um parente, de cumprimentar um amigo na rua com abraço e aperto de mãos, de tomar um café na padaria, de fazer compras no centro da cidade?

Juridicamente, nada ampara certos decretos emitidos por estados e municípios e decisões judiciais que passaram a ignorar que os direitos fundamentais estão em plena vigência, que as leis federais são imperativas e que os decretos não poderiam extrapolar os limites da lei. Estamos presenciando uma situação em que, a pretexto de proteger o cidadão, atos normativos e decisões de juízes estão usurpando a Constituição e impedindo o exercício de direitos inerentes à própria condição humana – tal como ocorreu na Alemanha, em 1933, em que se permitiu que as leis do Reich pudessem desafiar a Constituição Alemã (que seguiu em vigor). A História nos mostra que momentos excepcionais, mais do que tempos de paz, exigem confiança e aplicação reta da Carta Maior.

Ficamos estarrecidos com um simples palavrão, apavorados com a opinião de especialistas e, quando alguém faz acusação em público, sem pestanejar condenamos o acusado (que, curiosamente, passa a ter o ônus de provar que é inocente).

O estado de histeria paralisou o coração e a razão de alguns brasileiros, que se veem encharcados de notícias trágicas todos os segundos. Todos opinam sobre tudo, têm certeza a respeito de temas delicados, estão inquietos e desesperados. O medo tomou conta – e é esse estado de espírito que mais contribui para tendências autoritárias.

É justamente quando as pessoas estão a um passo de perder a razão e o equilíbrio emocional que uma minoria organizada tira proveito. Afinal, nada importa mais a uma multidão em pânico do que um salvador pronunciando palavras de alento em rede nacional, não é mesmo?

Reflita sobre o efeito psicológico devastador que é sair de casa e saber que um vizinho está pronto para te denunciar aos fiscais pelo simples fato de você tentar trabalhar. E pense também nas acusações (infundadas e repugnantes em todos os sentidos – morais e éticos, inclusive) de que a culpa da atual situação é de quem não tem condições de ficar em casa.

E nem pense em ir à Igreja rezar e conversar com Deus para buscar conforto espiritual. Isto atrapalha os desígnios autoritários. O medo e a impaciência devem ser ininterruptos e permanentes.

Mas se é verdade (e é mesmo) que a coragem não é o oposto do medo, e sim o senso de um dever a cumprir apesar do risco real de que algo pior possa acontecer, será que podemos aventar a hipótese de que sofremos apenas de um medo momentâneo e passageiro? Ou: superada esta fase, será que seguiremos normalmente com a nossa vida na certeza de que nada pior ocorrerá daqui para frente? Definitivamente, não.

O medo não é a causa do mal presente. É uma consequência visível, a ponta do iceberg que esconde algo muito mais profundo: a nossa completa alienação da realidade – que traz consigo o nosso (triste) desprezo pela natureza humana.

Não discutimos o mundo tal como ele se nos apresenta, mas como nós gostaríamos que ele fosse. E esse mundo pensado, por não existir, significa apenas uma ideia, um desejo de como a vida poderia ser. Isso explica por que boa parte da população dá valor a discursos otimistas, que provocam nada mais que boas sensações, enquanto apenas um grupo reduzido de pessoas consegue, bravamente, buscar algum sentido à vida, um propósito transcendente que de alguma maneira possa aliviar o sofrimento.

Consequência disto é que encontramos divagações utópicas em todos os cantos e níveis sociais. Formamos nossa opinião e depois buscamos os argumentos naquilo que chamamos de ciência. Não lemos, não somos capazes de interpretar um texto e sequer compreendemos a nossa própria linguagem.

Convenhamos: nesta situação, não admira que alguns tenham trocado (ou negociado) a vida, a liberdade e a própria dignidade por lives em casa, ioga na sala e disseminação gratuita da propaganda mundial “ficaemcasa”.

A título de curiosidade, o filósofo Eric Voegelin já dizia que a ascensão de Hitler só foi possível porque boa parte dos alemães à época (década de 1930) era extraordinariamente estúpida e se encontrava em situação de apodrecimento intelectual e ético; e nos ensina que os nazistas, para justificar suas maluquices, se utilizaram da ciência (a seleção natural, de Darwin, p. ex., ajudou na tese da raça superior ariana) e da literatura (renascentista e moderna), aliadas com discurso público e propaganda que prometiam salvar o país do caos social e econômico.

Se o filósofo estiver certo, temos uma noção do que pode resultar da combinação de estupidez e alienação do povo com projeto de dominação e poder. A encruzilhada que estamos exige uma iniciativa: podemos lutar o bom combate ou cruzar os braços.

Por ora, apenas uma coisa é certa: se a estupidez não é, em si mesma, criminosa, ela serviu bem ao propósito de desumanizar o povo e mostrar a uma minoria autoritária que bastam simples atos para tolher nossa liberdade do dia para a noite – ainda que paulatinamente.  

Augusto Bruno Mandelli – Juiz de Direito

Publicado no jornal Gazeta do Povo em 30/06/2.020

A CRUZADA ESTÁ CONVOCADA

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Sim, está convocada uma Cruzada. A partir do momento em que membros do Congresso Nacional apresentaram projetos de lei e aprovaram, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, duas Propostas de Emenda à Constituição visando aperfeiçoar o sistema penal, é sinal que algo maior está por vir (e que 2020 promete).

De fato, quando vemos uma minoria esmagadora de criminosos colocar toda a sociedade de joelhos, é porque algo precisa mesmo ser feito.

Devemos deixar claro que o fim do Direito Penal é “(…) a defesa da sociedade, pela proteção de bens jurídicos fundamentais, como a vida humana, a integridade corporal do homem, a honra, o patrimônio, a segurança da família, a paz pública, etc. (…)” (Aníbal Bruno, Direito Penal – Tomo 1º, ed. Forense, p. 14). Direito Penal que não cumpre a contento esta finalidade é pura demagogia.

É curioso como a população em geral desconhece as leis penais e o modo como elas são interpretadas pelo Poder Judiciário. Esses aspectos são omitidos dela, talvez no intuito mesmo de conservar e avançar a agenda que faz do Direito Penal um instrumento eficaz de engenharia social.

A combinação de leis impotentes com interpretações jurisprudenciais laxistas, ambas carregadas de ideologia, fez com que a pena criminal perdesse por completo seu caráter punitivo, de retribuição ao agente pelo mal causado – e tanto é assim que por aqui só se fala em políticas públicas de ressocialização de criminosos, transferindo para a sociedade o ônus de pagar pelo crime praticado contra ela própria.

O Brasil, também neste tema, virou o país das promessas frustradas. É o lugar onde, quando a ideologia falha, a solução é sempre aumentar a dose do mesmo (perverso) remédio. Somos obrigados a aturar mentes brilhantes cogitarem a descriminalização do uso de drogas, mesmo sabendo que os usuários, além de se autodestruírem, destroem famílias, motivam a prática de outros crimes e garantem o sucesso financeiro de traficantes e organizações criminosas.

Vivemos no país dos reincidentes, dos bandidos que praticam três, cinco ou quinze crimes mas não podem ser presos porque o tráfico e o furto são crimes sem violência. Porque o roubo, por si só, não apresenta gravidade concreta. E o pequeno traficante (coitadinho…), é só um zé mané inofensivo que não merece ir para a prisão (mas, de tão inofensivo, hoje convivemos com um exército de pequenos traficantes nas ruas).

Enfim, enquanto o delinquente está solto e rindo dos policiais todos os dias nas biqueiras, o cidadão comum sente medo de sair de casa; as famílias, de terem suas casas assaltadas; os pais, de deixarem seus filhos na escola sabendo que um traficante está ali na porta para ampliar seu comércio espúrio.

Mas a vontade do povo de ver bandido atrás das grades parece não valer muita coisa, afinal, o povo é analfabeto, é caipira, é conservador, é fanático religioso (como pode, no mundo moderno, alguém ser contra o aborto?) e não entende nada desse assunto. O povo, na nossa democracia, só serve para votar. Ponto.

Na cabeça de alguns iluminados a vida no crime não é uma opção individual, mas uma via de mão única imposta pelas circunstâncias da vida à pessoa que não teve acesso à educação (sempre a educação…). Construir presídios para tirar criminosos das ruas e evitar rebeliões? Jamais! Punir bandido com rigor? De jeito nenhum! O pobre (que não tem condições de morar em luxuosos condomínios ou de contratar seguranças armados até os dentes) que se vire para conviver com malfeitores em seus bairros…

De tanto sermos massacrados por discursos vazios e justificativas politicamente corretas (porém, idiotas), é difícil ignorar que a nossa forma de enxergar a criminalidade foi gravemente corrompida.

Mas felizmente essa triste vocação brasileira para a desgraça pode estar ameaçada.

Com a apresentação de projetos de lei e aprovação das emendas constitucionais que pretendem alterar o regime processual penal, corajosos e dedicados membros do Congresso Nacional mexeram em um vespeiro e convocaram o povo para uma guerra, uma guerra que não é apenas contra a impunidade e contra a corrupção (alvos abstratos que faz da própria guerra contra elas inútil), mas contra algo muito maior.

É uma guerra justa contra falsas ideologias, contra narrativas artificiais. É uma guerra do mundo real contra teorias abstratas. Do homem concreto contra o intelectual da academia.

Sabemos a resistência que projetos de endurecimento da lei penal enfrentam nas Casas Legislativas. Mas é obrigação de todos apoiar e incentivar essas iniciativas e lutar bravamente pela aprovação delas. A pressão popular, aqui, é essencial. Sem isso, a chance de êxito é zero.

Atualmente, o povo paga a conta por decisões irresponsáveis tomadas por autoridades que o ignora. É preciso dar ao povo a chance de se responsabilizar pelas suas próprias decisões.

AUGUSTO BRUNO MANDELLI

Juiz de Direito do Estado de São Paulo

 

Nota de Repúdio à Lei do Abuso de Autoridade

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O MMJ – MOVIMENTO DE MAGISTRADOS PARA A JUSTIÇA – vem a público manifestar repúdio ao Projeto de Lei de Abuso de Autoridade aprovado em 14/08/19 na Câmara dos Deputados, porque referido projeto em sua essência atenta contra a própria natureza da atividade jurisdicional, permitindo que JUÍZES sejam penalmente responsáveis por suas convicções, esvaziando assim a atividade jurisdicional em clara violação à cláusula pétrea da independência judicial, fornecendo por conseguinte instrumental de retaliação contra Juízes, Promotores, Policiais e Fiscais em benefício de pessoas acusadas de crimes. O MMJ pugna pelo veto total do projeto de lei em comento e o faz dirigindo-se respeitosamente ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, o qual veio a ser eleito tendo como bandeira o combate à corrupção, ao crime, aos criminosos e delinquentes, únicos beneficiários – na visão do MMJ – do projeto de lei.

 

São Paulo, 21 de Agosto de 2019.

 

M M J – MOVIMENTO DE MAGISTRADOS PARA A JUSTIÇA

 

PROTÁGORAS E O GLAMOROSO CASO DA PRISÃO DO GUARDA SÓCRATES

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Desembargador Ricardo Dip.

 

  1. Protágoras sempre teve suas esquisitices, manias que toda gente parecia passar por alto quando ele, com ares de compunção, dizia que não se ligasse, “ele era assim mesmo”. (Isto parece uma chave ótima para escusar a insensatez mais estúpida que se imagine de qualquer conduta: “ele é assim mesmo, não ligue…”. Em outras palavras: desculpe-se ele sempre).
  1. Protágoras envolveu-se outro dia num acidente de trânsito. Coisa meio séria. A quase todos convenceu de que, embriagado, conduzia seu automóvel e em elevada velocidade porque “ele era assim mesmo”. Muitos se comoveram com o destino de quem era assim mesmo; todavia, Protágoras não persuadiu um burocrata de turno que, na repartição de trânsito, com uma gravata meio gasta, manteve não só a pesada multa que se impôs (e o Protágoras, sendo assim mesmo, não tolera que lhe tirem centavo algum dos bolsos), mas também a suspensão do direito de dirigir por longos 12 meses.
  1. Protágoras é assim mesmo. Não se deu por vencido. Com direito a dirigir ou sem ele, pôs-se com seu automóvel no trânsito caótico dos burocratas, e deu de cara com um tal de guarda Sócrates. Guarda sensato, mas que pergunta demais. E tão demais que perguntou sobre a carteira de habilitação do Protágoras. Mas este, já se sabe, é assim mesmo e não hesitou em dizer que “para conduzir bicicleta não se exige habilitação”. O guarda Sócrates espantou-se um pouco e seguiu sempre a perguntar: “Mas este automóvel, tendo quatro rodas, é bicicleta?”.
  1. Protágoras não hesitou (ele é assim mesmo): “Isto é uma bicicleta e não um automóvel, porque só assim eu serei feliz. E digo mais: se posso ser mulher, ou ser nem-homem-nem-mulher, por que raios isto que fabricantes disseram ser automóvel não poderia ser, para mim, uma simples bicicleta?”. Prosseguiu aquele gênio lógico que é assim mesmo: “Se a natureza que Deus criou pode ser alterada pela simples imaginação ou o sentimento dos homens, por que não o poderia ser aquilo que estes homens produziram?”.
  1. O guarda Sócrates está preso por afronta ao direito à felicidade. (Não se sabe ao certo por que não o libertaram na audiência de custódia).

UM SALTO PARA O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE -parte I ​​​​​​​

UM SALTO PARA O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE -parte I
​​​​​​​Des. Ricardo Dip

1.​Persevera em muitos juristas de nossos tempos a convicção penalística de que haja um critério fundamental, reportado correntiamente à Magna charta de João Sem Terra, qual seja, o princípio da legalidade penal.

​Tem-se de pensar, contudo, que, a despeito dos erros de referir a origem do critério legalidade penal ao Medievo inglês e a de sua doutrina à via pœnalis modernorum (designadamente a Anselm von Feuerbach), esse critério e uma doutrina adequada condizente ꟷque é a da natureza das coisasꟷ conflitam por manifesto com as características centrais da pós-modernidade:

​-​por que é, de fato, que o direito penal haveria de isentar-se da síncrese dos opostos em que consiste, essencialmente, a pós-modernidade?

​-​Em outras palavras: por que o direito penal deste século se imunizaria da aditividade indistinta dos opostos que configura o largo e difuso relativismo (às vezes, performativo) pós-moderno?

2.​Foi em 1188, na igreja de San Isidoro, em León, que, reunidas as Cortes com representantes de Oviedo, Astorga, Salamanca, Zamora, Ciudad Rodrigo e, talvez, ainda, Benavente, Toro e Ledesma, Dom Alfonso IX, rei de León e da Galízia, jurou que ninguém fosse submetido a juízo “a não ser pelas causas pelas quais deviam ir segundo seus forais” ꟷ nisi pro his causis pro quibus debent ire secundum foros suos

​Eis aí, pois, com esta Carta magna leonesa, a possível primeira manifestação histórica do princípio da legalidade penal, anterior de quase três décadas à Magna charta de João Sem Terra (1215).

3.​De resto, no plano doutrinário, já a ideia da legalidade (também a penal) se afirmara por Aristóteles e abonara-se por S.Tomás de Aquino, na Suma theologiæ:

​- ​“Como diz Aristóteles [I Ret., cap. I], é melhor que tudo seja regulado por lei do que entregue ao arbítrio do juiz” (Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad2um);

​-​“… como a justiça animada do juiz não se se encontra em muitos e é flexível, necessário é, sempre que for -​-​“como a justiça animada do juiz não se encontra em muitos e é flexível, necessário é, sempre que for possível, determine a lei como se deva julgar, deixando margem pouquíssima ao arbítrio humano” (Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad2um);

​- ​“… é necessário que o juízo se faça segundo a lei escrita, pois do outro modo o juízo se apartaria já do justo natural, já do justo positivo” (IIa.-IIæ., q. 60, art. 5, respondeo).

4.​ Ainda que o seja por menos louváveis motivos, é fato que esse critério de afeição à legalidade foi acolhido pelos modernos, desdobrando-se, p.ex., tal o fez von Feuerbach, em três fórmulas ou “princípios derivados”:

​- nulla pœna sine lege,

​- nulla pœna sine crimine,

​- nullum crimen sine pœna legali,

depois explicitadas para reconhecer-se que a lei penal deve ser estrita, escrita, certa e prévia:

​-​lei estrita: nullum crimen, nulla pœna sine lege stricta;
​- ​lei escrita: nullum crimen, nulla pœna sine lege scripta;
​ -​ lei certa: nullum crimen, nulla pœna sine lege certa; ​
​ – ​ lei prévia: nullum crimen, nulla pœna sine lege prævia.

​O direito penal pós-moderno parece encaminhar-se por outros caminhos.

​Prosseguiremos.

UM SALTO PARA O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE -parte I ​​​​​​​

UM SALTO PARA O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE -parte I
​​​​​​​Des. Ricardo Dip

1.​Persevera em muitos juristas de nossos tempos a convicção penalística de que haja um critério fundamental, reportado correntiamente à Magna charta de João Sem Terra, qual seja, o princípio da legalidade penal.

​Tem-se de pensar, contudo, que, a despeito dos erros de referir a origem do critério legalidade penal ao Medievo inglês e a de sua doutrina à via pœnalis modernorum (designadamente a Anselm von Feuerbach), esse critério e uma doutrina adequada condizente ꟷque é a da natureza das coisasꟷ conflitam por manifesto com as características centrais da pós-modernidade:

​-​por que é, de fato, que o direito penal haveria de isentar-se da síncrese dos opostos em que consiste, essencialmente, a pós-modernidade?

​-​Em outras palavras: por que o direito penal deste século se imunizaria da aditividade indistinta dos opostos que configura o largo e difuso relativismo (às vezes, performativo) pós-moderno?

2.​Foi em 1188, na igreja de San Isidoro, em León, que, reunidas as Cortes com representantes de Oviedo, Astorga, Salamanca, Zamora, Ciudad Rodrigo e, talvez, ainda, Benavente, Toro e Ledesma, Dom Alfonso IX, rei de León e da Galízia, jurou que ninguém fosse submetido a juízo “a não ser pelas causas pelas quais deviam ir segundo seus forais” ꟷ nisi pro his causis pro quibus debent ire secundum foros suos

​Eis aí, pois, com esta Carta magna leonesa, a possível primeira manifestação histórica do princípio da legalidade penal, anterior de quase três décadas à Magna charta de João Sem Terra (1215).

3.​De resto, no plano doutrinário, já a ideia da legalidade (também a penal) se afirmara por Aristóteles e abonara-se por S.Tomás de Aquino, na Suma theologiæ:

​- ​“Como diz Aristóteles [I Ret., cap. I], é melhor que tudo seja regulado por lei do que entregue ao arbítrio do juiz” (Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad2um);

​-​“… como a justiça animada do juiz não se se encontra em muitos e é flexível, necessário é, sempre que for -​-​“como a justiça animada do juiz não se encontra em muitos e é flexível, necessário é, sempre que for possível, determine a lei como se deva julgar, deixando margem pouquíssima ao arbítrio humano” (Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad2um);

​- ​“… é necessário que o juízo se faça segundo a lei escrita, pois do outro modo o juízo se apartaria já do justo natural, já do justo positivo” (IIa.-IIæ., q. 60, art. 5, respondeo).

4.​ Ainda que o seja por menos louváveis motivos, é fato que esse critério de afeição à legalidade foi acolhido pelos modernos, desdobrando-se, p.ex., tal o fez von Feuerbach, em três fórmulas ou “princípios derivados”:

​- nulla pœna sine lege,

​- nulla pœna sine crimine,

​- nullum crimen sine pœna legali,

depois explicitadas para reconhecer-se que a lei penal deve ser estrita, escrita, certa e prévia:

​-​lei estrita: nullum crimen, nulla pœna sine lege stricta;
​- ​lei escrita: nullum crimen, nulla pœna sine lege scripta;
​ -​ lei certa: nullum crimen, nulla pœna sine lege certa; ​
​ – ​ lei prévia: nullum crimen, nulla pœna sine lege prævia.

​O direito penal pós-moderno parece encaminhar-se por outros caminhos.

​Prosseguiremos.