A poucos quarteirões de minha casa existe um supermercado de renome. Localizado numa rotatória, e em razão das dificuldades de tráfego, a autoridade competente tomou a resolução de proibir o estacionamento de veículos na frente do estabelecimento, em uma faixa de cerca de quinze metros, devidamente sinalizada com tinta amarela e uma placa presa ao poste logo acima.
Debalde. Para minha indignação, sempre que passo pelo local deparo-me com a presença de automóveis estacionados na área proibida, sob a placa que, a esta altura um mero e inútil adorno, insiste em ser ignorada.
Decerto, com as dificuldades atuais de se encontrar local na via pública para estacionar, e desprovidos de tempo e paciência para disputar uma vaga no estacionamento interno do supermercado, poucas pessoas resistem à tentação de parar seu automóvel naquele espaço privilegiado, bem em frente à porta de entrada da loja.
Porém, olvida-se que tal atitude, embora, para muitos, sem maior gravidade, evidencia algo muito mais sério: a dificuldade de grande parte da população – e não raro, do próprio Estado – de cumprir regras.
Com a mesma desenvoltura com que se descumpre regra trivial de trânsito, deixa-se de cumprir um contrato, ou pagar uma dívida, ou, de modo geral, de respeitar o direito alheio. E, não raro, e cada vez mais, tais questões terminam por desaguar no Poder Judiciário, que, no país todo, já conta com aproximadamente cem milhões de processos em andamento.
Muito se discute sobre as causas da chamada morosidade da Justiça. Várias são as hipóteses (sempre) levantadas: grande quantidade de recursos, excesso de formalismo, falta de juízes, investimentos insuficientes no setor etc.
Como resultado: a necessidade de alterar a legislação processual, a criação de metas pelo Conselho Nacional da Justiça, a tentativa de se difundir, a fórceps, a cultura da conciliação, e outras medidas pontuais que, se pouco contribuem para a solução do problema, ao menos transmite um sopro de esperança à opinião pública sedenta por rapidez na solução dos conflitos.
Não é o intuito deste pequeno artigo analisar e tecer críticas a cada medida adotada nos últimos anos para combater a morosidade do Poder Judiciário – o que certamente terá lugar apropriado neste blog.
O que se busca é tentar contribuir com o debate, apresentando o que está na raiz do problema, a causa primeira de todos os males que se atribuem, muitas vezes injustamente, ao Poder Judiciário: antes de tudo, está a decadência moral da sociedade, que leva à resistência e à dificuldade de se cumprirem as regras necessárias à boa convivência. Ou, de forma mais simples: cumprir a lei.
Houve tempo em que ser parte em processo judicial era algo desonroso, em regra, impensável a um pai de família. (Ainda hoje, para os mais velhos, ir ao Fórum depor como simples testemunha é motivo de apreensão, como muitos nos confidenciam.)
Houve tempo em que a palavra empenhada valia mais que qualquer documento; que a caderneta da venda representava mais que qualquer nota promissória; que descumprir um acordo era uma desonra e voltar atrás no combinado (hoje conhecido como “discutir ou rever o contrato”) era impensável. “O combinado nunca era caro”, dizem nossos pais.
Houve tempo em que se respeitava a autoridade. A começar pelo pai, passando pelo professor, o padre, o policial e, somente em casos extremamente excepcionais, chegava-se ao juiz. O Poder Judiciário cuidava de coisas mais graves, como, por exemplo, os poucos crimes que porventura eram praticados.
Hoje, o Poder Judiciário se transformou em um grande balcão de cobranças de dívidas e palco de discussões de contratos, de particulares e entes públicos. Além de sua finalidade precípua de dizer o direito, o juiz é conciliador, mediador, psicólogo, assistente social, além de dedicar parte de seu escasso tempo a preencher planilhas e preocupar-se com metas de julgamento, como se cada processo não passasse de um número. As unidades judiciárias transformaram-se em verdadeiras linhas de produção de decisões, que, se nem sempre fazem justiça, ao menos atendem às metas.
Em suma, a causa primeira das maiores mazelas do Judiciário – e a morosidade, que também favorece a grande parcela, diga-se, é apenas uma delas – é, sem dúvida, a decadência moral da sociedade. Enquanto não retomarmos os valores que devem reger a boa convivência social, a ética, os princípios que nos proíbem de lesar o próximo e nos impõem o dever de fazer o bem, enquanto isso não for o norte de nossas condutas, não haverá reforma legislativa ou metas de produtividade que lograrão solucionar os problemas que afligem o Poder Judiciário.
NEMÉRCIO RODRIGUES MARQUES – Juiz de Direito no Estado de São Paulo.