
Por diversos motivos, resolvi empreender, nos últimos dias, a leitura do famoso livro The Dialetic of Sex: The Case for Feminist Revolution, de Shulamith Firestone, uma das vedetes intelectuais do feminismo de segunda onda (e um dos elos da corrente que nos conduziu à chamada ideologia de gênero), mantendo, à medida do possível, um olhar atento para identificar as eventuais influências da autora nos rumos do direito pátrio (falo um pouco mais sobre isso ao fim).
O livro é um colosso! Não tanto pelo conteúdo, mas pelo tamanho das pretensões da autora. Jamais vi nada parecido! Ela se propõe a uma crítica feroz e abrangente à Civilização Ocidental sem se dar ao trabalho de tentar minimamente assimilar e refutar a contribuição dos principais pensadores cujas ideias, para o bem ou para o mal, deram origem a ela: não se fala de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Bento, Alcuíno, Santo Tomás, Duns Scott, etc.. Nenhuma palavra sequer para Kant ou Descartes! Os pensadores por ela tratados (Marx, Engels, Freud, Fromm, Simone de Beauvoir, etc.), toma-os por assimilados e transcendidos. Julga tratar com desenvoltura a história e a pré-história humanas, as artes, a ciência, a psicologia e a tecnologia. Nada escapou à visão de seus óculos redondos e desproporcionalmente grandes. E tudo isso quando a menina ainda tinha 25 anos de idade!
Sei que mulheres são vaidosas; mas tamanha vaidade intelectual numa delas é coisa que eu jamais havia visto.
A Srª Firestone parte do pressuposto de que, em essência, Marx e Engels descobriram o mecanismo correto e que explica os rumos da história humana (o que, a rigor, já bastaria para abandonarmos a leitura do livro já nas primeiras linhas). Em suma, ambos viam que a história se movia na linha da dialética de luta de classes; e, em seu estágio de então, a luta se dava entre a burguesia, de um lado, e o proletariado, de outro. Caberia a esse último fazer uma revolução contra a burguesia, apropriando-se dos meios de produção (supostamente todos nas mãos dela), instaurando uma ditadura do proletariado ao fim da qual, quase que magicamente, adviria um mundo sem classes. E, não havendo classes, não há mais luta de classes; não havendo luta de classes, não há mais a tensão dialética que conduz a história, razão pela qual passaríamos a viver num paraíso terrestre perpétuo, in saecula saeculorum.
Para Engels (no famoso libro Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada), houve um período da história em que os homens viviam em tribos, em completa promiscuidade sexual, sem tabus como a proibição do incesto e sem ciúmes entre homens e mulheres. Foi a maravilhosa época do matriarcado, na qual, ao menos a princípio, vivia-se em comunidades comunistas. Os filhos não tinham pais conhecidos e todas as crianças viviam sob a tutela da tribo. Com o tempo, vindo os homens a fixarem-se na terra, começou o acúmulo de riquezas, acúmulo esse que, pela divisão de trabalho vigente no matriarcado, naturalmente era apropriado pelo homem, enquanto que os objetos domésticos e os filhos eram da mulher, mesmo porque o pai era incerto. Surgiu daí a necessidade de que os machos transmitissem suas propriedades acumuladas para os seus filhos, coisa que somente seria possível se, ao final das contas, soubessem quais eram os seus e quais eram os que determinada mulher teve com outro. É então que o homem, num golpe de maldade inimaginável, para garantir a exclusividade sexual de determinada mulher, passa a tomá-la para si e a prendê-la no lar. A família monogâmica assim constituída é a primeira forma de opressão e nela se dá o primeiro (e o mais fundamental) conflito de classes da humanidade: aquele existente entre esposo e esposa.
Shulamith, contudo, se estava convencida da veracidade da dialética para explicar os mecanismos da história, nem de longe compra a ideia do matriarcado tal qual descrita por Engels. Sendo dois representantes do sexo masculino, muito embora tenham acertado ao posicionar a opressão da mulher pelo homem como a mais antiga que se conhece, ambos foram incapazes de entender qual o verdadeiro motivo por trás dela: não um interesse de classe, mas um dado da biologia. O homem oprime a mulher não propriamente porque tenha interesses antagônicos ao dela, mas porque a natureza impôs, sobre o sexo feminino, o encargo de gerar, parir, amamentar e criar filhos. É ela mesma quem o diz: “ao contrário das classes econômicas, a divisão de sexos deriva diretamente de um dado biológico: homens e mulheres foram criados diferentes e não iguais”.[1] Marx e Engels não tiveram a coragem intelectual para admitir esse fato, pois ter-lhes-ia parecido que tal admissão (e o consequente giro ideológico acerca do fio condutor da revolução: não mais uma luta de classes, mas uma de sexos) seria ir um bocadinho longe demais. Mas Shulamith é mais corajosa que os dois barbudos; não teme uma revolução radical. Ao contrário, “houvesse uma palavra ainda mais abrangente do que revolução, nós a adotaríamos”[2]
Tendo-se isso em vista, “pequenos” ajustes se fazem necessários à dialética de Marx e Engels. O esquema deve ser alterado: ao invés de “burguesia”, o “homem” é o opressor; ao invés do “proletariado”, a massa oprimida é composta de “mulheres”; ao invés de “meios de produção”, a revolução deve mirar a apropriação do “corpo feminino”. Assim, mantendo-se a essência da fórmula mágica marxista para um mundo maravilhoso, Shulamith apresenta a sua própria, segundo ela mais certeira e praticamente infalível: uma revolução na qual a mulher se volta contra o homem, toma posse definitiva de seu próprio corpo, assume o controle da fertilidade humana (numa espécie de ditadura do feminismo), sendo que, ao cabo do processo, instaurar-se-á um mundo novo, no qual não haverá mais diferenças de sexos e, não havendo, não haverá mais opressões de nenhum tipo.
Para que seu plano seja bem sucedido, Shulamith conclama cada mulher a juntar-se à revolução, pois “uma revolucionária em cada cama é garantia de fazer tremer o status quo.”[3] Para ela, sempre houve mulheres revolucionárias, mas faltava-lhes uma certa articulação (aparentemente, a história estava apenas esperando pelo advento da Srª Firestone para atingir seu clímax final!). Por exemplo, as bruxas da Idade Média não eram senão mulheres em plena rebeldia contra a Igreja patriarcal, que teria matado nada mais nada menos do que oito milhões (!) delas. Dan Brown, em seu infame “O Código da Vinci”, havia acusado a Igreja de executar quatro milhões de hereges durante o mesmo período, provavelmente tentando atingir uma marca imbatível; mal sabia ele que, décadas antes, Shulamith já estabelecera um recorde que fará dela a vencedora para sempre no ranking dos exageros: oito milhões! E só de bruxas! Imagine-se, então, o total da mortandade…
Para Shulamith, as mulheres nada têm a perder não ser a sua biologia. Ser mulher é um encargo que a natureza impôs a metade dos indivíduos da espécie humana e chegou a hora de alterar esse estado de coisas. Como dito por ela mesma: “Deixe-me então dizer sem rodeios: a gravidez é coisa bárbara”[4], e, no fundo, não é mais admissível que ainda se tolere que mulheres engravidem, gestem, deem à luz (“dar a luz fere”)[5].
Da mesma forma, as crianças são, dentro do núcleo familiar, oprimidas e exploradas pelo homem. Todos, meninos e meninas, sofrem opressão até determinada idade, quando, então, o pai separa os meninos para introduzi-los no excitante e divertido mundo masculino, enquanto que as pobres meninas serão deixadas na opressão perpétua ao lado de suas mães. Não haverá verdadeiro paraíso terrestre enquanto a revolução feminista não abolir seja a diferença de sexos, seja a própria noção de infância. E, abolindo a ambas, a família tradicional, essa verdadeira jaula pela qual todos passamos um dia (mas da qual somente homens adultos se aproveitam) ruirá sem deixar saudade.
Mas, qual a opção ao modelo atual?
Shulamith afirma ser uma tática de reacionários exigir dos pensadores comunistas (como ela própria) que deem uma alternativa à sociedade que querem destruir. Para ela, isso é pura desonestidade intelectual, uma armadilha retórica na qual não se deve cair, pois um ideólogo crítico à civilização ocidental não deveria se preocupar com miudezas como essas. As alternativas surgiriam naturalmente das ruínas do modelo atual destruído (donde se conclui que os comunistas tendem a acreditar mais em milagres do que qualquer crente devoto). Mas, sendo ela quem é, em se tratando da grande Mademoiselle Firestone, aceitou o desafio reacionário e arriscou-se a esboçar o seu sonho utópico, sua sociedade ideal da qual todo sofrimento será abolido.
No lugar da família, Shulamith propõe um novo modelo, que ela chama de “household”, no qual pessoas de todas as idades participariam por meio de um contrato e nela permaneceriam apenas enquanto lhe fosse interessante (o que aconteceria com aqueles não aceitos em nenhuma unidade de household é coisa que parece não preocupar minimamente a Srª Firestone). A estrutura proposta lembra muito as chamadas repúblicas de estudantes, não somente pelos vínculos meramente contratuais que unem as pessoas que ali moram apenas por alguns anos, mas pela situação de perpétua promiscuidade em que elas viveriam. Respirem fundo, que Shulamith vai falar: (g.n.)
“É possível que a criança possa formar seus primeiros relacionamentos físicos próximos com pessoas de seu próprio tamanho, por pura conveniência física, assim como homens e mulheres, sendo todos iguais, podem preferir um ao outro em relação àqueles do mesmo sexo por puro apetite físico. Mas se não, se ela escolher relacionar-se sexualmente com adultos, mesmo que escolha sua própria mãe genética, não haveria razões a priori para que se rejeitassem seus avanços sexuais, porque o tabu do incesto teria perdido sua função. A “household”, sendo uma forma social transitória, não estaria sujeita aos perigos da endogamia. Assim, sem o tabu do incesto, os adultos poderiam retornar, no espaço de algumas gerações, para uma sexualidade polimorfa mais natural, deixando de lado a concentração no sexo genital e no prazer orgástico e dando lugar a relações físicas/emocionais totais que os incluam. Relações com crianças incluiriam o tanto de sexo genital de que uma criança seja capaz – e é muito provável que tal capacidade seja consideravelmente superior àquilo que hoje acreditamos – mas, uma vez que o sexo genital não seria mais o foco central do relacionamento, a ausência de orgasmo não seria um problema. Relações entre pessoas de idades díspares e sexo homossexual seriam tabus que desapareceriam, bem como a amizade não sexual (…)”. [6]
Eis aí a sociedade ideal do feminismo radical de segunda onda… Os que tiverem se sentido atraídos que comecem a trabalhar nela o mais rapidamente possível. Os demais (isso é, as pessoas normais), passem a se preocupar, pois tais ideias estão influenciando mais e mais a legislação brasileira e os rumos de nosso direito de família.
Mas a questão é ainda mais profunda. Para Shulamith, neste belo mundo novo que ela já divisava em 1.970, as máquinas substituiriam o trabalho humano. O Estado existiria apenas para distribuir a riqueza e para, eventualmente, punir os poucos que se rebelariam. Embora ela rejeite (e com razão) expressamente o mito do bom selvagem de Rousseau, acaba por adotá-lo ao final das contas, pressupondo que o modelo patriarcal de família, fundado na diferença básica entre os sexos, acaba por ser o grande responsável pelos sofrimentos pelos os desvios humanos. Superado o modelo, todos serão felizes, salvo, talvez, quem sabe, alguns poucos. Em outras palavras, exatamente o que Rousseau dizia do bom selvagem no estado primitivo é o que ela diz do ser humano no mundo novo a ser fundado. O que Shulamith, acertadamente, rejeita com um lado do cérebro acaba por acolher com o outro.
O leitor mais atento já percebeu do que de fato se trata todo o pensamento crítico da Srª Firestone. É a velha e boa gnose na sua versão materialista; é o sonho do retorno ao paraíso perdido, no qual os castigos que Deus deu tanto aos homens (“ganharás o pão com o suor de teu rosto”) quanto às mulheres “(aumentarei as dores de teu parto, em meio às dores darás à luz aos teus filhos”) já não mais existem. A causa de todo mal é a biologia humana e, libertada a mulher de sua natureza, tudo o mais entrará em harmonia e todos serão felizes.
Em suma: destrua-se a família; reduza-se às cinzas a infância; libertem-se as mulheres de sua feminilidade; abram-se as portas de par em par à promiscuidade primeva; refaça-se a natureza à imagem e semelhança do movimento revolucionário feminista radical. Eis os objetivos modestamente traçados no livro.
Talvez o leitor a essa altura, esteja se indagando se tamanha loucura tem alguma chance de ser adotada por cérebros normais. Contudo, tais ideias se tornaram, ainda que com uma roupagem menos chocante, coisa comum em nosso meio e estão, em grande parte, por detrás dos “avanços” recentes do direito de família.
Não é difícil reconhecê-las em grandes textos legais como, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, com seu pressuposto implícito de que os pais e os filhos vivem numa constante tensão de interesses antagônicos. Ou, então, na malfadada Lei Maria da Penha, para a qual o indivíduo do sexo masculino nada mais é do que um inimigo incurável das mulheres. Ou, ainda, na Lei do Divórcio, que dispensa comentários. Pequenas alterações legislativas (como a abolição do crime de adultério ou a adoção do regime legal de separação de bens), também o refletem.
No entanto, onde mais se reconhece o impacto das ideias do feminismo de segunda onda é na tendência jurisprudencial entre nós vigente, a qual, desde há muito, já partia do pressuposto de que a família tradicional é má e deve ser substituída por novas formas de convivência, e que, atualmente, começa a tender, de forma muito perigosa, para a ideia de que a própria natureza humana é também má ela mesma e pode ser alterada ao gosto da pessoa.[7]
Para exemplificar tal influência, anoto que, quando do julgamento da ADPF nº 132 e da ADI nº 4.277, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dr. Ricardo Lewandowski proferiu voto dentro do qual deitou palavras que deveriam ter captado a atenção das pessoas mais atentas (mas que, infelizmente, passaram desapercebidas por muitos). Ei-las (g.n.):
Com efeito, a ninguém é dado ignorar – ouso dizer – que estão surgindo, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para os fins de procriação, outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes.[8]
Compare-se, agora, o dito acima com uma passagem do livro aqui sucintamente analisado (na qual a Srº Firestone canta as vantagens das households propostas sobre as famílias tradicionais) e se terá uma ideia da dimensão do problema atual:
“O nascimento de crianças em uma unidade que se desfaz ou se recompõe assim que se tornem fisicamente independentes, unidade que foi concebida para atender às suas necessidades imediatas, e não para passar poder e privilégio (a base do patriarcado é a herança da propriedade adquirida através do trabalho) eliminaria a psicologia do poder, a repressão e sublimação cultural.”
A comparação de ambos os discursos não deixa dúvidas: a fala do Ministro Lewandowski foi quase uma citação livre de Shulamith Firestone, o que demonstra que as ideias dela penetraram, ainda que talvez não se tenha percebido, nos escalões mais altos de nossa República e são, em grande parte, responsáveis pelos rumos que se têm adotado no regramento jurídico das relações familiares.
Durma-se com um barulho desses…
[1]No original: “Unlike economic class, sex class sprang directly from a biological reality: men and women were created different, and not equal.
[2] No original: “If there were another word more all-embracing than revolution we would use it.”
[3] No original: “a revolutionary in every bedroom cannot fail to shake up the status quo.”
[4] No original: “Let me then say it bluntly: Pregnancy is barbaric!”
[5] No original: “Moreover, childbirth hurts.”
[6] No original: “It is possible that the child might form his first close physical relationships with people his own size out of sheer physical convenience, just as men and women, all else being equal, might prefer each other over those of the same sex for sheer physical fit. But if not, if he should choose to relate sexuality to adults, even if he should happen to pick his own genetic mother, there would be no a priori reasons for her to reject his sexual advances, because the incest taboo would have lost its function. The ‘household’, a transient social form, would not be subject to the dangers of inbreeding. Thus, without the incest taboo, adults might return within a few generations to a more natural polymorphous sexuality, the concentration on genital sex and orgasmic pleasure giving way to total physical/emotional relationships that included that. Relations with children would include as much genital sex as the child was capable of – probably considerably more than we now believe – but because genital sex would no longer be the central focus of the relationship, lack of orgasm would not present a serious problem. Age-ist and homosexual sex taboos would disappear, as well as non-sexual friendship (…)”
[7] Reconheço, aqui, que a nova tendência jurisprudencial é influenciada diretamente não por Shulamith Firestone, mas pela chamada ideologia de gênero. Contudo, sendo o feminismo de segunda onda um elo necessário na corrente de pensamentos que nos conduziu à dita ideologia, a influência das ideias aqui tratadas se dá ao menos por via indireta.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Decumprimento de Preceito Fundamental nº 132 e Ação direta de inconstitucionalidade nº 4.277/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 05 maio 2011. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 03.abr.018.
Excelente artigo.
Serve de alerta para se perceber a silenciosa introdução de conceitos que de tão “martelados” passam da aberração à banalidade.
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