
Recentemente, uma conhecida minha pediu para que eu escrevesse algo acerca de um “argumento” (chamemos assim) a favor do aborto conhecido como “argumento do violinista”. Como eu não sabia do que se tratava, busquei inteirar-me do assunto na internet. Eis aqui a pérola:
“De manhã (você) acorda e descobre que está numa cama adjacente à de um violinista inconsciente – um violinista famoso.[1] Descobriu-se que ele sofre de uma doença renal fatal. A Sociedade dos Melómanos [dos apreciadores de música] investigou todos os registos médicos disponíveis e descobriu que só o leitor possui o tipo de sangue apropriado para ajudar. Por esta razão os melómanos raptaram-no e, na noite passada, o sistema circulatório do violinista foi ligado ao seu, de modo a que os seus rins possam ser usados para purificar o sangue de ambos. O director do hospital diz-lhe agora: ‘Olhe lamento que a Sociedade dos Melómanos lhe tenha feito isto – nunca o teríamos permitido se estivéssemos a par do caso. Mas eles puseram-no nesta situação e o violinista está ligado a si. Caso se desligasse matá-lo-ia. Mas não se importe, porque isto dura apenas nove meses. Depois ele ficará curado e será seguro desligá-lo de si’. De um ponto de vista moral, o leitor teria a obrigação de aceitar esta situação? Não há dúvida de que aceitá-la seria muito simpático da sua parte, constituiria um gesto muito generoso. Mas teria de aceitá-la?”[2]
O argumento teria sido brilhantemente elaborado pela Sra. Judith Jarvis Thomson no Ano da Graça de 1.971 e visa convencer o leitor, por meio de uma “analogia” (novamente, chamemos assim), de que o aborto é moralmente lícito, pois, da mesma forma que a mulher no caso não estaria obrigada a sustentar a vida do violinista que depende de seu corpo, uma mãe não estaria obrigada a manter a vida do bebê em seu ventre. Se a primeira optar por ser boazinha para com o violinista, ótimo; se optar por não se submeter a esta situação, não estará fazendo nada que não esteja dentro dos limites de sua atuação moral. Da mesma forma, se uma mulher grávida optar por levar adiante sua gravidez, tanto melhor para o bebê; mas, se optar por interrompê-la, ninguém a pode criticar por isto.
Acho que o leitor entendeu aonde o argumento quer chegar.
Mas há um problema sério com esta “analogia”. E, descoberto este problema, percebe-se o quão boboca é esta “linha de argumentação”.
O problema é que a “analogia” desconsidera, por completo, a relação de maternidade existente entre uma mulher e seu filho. Entre uma pessoa qualquer e um violinista desconhecido, não há relação alguma que a obrigue sustentar a vida deste último; entre uma mãe e seu filho, existe uma natural obrigação desta em fazer o possível para viabilizar a sobrevivência do primeiro.
De fato, o argumento, ao contrário do pretendido, não encerra uma analogia verdadeira, pois esta pressupõe semelhança. A mãe é coautora do filho, juntamente com o pai, filho esse que não existiria sem ela, ao passo que o violinista não tem uma relação de causalidade com a mulher, ostentando uma existência preexistente ao episódio retratado, fato que por si só afasta a veracidade da tese argumentativa.[3]
A “analogia”, desconsiderando (na verdade, encobrindo) um dado fundamental, revela-se analogia nenhuma, surgindo, agora, aos olhos de todos, como um mero e desonesto sofisma.
Dou alguns exemplos para deixar claro qual é o meu ponto.
Suponhamos que uma mulher é sequestrada e conduzida a um hospital no qual está um violinista famoso. Suponhamos que este violinista tem uma doença rara, porém passageira, e que depende para sobreviver, enquanto a doença não for debelada, de leite produzido por glândulas mamárias femininas. Suponhamos, ainda, que, num azar danado, a única mulher capaz de produzir leite compatível com o organismo do violinista seja justamente a sequestrada. Pergunto: ela tem alguma obrigação moral em permitir que o músico azarado passe meses sugando seus seios?
Alguém que nos lê responderia afirmativamente?
Pois, mudemos “um pouco” o quadro. Suponhamos que uma mulher esteja com seu filho recém-nascido e que a única fonte de alimentação viável para o bebê seja o leite materno. Pergunto: a mulher agora tem a obrigação de deixar que a criança dela se alimente?
O leitor percebe o quanto o dado da “relação de maternidade” altera completamente o quadro? No primeiro caso, a mulher não tem obrigação nenhuma em amamentar o violista; no segundo, se deixar a criança morrer de inanição estará cometendo homicídio por omissão.
E é esta a exata diferença entre um violista qualquer e o fruto do ventre de uma mulher.
Veja-se outro exemplo.
Suponhamos que, no mesmo caso narrado no argumento, tenhamos uma violinista mulher, e não um homem. Suponhamos, ainda, que esta violinista calhe de ser justamente a mãe da pessoa sequestrada. Sim: que seja aquela mulher que a carregou em seu ventre por nove meses, que a amamentou outros tantos, que perdeu noites e noites de sono para protegê-la e que deu o melhor de sua vida em função da sequestrada.
Pergunto: mesmo assim esta última está moralmente desobrigada de sofrer um certo incômodo por nove meses para salvar a vida da mãe?
Tenho certeza de que, agora, o número de pessoas que responderia afirmativamente a esta pergunta seria bem menor, se é que não seria nulo.
Como se vê, a relação de maternidade muda completamente o cenário, tanto do lado da pessoa que necessita do corpo da sequestrada quanto do lado desta mesma.
Retire este dado fundamental e qualquer pessoa pode montar qualquer “analogia estapafúrdia” que desejar. Traga este dado para dentro do raciocínio e um quadro absolutamente diverso se descortina.
E isto, por si só, já basta para que o argumento do violinista seja colocado em seu devido lugar.
Mas gostaria ainda de tecer algumas pequenas considerações. Vamos lá:
1) O argumento parte do pressuposto absurdo de que todo ser humano é, no fundo, um sanguessuga, um parasita de sua mãe. Tamanha distorção e aversão patológica da realidade revelam uma incapacidade assustadora de simplesmente perceber a natureza das coisas e de raciocinar de acordo com ela.
2) A rigor, levado a sério o argumento, a mulher teria direito de abortar até minutos antes de iniciar-se o trabalho de parto. Não é porque ela resolveu ser bacaninha por quase nove meses com o pequeno parasita em seu ventre que obrigatoriamente deverá suportá-lo, ainda, mais alguns minutos. Se ela podia desligar o corpo do bebê do seu próprio já no começo da gestação, então, continua podendo desligá-lo no final, já que a situação ontológica é a mesma.
Gostaria de saber quantos dos que adotam este argumento absurdo estariam dispostos a aceitar mesmo esta última consequência dele.
3) Curiosamente, as feministas que se utilizam do argumento do violinista apelam para um senso comum de moralidade com relação à situação da pessoa sequestrada e ligada ao corpo do músico. Não haveria nada de errado com isto se, ao projetar a situação para o caso de uma gravidez indesejável, elas imediatamente não exigissem do interlocutor que, agora, coloque de lado este mesmo senso comum de moralidade (que impiedosamente milita contra o aborto) e fique apenas com a analogia.
4) Mais curiosamente ainda, o argumento pressupõe que o interlocutor tome o feto como sendo um ser humano à parte da mãe e que vive às custas desta.
Muito bom!
Mas pergunto: como ficam as décadas de argumentação no sentido de que o feto é mera parte do corpo da mulher e que, portanto, esta pode fazer daquele o que bem entender?
5) Ainda que nos acusem de uma certa provocação, não podemos deixar de notar que boa parte dos argumentos em favor do aborto apelam para o “conforto” ou “vida econômica” da mulher. Então, tem-se a “analogia” melhoraria um bocadinho se fosse assim: “Uma mulher, deu causa (ainda que involuntária) à doença de um violinista (não nos esqueçamos que a mãe gerou o bebê em seu ventre) e mantém a vida dele; seria lícito ela abandoná-lo, matando-o para poder passear no shopping ou ir ao cabeleireiro?”
Haveria ainda outros pontos a serem destacados, mas fico com estes.
Como se vê, o argumento varia de estapafúrdio a intelectualmente desonesto. E o simples fato de que defensores do aborto façam uso dele revela o quão frágil é a defesa racional deste crime. Tivessem argumentos melhores e fariam questão de não passar a vergonha de lançarem mão desta analogia equivocada.
Autores: Alexandre Semedo de Oliveira – Juiz de Direito
Raquel Machado Carleial de Andrade
[1] De plano, há de se ressaltar o caráter elitista do argumento. Note o leitor que o personagem é um “violinista famoso”, apelando, assim, para um caráter sentimental e subjetivista. Mudaria o argumento se o personagem fosse um “pedreiro ordinário”? Atrairia mais a simpatia do público leitor e o afastaria das conclusões desejadas pela autora da “analogia”?
[2]Fonte: http://duvida-metodica.blogspot.com.br/2010/05/o-argumento-do-violinista.html
[3] A comparação esdrúxula melhoraria um pouco se fosse revista para situar a pessoa sequestrada como tendo dado causa à “doença” do violinista. Isto porque o bebê não “existia antes de estar no útero materno” e não está lá por caso fortuito.
Acho que vc não leu todo o texto. A autora fala da relação de maternidade, dos casos de gravidez muito avançada, e também considera que não se pode admitir o aborto por mero capricho da mulher. Ela finaliza o texto dizendo que seu trabalho não diz nem um “sim” ou “não” definitivo ao aborto, mas apresenta elementos para aprofundamento do debate para além da questão do feto ser uma pessoa humana dotada de direitos, considerada única e suficiente para embasar a opinião dos que são contra a prática. Além do exemplo do violinista famoso, ela também trabalha com outras situações hipotéticas para embasar seu ponto de vista.
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Cara Regiane, não li exatamente qual texto? O texto que eu me propus a comentar foi lido (e comentado, ora bolas!), e eu ainda deixei o link para quem o quisesse ler.
Provavelmente, você queira dizer que eu não li algum texto da pobre Judith Thompson, no qual ela faça mais algumas considerações e que, talvez, seja menos bocó do que o “argumento” (continuemos chamando-o assim) do violinista.
De fato, não li. Estou à disposição caso queira que eu leia e, na medida em que o tempo me permitir, comente. Insisto que a proposta do artigo era rebater a imensa bobagem que corre a internet com o nome de “Argumento do Violinista”.
Mas, só pelo que você escreveu no teu comentário, já imagino o teor do texto a que você se refere. E, só de imaginar, já fico desanimado: provavelmente, será mais do mesmo. A velha verborragia, os velhos clichês, as velhas falácias e, mesmo, a velha desculpa de sempre: “defendo o aborto (velada ou abertamente), mas não sou abortista”.
Que Deus te abençoe.
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