O “Boa Noite, Cinderela” de Dworkin

Dworkin

 

Naquele que seria o último livro de sua vida, Ronald Dworkin defendeu a interessante tese de que ateus (como ele próprio era) podem ter uma visão religiosa da vida (como ele próprio teria). Tal como qualquer crente (ou “teísta”, termo empregado no livro), um ateu pode se maravilhar com a beleza do universo; pode viver a vida convencido de que há nela um propósito; pode crer que as coisas não se resumem a um aglomerado de átomos em constante movimento, mas que existe algo a mais além da matéria bruta; pode, ainda, fixar seu comportamento em regras de moral objetivas, cuja existência é válida para todos desde sempre. Não há maiores justificativas (ao menos no próprio livro) para tudo isso, nem se preocupa o autor em tentar explicar minimamente as razões pelas quais haveria um propósito na vida dos seres humanos ou regras morais objetivas. As coisas simplesmente são assim e suas afirmações se fundam num “não sei o quê” subjetivo e tomado como evidente em si mesmo.

Tendo tal cenário como ponto de partida, Dworkin alega que os ateus religiosos e os teístas dividem muito de suas respectivas visões de mundo. O leitor não é poupado nem  mesmo do piegas  “o que nos une é mais importante do que o que nos separa”[1]. Não há razões para que não andemos juntos, mesmo porque, vai dizer Dworkin, ao fim e ao cabo de tudo, o que nos separa é somente… Deus. Como se percebe, trata-se de mero detalhe, de uma coisa de somenos e apenas pessoas intelectualmente xucras como um Richard Dawkings, a quem Dworkin critica constantemente, é que podem se apegar a tais miudezas. Os “bons” teístas, claro, jamais aceitariam se ombrear com um Dawkings, e, portanto, não devem tomar a existência de Deus como divisa de suas convicções. Assim, ateus “religiosos” podem se irmanar tranquilamente, dando-se as mãos e construindo, juntos, um mundo melhor.

Mas, há, aí, uma armadilha. E, apesar de todas as platitudes, de todas as afirmações arbitrárias e de todos os pontos francamente constrangedores do livro, é nesta arapuca intelectual que pretendo me concentrar.

De fato, Dworkin, sem que o leitor se dê conta, ao defender a ideia de um “ateísmo religioso”, acaba reduzindo a prática religiosa apenas a um sistema ético. Tal prática religiosa se resume a apenas um “bem viver”, sem fundamento definido.

Ora, é da tradição constitucional americana (e isso vale para o Brasil) que os fiéis das diversas religiões gozem de liberdade para praticar sua fé. O direito à liberdade religiosa é um dos pilares da democracia ocidental, mas, voltando-se apenas para as religiões teístas, deixa de proteger os ateus religiosos. Essa é a profunda injustiça que Dworkin, no fundo, alega estar combatendo. E, caso aceita a ideia de que os sentimentos religiosos dos ateus, no fundo, têm a mesma natureza que o dos teístas, então, segue-se a conclusão de que merecem a mesma proteção estatal. O leitor religioso é levado a ver como uma tremenda injustiça que ele próprio goze de tal proteção para praticar sua fé enquanto que o ateu não tenha a mesma sorte. Passa a ser necessário, assim, inserir-se o conceito de uma religião ateia no princípio de liberdade religiosa. E, sem a menor necessidade de alteração da letra da constituição, isso pode ser feito se o princípio de liberdade religiosa e a proteção do Estado a ele inerente forem, ambos, reinterpretados e dissolvidos num vago princípio de independência ética. O que antes se definia como liberdade de cada indivíduo em praticar sua própria religião, agora, passa a ser visto como mera liberdade de viver uma vida ética de acordo com suas convicções. A ideia é atraente, mas o problema é que ela coloca para além da proteção do Estado as manifestações religiosas que não sejam, propriamente, fundadas na ética religiosa. Em outras palavras, o Estado deixa de garantir a liberdade religiosa propriamente dita e passa a proteger apenas o conteúdo ético das crenças, exatamente aquela parte que os crentes têm em comum com os ateus.

Se a religião passa a ser encarada como mera ética individual, então, o que deriva propriamente da crença em uma divindade específica não se insere no campo de proteção estatal. Assim, o Estado pode proibir determinadas condutas religiosas que se choquem com a ética pública simplesmente por derivarem da crença religiosa em si e não da ética da religião. Por exemplo, afixar um crucifixo numa repartição pública ou permitir que se ensine o criacionismo em instituições de ensino, por não derivarem propriamente da ética religiosa, mas da crença em um Deus especifico (sim, aquele detalhe de somenos mencionado no princípio) são coisas que o Estado pode, nessa nova visão, decidir proibir caso julgue necessário.

Deixemos Dworkin falar por si mesmo:

 

Se negarmos um direito especial ao livre exercício da prática religiosa e contarmos apenas com o direito genérico da independência ética, então as religiões podem ser forçadas a restringir suas práticas de forma a obedecer leis racionais e não discriminatórias que não tragam preocupação no mínimo igual para todas.[2]

 

Mais claro ele não poderia ser…

 

No que se refere aos “ateus religiosos” como o próprio Dworkin, o mesmo, por óbvio, não se aplica. Uma vez que suas convicções éticas não se fundamentam em qualquer crença religiosa, não há razão alguma para que o Estado interfira com o seu “bem viver”. A tutela absoluta de liberdade ética para tais ateus é uma decorrência lógica da redução do fenômeno religioso ao campo da ética invocada desde o começo do livro. Afinal, a “religião” do ateu é apenas uma ética; daí porque a redução da liberdade religiosa a uma liberdade de independência ética tolhe as religiões em diversos aspectos, mas nem sequer tangencia o direito do ateu em viver sua ética livremente.

Após trazer à baila as últimas consequências da premissa lançada desde o princípio, quase que se antecipando à reação do leitor desavisado, o próprio Dworkin lança uma pergunta reveladora: “Do you find that shocking?”

Da minha parte, não houve choque algum com a proposta indecente revelada já nas páginas finais da obra. Em nosso pequeno artigo “Do Estado Laico ao Estado Ateu”, já asseverávamos:

Ora, um ateu, pelo simples fato de ser ateu, possui uma determinada visão de mundo e de moralidade. Tal visão tem profundo impacto na forma pela qual se comporta em sua vida privada e, obviamente, tem profundo impacto na forma pela qual, sendo ele um agente público, se comporta na condução das coisas públicas.

Da mesma forma, uma pessoa que professa determinada fé religiosa possui, em virtude desta fé, uma visão de mundo determinada, que também trará seus impactos na forma pela qual se comporta.

Ocorre que a nova abordagem do princípio do Estado laico força esta pessoa a fazer uma dicotomia: em sua vida privada, pode se comportar conforme suas crenças; mas, se for agente público, em sua atuação pública deve ele se comportar como um ateu.

Impõe-se, assim, uma ditadura do materialismo no trato da coisa pública, pois todos, crentes ou descrentes, doravante, sob a alegação de ser laico o Estado, devem, em suas vidas públicas, agir exatamente como agem os descrentes, que assim, se erigem em classe especial dentro da sociedade: a única que tem o privilégio de seguir suas consciências tanto em suas relações privadas como em seu comportamento público.

Dworkin, assim, revelou-se, malabarismos mentais à parte, apenas mais do mesmo. Inicia com a afirmação de que sua “religião” é uma crença como outra qualquer e termina na reivindicação de direitos para os ateus religiosos que em absoluto tocam aos religiosos teístas. Alega uma igualdade inicial entre todos os credos para postular, ao final, uma superioridade prática apenas do credo ateu. Principia queixando-se de que o ateísmo merece toda a proteção que os Estados dão às religiões para concluir que, no fim das contas, tal proteção não toca a essas, mas apenas àquele.

Tal como no famoso golpe “Boa Noite Cinderela”, se a vítima se deixar convencer pelas palavras inicialmente amistosas do golpista e se tomar do drinque que lhe é oferecido por ele, quando se der conta, terá perdido tudo: seus bens e sua dignidade.

Se o leitor do livro tiver comprado desde o princípio a falácia de que toda e qualquer religião, no fundo, se define por seu conteúdo ético, então, terá se anestesiado desde o princípio para as propostas indecentes que viriam ao final. E, quando se der conta, seu direito à liberdade religiosa já lhe terá sido negado e se verá forçado a viver, na esfera pública, como se ateu fosse.

[1] No original: So theists share a commitment with some atheists that is more fundamental than what divides them, and that shared faith might therefore furnish a basis for improved communication between them.

[2] No original: If we deny a special right to free exercise of religious practice, and rely only on the general right to ethical independence, then religions may be forced to restrict their practices so as to obey rational, nondiscriminatory laws that do not display less than equal concern for them.

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