Estás apodrecendo. Estás caindo aos pedaços. Que és tu? Um saco de lixo. Agora, volta-te e olha-te de novo no espelho. Vês aquela coisa te olhando? É o último homem. Se és humano, a humanidade é aquilo. Agora, torna a vestir-te.[1]
Como já assinalado, Marcuse era membro da Escola de Frankfurt e dedicou sua vida à nobre tarefa de destruir a civilização ocidental cristã, empecilho maior ao advento da sociedade sem classe, do paraíso terrestre idealizado pelos comunistas de todos os tempos. Ao posicionar a repressão dos instintos como um dos pilares de qualquer civilização, ele acreditava que uma revolução de costumes no sentido da liberação sexual, promovida apenas no ocidente, acabaria por destruir a civilização ocidental. Ele cita expressamente seu colega de Escola de Frankfurt, Erich Fromm (g.n.):
A sexualidade oferece uma das mais elementares e mais fortes possibilidades de gratificação e felicidade. Se essas possibilidades fossem permitidas dentro dos limites fixados pela necessidade de desenvolvimento produtivo da personalidade, em vez da necessidade de dominação das massas, a realização dessa possibilidade fundamental de felicidade conduziria, necessariamente, a um aumento na reivindicação de felicidade e gratificação em outras esferas da existência humana. A realização dessa reivindicação requer a acessibilidade de meios materiais para sua satisfação e deve, portanto, acarretar a explosão da ordem social vigente.[2]
Um plano dos mais nobres, como se vê…
Ora, a revolução sexual desejada por Marcuse veio e tornou-se vitoriosa a partir dos anos sessenta do século passado. Quando, em 1.966, ele escreveu um prefácio para uma das edições de seu livro Eros e Civilização, ela, em grande parte graças aos esforços do próprio Marcuse, já tinha sido desencadeada e, ao que tudo indicava, não retrocederia. Porém, para a surpresa dele, a liberação sexual não dava mostras de que viria a “acarretar a explosão da ordem social (então) vigente”. Ao contrário, a tal “ordem social vigente” encampou, ela própria, a revolução de costumes e fez dela um de seus sustentáculos. A sociedade afluente havia aceitado a proposta de Marcuse e, feita a revolução, acabou por englobá-la e por fazer dela uma parte de si mesma. Como ele amargamente reconhece:
E não faz sentido falar sobre “repressão excessiva” quando os homens e as mulheres desfrutam mais liberdade sexual que nunca. Mas a verdade é que essa liberdade e satisfação estão transformando a Terra em inferno.[3]
O inimigo que ele visava destruir com a revolução, portanto, o vencera. O tom de desânimo empregado por Marcuse em sua obra principal (O Homem Unidimensional) é marcante. Quase chega a despertar certa piedade. Ele reconhece que todos os esforços empreendidos desde Marx acabaram resultando em quase nada e que o mundo ocidental mostrava-se mais rico, mais poderoso e mais forte do que nunca. A sociedade afluente conseguira transcender todas as críticas feitas ao longo de mais de um século, entregando aos seus cidadãos uma gama de bens e de prazeres inimagináveis, arrefecendo em quase todos os anseios por revoluções.
Algo, portanto, dera errado no cálculo de Marcuse. E, neste ponto, cabe perguntar: qual o erro cometido por ele?
Respondo: substancialmente, ele se deixou enganar ao crer que a “sociedade afluente”, que tanto odiava, fosse, ela própria, a expressão atual do ocidente cristão. Porém, ao contrário, aquela sociedade do dinheiro e do consumo, do trabalho e do hedonismo era, já então, uma impostura anticristã, sobreposta aos escombros da verdadeira civilização ocidental e que, no fundo comungava com Marcuse do desejo de ver destruídos todos os resquícios da ordem antiga ainda existentes. Ao colocar em marcha uma revolução sexual, Marcuse verdadeiramente atacou as bases cristãs da civilização ocidental, mas não percebeu que, àquela altura, de tal civilização sobrava apenas a base e que todo o edifício erguido ao curso de séculos já desmoronara. A sociedade afluente, sobreposta a tais bases, desejava livrar-se delas para finalmente repousar em solo firme e utilizou Marcuse como menino de recados.[4]
Ao cabo de tudo, Marcuse obteve o que pedira; porém, nem de longe conseguiu o que desejava… A revolução sexual veio; o resultado, contudo, foi o fortalecimento da sociedade que ele pensava destruir com ela.
Isso porque há um problema de base em sua estratégia. A sociedade afluente se constrói nas mesmas bases materialistas sobre as quais o pensamento do próprio Marcuse foi construído. Tanto a primeira como o segundo prometem, ao cabo de tudo, uma vida boa aqui nesta terra… e nada mais. Porém, se a primeira já estava realizando suas promessas, por qual razão alguém passaria a combatê-la para se aliar a Marcuse em busca da revolução socialista? Ele simplesmente não tem argumentos para convencer quem quer que seja e, no final de seu O Homem Unidimensional, quase que se confessa incapaz de encontrar algum, afirmando que a missão das correntes críticas de pensamento (ou seja: a missão dele próprio) é somente criticar a realidade social existente, desobrigando-se de traçar qualquer modelo social que substituísse o modelo criticado.
Qual o futuro, então, da revolução? Marcuse mostrava-se bastante desanimado e estava ciente que a ideia revolução proletária ficara definitivamente para trás, pois o proletariado, sob um ponto de vista meramente material (único que Marcuse podia oferecer) havia sido o mais beneficiado com o advento da sociedade afluente. Ele voltou-se, então, ao lumpesinato elegendo-o como o novo Enéas da revolução comunista, esperança última de subversão da ordem estabelecida e do advento da sociedade sem classe:
A nova boêmia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz – todos esses “decadentes” passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi: pobre refúgio da humanidade difamada.[5]
A ideia de buscar na “decadência” a reserva final da verdadeira humanidade cedo iria se transmutar para procurá-la, diretamente, no lumpesinato. Em O Homem Unidimensional, ele o afirma taxativamente:
Entretanto, debaixo da base popular conservadora está o substrato dos proscritos e marginalizados, os explorados e perseguidos de outras raças e cores, o empregado e o não-empregável. Eles existem fora do processo democrático; sua vida é a mais imediata e a mais real necessidade pelo fim das condições e instituições intoleráveis. Assim sua oposição é revolucionária, ainda que sua consciência não seja. (…) O fato de eles começarem a se recusar a jogar o jogo pode ser o fato que marca o início do fim de um período”[6]
Como eu disse: chega a dar pena… Os bandidos, os alcoólatras, os drogados, as prostitutas passaram a ser “o último refúgio da humanidade difamada”; a última esperança de que a revolução ainda viesse. Os lumpesinos são o último homem; a reserva final de humanidade disponível.
Ao se chegar neste ponto, o paralelo com o livro 1.984 é quase automático. O famoso personagem Winston recusava-se a aderir ao Grande Irmão, pois afirmava ser um homem de verdade e que, como tal, não se curvaria ao poder tirânico vigente. Seu antagonista O’Brien, agente do governo, depois de mantê-lo preso por largo período de tempo, manda que Winston se olhe no espelho. Ao fazê-lo, contempla o horror daquilo em que se transformara. Vale a pena citar trechos do livro pela plasticidade da cena:
Aproximou-se do cristal. A cara da criatura parecia se projetar, por causa do corpo arcado. Uma cara triste de presidiário, com a testa ossuda se prolongando pelo crânio calvo, um nariz adunco e zigomas salientes acima dos quais os olhos apareciam vigilantes e ferozes. As faces estavam cobertas de sulcos, a boca chupada para dentro. Com certeza, era o seu rosto, mas lhe parecia ter mudado mais do que mudara por dentro. (…) O que mais aterrorizava, porém, era o aspecto geral do corpo. O tórax com as costelas de fora, ficara estreito como o de um esqueleto; as pernas tinham emagrecido tanto que os joelhos eram mais grossos que as coxas. (…) Se lhe perguntassem poderia dizer que se tratava do corpo de um homem de sessenta anos, vítima de uma doença maligna.”[7]
Um Winston assim, não poderia resistir por muito mais tempo. O “último homem”, a resistência ao Grande Irmão, não era lá muito resistente ao final das contas e, poucas páginas depois, vê-se esse pobre “último homem” assimilado à ordem vigente e amando o próprio Grande Irmão.
Se o lumpesino, como disse Marcuse, era, na década de sessenta do século passado, o último homem, a reserva final da humanidade subjugada, a sociedade afluente não teria dificuldade em fazer-se amada por ele e em assimilá-lo.
E, de fato, ela, mais uma vez aceitou o desafio de Marcuse e o lumpesinato foi colocado no centro das atenções, com notórias influências no direito dos povos ocidentais e especialmente no Brasil (quando o leitor ouvir falar de “bandidolatria”, saberá já de onde veio a ideia). E o que aconteceu? Novamente, ela incorporou a ideia e passou a alimentar-se dela. Ao cabo de quarenta anos desde O Homem Unidimensional, a ascensão do lumpesinato realmente colaborou para um enfraquecimento ainda maior dos resquícios de civilização cristã no ocidente; mas, de novo, não fez balançar no mínimo que fosse a força da sociedade afluente atacada por Marcuse.
E hoje, o que se vê é que o lumpesinato não somente não deseja destruí-la; deseja apenas ampliar sua margem de participação nos bens e prazeres com os quais ela nos mantém a todos como que hipnotizados. Tal como Winston, ele agora ama o seu Grande Irmão e deseja apenas os beneplácitos deste.
Como se diz: quem não aprende com o primeiro erro tende a repeti-lo…
Afinal, se pensadores como Marcuse lograram convencer uma geração inteira de que tudo o que se pode esperar da vida é o gozo de bens e de prazeres, então, eles mesmos, por mais que combatessem a sociedade afluente, acabaram por jogar todos os convencidos diretamente sob as garras da mais impressionantemente rica sociedade que o mundo já viu. Apenas um sentido genuíno de transcendência, apenas o anseio pela eternidade é que permitem ao homem hodierno colocar as riquezas e prazeres da sociedade atual em sua devida perspectiva capacitando-o a verdadeiramente empreender esforços no sentido de superá-la.
Sem essa abertura para a eternidade, o homem hodierno fatalmente sucumbirá ao engodo da sociedade afluente. Mas tal abertura é coisa que Marcuse não podia sequer cogitar em dela fazer menção. Seu pensamento era irremediavelmente materialista e não podia abrir mão deste viés.
Ao cabo de tudo, tem-se que Marcuse é daquelas raras pessoas cujo sucesso estrondoso é a exata medida de seu estrondoso fracasso. Uma surpreendente combinação de vitória e de derrota. E, a julgar pelo tom amargo adotado em O Homem Unidimensional, tem-se a impressão que ele ao menos entreviu que a sociedade que visou destruir pisaria em seus ossos ao mesmo tempo em que celebraria o seu nome.
[1] Orwell, George. 1984. Companhia Editora Nacional, 27 ª ed., p. 252.
[2] Marcuse, Herbert. Eros e Civilização – Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. LTC. Edição do Kindle.
[3] Marcuse, Herbert. Eros e Civilização – Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. LTC. Edição do Kindle.
[4] Como Marcuse cometeu um erro simplório e aparentemente tão fácil de ser evitado? Não sei a resposta. Mas arisco-me a dizer que isso se deve à influência de Hegel em seu pensamento. Para Hegel, algo é precisamente aquilo no qual ele se transforma. Assim, provavelmente Marcuse, vendo uma continuidade geográfica entre o ocidente cristão de séculos passados e a sociedade ocidental de seu tempo, tomou essa como sendo o estado atual daquela, odiando o estado de coisas que via em nome de outro estado, já então varrido para a poeira dos tempos.
[5]Marcuse, Herbert. Eros e Civilização – Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. LTC. Edição do Kindle.
[6] Marcuse, Hebert. O Homem Unidimensional. Editora Edipro, 1ªed; p. 240
[7] Op. cit. p. 252.