UM SALTO PARA O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE -parte I
Des. Ricardo Dip
1.Persevera em muitos juristas de nossos tempos a convicção penalística de que haja um critério fundamental, reportado correntiamente à Magna charta de João Sem Terra, qual seja, o princípio da legalidade penal.
Tem-se de pensar, contudo, que, a despeito dos erros de referir a origem do critério legalidade penal ao Medievo inglês e a de sua doutrina à via pœnalis modernorum (designadamente a Anselm von Feuerbach), esse critério e uma doutrina adequada condizente ꟷque é a da natureza das coisasꟷ conflitam por manifesto com as características centrais da pós-modernidade:
-por que é, de fato, que o direito penal haveria de isentar-se da síncrese dos opostos em que consiste, essencialmente, a pós-modernidade?
-Em outras palavras: por que o direito penal deste século se imunizaria da aditividade indistinta dos opostos que configura o largo e difuso relativismo (às vezes, performativo) pós-moderno?
2.Foi em 1188, na igreja de San Isidoro, em León, que, reunidas as Cortes com representantes de Oviedo, Astorga, Salamanca, Zamora, Ciudad Rodrigo e, talvez, ainda, Benavente, Toro e Ledesma, Dom Alfonso IX, rei de León e da Galízia, jurou que ninguém fosse submetido a juízo “a não ser pelas causas pelas quais deviam ir segundo seus forais” ꟷ nisi pro his causis pro quibus debent ire secundum foros suos
Eis aí, pois, com esta Carta magna leonesa, a possível primeira manifestação histórica do princípio da legalidade penal, anterior de quase três décadas à Magna charta de João Sem Terra (1215).
3.De resto, no plano doutrinário, já a ideia da legalidade (também a penal) se afirmara por Aristóteles e abonara-se por S.Tomás de Aquino, na Suma theologiæ:
- “Como diz Aristóteles [I Ret., cap. I], é melhor que tudo seja regulado por lei do que entregue ao arbítrio do juiz” (Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad2um);
-“… como a justiça animada do juiz não se se encontra em muitos e é flexível, necessário é, sempre que for --“como a justiça animada do juiz não se encontra em muitos e é flexível, necessário é, sempre que for possível, determine a lei como se deva julgar, deixando margem pouquíssima ao arbítrio humano” (Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad2um);
- “… é necessário que o juízo se faça segundo a lei escrita, pois do outro modo o juízo se apartaria já do justo natural, já do justo positivo” (IIa.-IIæ., q. 60, art. 5, respondeo).
4. Ainda que o seja por menos louváveis motivos, é fato que esse critério de afeição à legalidade foi acolhido pelos modernos, desdobrando-se, p.ex., tal o fez von Feuerbach, em três fórmulas ou “princípios derivados”:
- nulla pœna sine lege,
- nulla pœna sine crimine,
- nullum crimen sine pœna legali,
depois explicitadas para reconhecer-se que a lei penal deve ser estrita, escrita, certa e prévia:
-lei estrita: nullum crimen, nulla pœna sine lege stricta;
- lei escrita: nullum crimen, nulla pœna sine lege scripta;
- lei certa: nullum crimen, nulla pœna sine lege certa;
– lei prévia: nullum crimen, nulla pœna sine lege prævia.
O direito penal pós-moderno parece encaminhar-se por outros caminhos.
Prosseguiremos.