Vivemos tempos intelectualmente paradoxais. Por um lado, temos a possibilidade de acesso ao conhecimento sem que precisemos nos deslocar geograficamente, ainda que isso seja muito útil para nele aprofundarmos e o vivenciarmos com maior ardor científico. Afinal, todos gostamos de crer que detemos um pensamento próprio, alheio a convencionalismos e modismos de época.
Por outro, as mesmas ferramentas que potencializam aquele acesso também provocam, no âmbito social, uma espécie de imbecilização coletiva, por meio de frames e contraframes que, no afã de sintetizar todo um modo de pensar político, acabam por criar estábulos mentais, plenos de bovinidade intelectual e vazios de racionalidade crítica, como o tal #EleNão, reagido pelo tal #EleSim.
Essa atitude intelectual padece de um problema sério: as ideias não são assumidas por convicção racional, mas por impregnação ambiental. Se o cenário empírico fosse composto por crianças de uma classe de educação infantil, nada mais trivial. Mas não é bem o caso. Nosso olhar está mirado em adultos das mais várias classes de uma sociedade inteira. Seria cômico, como uma ópera bufa, se não fosse trágico, como um drama grego.
Tal fenômeno não é composto por uma só ilha. Diria que se trata do braço de um arquipélago maior, composto por outras extensões de terra, variáveis em tamanho e profundidade: o emotivismo, em que as razões são sufocadas pelos sentimentos; a tergiversação da linguagem, que recorre a eufemismos e talismãs hermenêuticos para evitar o confronto crítico; a censura, que, sem se reconhecer como tal, impõe a proibição de discussão de determinados temas, sob pena de alguma minoria sentir-se ofendida e que leva, inclusive, a restringir o próprio debate acadêmico; e, ainda, a distração digital, que pode afogar o pensamento por falta de tempo e desejo de exercê-lo.
O que os intelectuais e os formadores de opinião pública (rectius: publicada, segundo Churchill) podem aportar numa sociedade em que determinadas ideias são mal vistas ou apresentadas por meio de rótulos falseados? Basta rasgar o verbo contra aqueles que refletem de forma diferente, sem se preocupar em dizer algo de valioso? Ou inventar outra hashtag reducionista?
Frente ao rugido dos indignados de plantão de todas as cores e partidos, penso que seria o caso de se propor um retorno à moderação e à atitude reflexiva, a fim de se suavizar, pelo menos, os conflitos desnecessários. E esse retorno passa, necessariamente, pelo caminho de uma busca racional e apaixonada da verdade, a melhor aliada de um debate civilizado, mormente quando, nesse rugido, há uma obstinação que faz de cada opinião uma espécie de dogma incontestável.
Não existe outra saída, ainda que eu passe por um metafísico pleno de wishful thinking, por ousar a pensar que o homem é capaz da verdade. A busca de uma verdade que deve ser reconhecida é um antídoto contra a arbitrariedade daqueles que pretendem impor suas opiniões, desejos ou vontade de poder.
Assim, o relativismo não pode ser um requisito para a abertura da mente e o paradoxo reside no fato de que a mesma verdade, expulsa do debate público em nome do relativismo, foi logo reivindicada por esses mesmos indignados a partir do momento em que não conseguiam mais distinguir entre fatos e fake news. Ou a “tábua de salvação” das democracias liberais, o tal fact-cheking, não guarda relação com o fato de que a verdade necessita de critérios de verificação externos à própria subjetividade?
Huxley tem razão, ao ter profetizado em 1932, que “a ausência da verdade seria o atributo mais proeminente da sociedade moderna”. A busca racional e apaixonada da verdade – ou, pelo menos, a intenção de acercar-se dela – é uma inclinação indispensável, se queremos nos livrar desse subjetivismo reinante no domínio político da realidade social.
E, como se trata também de suspeitar dos próprios juízos, é conveniente que essa busca seja feita em diálogo com os demais, porque o pluralismo não necessariamente se confunde com o relativismo, o qual nivela todas a opiniões, nem com a diversidade, que tende a dissipar a verdade.
Toco meu berrante. A disposição de buscar a coisa em si e de levar a sério as pessoas com as quais discrepamos por suas ideias políticas, porque, mesmo sendo razoáveis, não são sofisticadas ou nos pareçam muito lineares, é justamente o que nos previne do dogmatismo e do pensamento de manada, tão tóxicos para o alcance de uma verdade que nos ilumine a fazer a coisa certa numa democracia. Agora, resta saber se o som desse berrante foi ouvido por aqueles indignados, na esperança de que deixem de ruminar sua bovinidade intelectual.