Gigante com Pés de Barro

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Quando Marx e Engels lançaram seu “Manifesto Comunista”, no Ano da Graça de 1.848, havia nele algo que parece ter chamado pouco a atenção do, digamos, “militante comum”, mas que, bem captado pelos líderes e pensadores do movimento, tornou-se uma verdadeira bomba destinada a remodelar toda a sociedade ocidental no século e meio seguinte, ainda que o modelo de comunismo lá proposto viesse a se revelar uma espantosa sucessão de fracassos e de tragédias. Falo, aqui, do ódio (a palavra não é um exagero) de ambos à família tradicional. Eles o dizem abertamente e com um certo ar de arrogância: seu desejo é o de destruir a família “burguesa”, vista como célula de exploração da mulher e dos filhos pelo homem. Para os que não o creem, abro aqui um espaço para que eles mesmos o digam:

A supressão da família! Mesmo os mais radicais exaltam-se com esse infame desígnio dos comunistas. Sobre o que repousa a família atual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o lucro privado. Somente para a burguesia ela existe de forma plenamente desenvolvida; mas ela encontra o seu complemento na carência de família imposta aos proletários e na prostituição pública. (…) Vocês censuram-nos querer suprimir a exploração dos filhos pelos pais? Nós confessamos esse crime.[1]

A ideia é tão francamente absurda que prosseguiu como que escondida durante o avanço do movimento comunista. Jamais (ao menos, até onde eu saiba) foi ela proclamada aos quatro ventos ao militante comum, mas, desde sempre, foi assimilada e trabalhada por aqueles que lideravam o movimento comunista na esfera intelectual e que, ao cabo de tudo, eram os que detinham (e ainda detém) o poder de comandar as ações.

As razões de tanto ódio e de tanta bile destilados contra a família tradicional, contudo, não estão claramente justificadas no texto de O Manifesto Comunista. Marx e Engels tinham esse mau sentimento profundo relativamente a ela, mas parecia-lhes faltar um instrumental teórico que o pudesse justificar. Era uma aversão aguda, porém vaga e sem consistência. A teorização do ódio veio a lume apenas em 1.884 no livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, oficialmente escrito por Engels, mas atribuível tanto a ele quanto a Marx, seu Dom Quixote, morto poucos meses antes.

O livro é curto e, a bem da verdade, baseia-se quase que inteiramente numa outra obra publicada em 1.877 de autoria do antropólogo americano Lewis H. Morgan intitulada “The Ancient Society”, que pretendeu investigar precisamente o surgimento da família, da gens, das fratrias, das tribos e do Estado. Trata-se de uma obra colossal (e colossalmente equivocada em suas premissas e conclusões) e que reflete décadas de estudo do Morgan, escrita com consistência científica à qual Engels, em seu trabalho tanto mais famoso quanto superficial, deu um tratamento panfletário. Pode-se dizer que o verdadeiro cérebro por detrás do ataque que se seguiria à família foi Morgan; Engels foi apenas seu alto-falante.[2]

Ancient Society representa uma tentativa implícita de aplicação da teoria de Charles Darwin às relações humanas. Ele toma por certo que as sociedades, todas elas, evoluem do estágio de selvageria para o de barbárie e, finalmente, para o de civilização. Todo povo civilizado já foi bárbaro e selvagem; todo povo bárbaro já nadou na selvageria; todo agrupamento selvagem pode, um dia, tornar-se bárbaro e, então, civilizado. É tudo uma questão de evolução: descemos das árvores e deixamos de comer frutos e raízes para, através de um processo evolucionário lento, chegarmos às grandes cidades e à harmonização do bacalhau com uma taça de alvarinho.

No terreno das relações humanas, pari passu com o desenvolvimento acima traçado, passamos de um matriarcado no qual havia uma espécie de orgia generalizada (e no qual todos tinham posse sexual de todos indistintamente) para estágios cada vez mais sofisticados aos quais os agrupamentos eram impulsionados pelas leis da evolução (claro; afinal, o que mais poderia tê-los impulsionado?): num primeiro momento, proibiram-se relações sexuais entre ascendentes e descendentes; depois, entre irmãos; um tanto mais à frente, entre membros de uma mesma família; depois, entre os de uma mesma gens. No liame entre a selvageria e a barbárie, ocorre a alteração geral do modelo: de um matriarcado cada vez mais sexualmente restrito, a um patriarcado no qual as relações tendiam-se a se dar sempre entre um mesmo casal. O homem, que durante o matriarcado acumulara para si os meios de produção, passaria a manter sua esposa e seus filhos sob seu constante domínio. Assim o descreve Engels (g.n.):

Os rebanhos constituíam nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem. A mulher tinha participação no consumo, porém não na propriedade. O “selvagem” – guerreiro e caçador – tinha se conformado em ocupar o segundo lugar na hierarquia doméstica e dar precedência à mulher; o pastor, mais “suave”, envaidecido com a riqueza, tomou o primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo. E ela não podia reclamar. A divisão do trabalho na família havia sido a base para a distribuição da propriedade entre o homem e a mulher. Essa divisão do trabalho na família continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa – a exclusividade no trato dos problemas domésticos – assegurava agora a preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia sua importância, comparado ao trabalho produtivo do homem. Este trabalho passou a ser tudo; aquele, uma insignificante contribuição. Isso demonstra que a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante. Essa condição só pode ser alcançada com a grande indústria moderna, que não apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até o exige e tende cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em uma indústria pública.[3]

Eis o resumo da historia: à medida que avançam da selvageria à barbárie, os agrupamentos humanos avançam em restrições sexuais e, igualmente, avançam também do matriarcado para o patriarcado. A propriedade privada vai se fortalecendo e, quando a história desponta, a mulher já está na sua jaula. A família patriarcal é já onipresente e, a partir dela, irão se formando todas as formas de opressão: primeiramente, a da mulher; depois, a  do escravo; mais à frente, a dos servos da gleba; por fim, a do proletariado.  Nessa visão de mundo, a família deixa de ser considerada a célula mãe da sociedade e passa a ser vista como célula mãe de toda a opressão. Toda a maldade do mundo nela se origina; daí porque a sociedade ideal precisa destruí-la.

O problema da tese de Morgan (e, portanto, da de Engels), contudo, é o mesmo da de Darwin: não existe a mais vaga prova de que as coisas tenham ocorrido como descritas por ele. Só que Morgan, ao menos, é sincero e não o nega. Antes, desde o princípio, afirma cabalmente que, quando a história surge, a civilização já está em pleno funcionamento e, nela, o que se vê, desde o princípio, é o patriarcado opressor em ação. Para estabelecer sua tese, ele se baseia no estudo de grupos indígenas (a maioria, no estado de barbárie), nos quais percebia a existência de um certo deslocamento entre as relações familiares e as de parentesco, pressupondo que essas refletem como eram as relações sexuais num período anterior ao daquelas.

Morgan escreve abundantemente acerca das gens entre os aborígenes australianos, tidos por ele como o agrupamento humano mais primitivo de sua época, e que, portanto, representava uma rara oportunidade para que se pudesse divisar, por meio do contraste entre as relações familiares e de parentesco entre eles vigentes, como eram as sociedades humanas todas nos estágios mais baixos da selvageria. Morgan dá a entender que o isolamento geográfico em que os aborígenes viviam era o responsável pela sua manutenção persistente no estágio de selvageria.

É aqui, precisamente aqui, que o leitor do Ancient Society pode fazer a pergunta que Morgan não fez, pergunta essa cuja simples formulação poderia colocar abaixo toda a sua estupenda obra: se, inexoravelmente, os agrupamentos humanos partem todos do estado de selvageria para o de barbárie e, daí, para o de civilização; se os aborígenes são o agrupamento mais atrasado que se conhecia, vivendo isolados no continente australiano, então, como exatamente eles foram parar lá?

Isso porque o simples fato de terem chegado ao continente australiano pressupõe que os aborígenes, num passado remoto, eram capazes de construir veículos de navegação altamente avançados, possuindo, ainda, conhecimentos muito desenvolvidos de como se orientar em pleno oceano. Coisas, enfim, típicas de povos que já atingiram um alto grau de civilização. Esse simples questionamento poderia fazer com que Morgan percebesse que a verdade dos fatos tende a ser oposta à tese a que adere: não é que o isolamento dos aborígenes australianos os tenha mantido em plena selvageria; antes, a ruptura do contato deles com todo e qualquer outro agrupamento humano precipitou-os num estágio de desenvolvimento social muito inferior àquele de que gozavam seus antepassados.

Em outras palavras: a evolução imperiosa das sociedades humanas, que está na base da teoria de Morgan (e, assim, na de Engels), é uma grande balela. A ideia de que todos os grupos humanos passam pelas mesmas fases de desenvolvimento tanto social quanto sexual não somente não conta com qualquer elemento empírico que a sustente (coisa confessada ab initio), mas, ainda, choca-se violentamente com aquilo que se pode perceber com um simples passar de olhos nas sociedades. Se o “patriarcado” e sua família “opressora” não foram instituições que se desenvolveram lentamente impulsionados pela força cega da evolução, então a ideia de que toda a maldade do mundo neles reside e de que podemos substituí-lo a nosso bel prazer é tola, para dela se dizer o mínimo.

A verdade sobre tudo isso parece estar não com Morgan, mas, como sempre, com Chesterton:

A despeito de todo o mexerico pseudo-científico sobre o casamento por rapto e o homem das cavernas batendo na mulher com um cacete, pode-se observar que, tão logo o feminismo se tornou um clamor da moda, insistiu-se em que a civilização humana em seu primeiro estágio tinha sido um matriarcado. Aparentemente era a mulher das cavernas quem carregava o cacete. Seja como for, todas essas ideias são pouco mais que conjecturas; e elas têm um modo curioso de seguir o destino das teorias e caprichos modernos. De todo modo, não são história no sentido de serem registro; e podemos repetir que, quando chegam a registros, a verdade óbvia é que a barbárie e a civilização sempre habitaram o mundo lado a lado, a civilização às vezes se expandindo para absorver os bárbaros, às vezes decaindo em relativa barbárie, e em quase todos os casos possuindo de forma mais acabada certas ideias e instituições que os bárbaros possuem de uma forma mais rude; tais como governo ou autoridade social, as artes e especialmente as artes decorativas, mistérios e tabus de variados tipos e em especial em torno do sexo, e alguma forma daquela coisa fundamental que é a principal preocupação desta investigação; aquilo que chamamos de religião.[4]

 

Ou seja: Engels e Marx esperaram décadas para uma justificação teórica de seu ódio à família e, quando ela finalmente chega, não passa de pura conjectura sem amparo algum na realidade.

Obviamente que, se o ódio pôde se sustentar desde logo sem qualquer embasamento, a existência agora de uma fundamentação, mesmo que sacada na base da pura imaginação, era, em si mesma, uma oportunidade imperdível. E, se a teoria que lhes caiu no colo ainda permitisse que a família fosse odiada não apenas por ser uma peça odiosa na imensa engrenagem da sociedade, mas por ser, ela própria, a base mesma da opressão capitalista, então, tanto melhor.

Nesse cenário, que a tese de Morgan fosse mera mitificação era coisa das mais insignificantes e sem importância. O movimento comunista tinha já seu gigante de ouro; com frágeis pés de barro, mas um gigante ainda assim e estava tudo pronto para o ataque à família e, por meio dela, à toda a sociedade civilizada do ocidente.

Mas isso é assunto que pretendo tratar em um próximo post.

[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 12, n. 34, p. 7-46,  Dec.  1998 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141998000300002&lng=en&nrm=iso&gt;. access on  28  Apr.  2018.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141998000300002.

[2] Da leitura do livro de Morgan, não se extrai que ele visasse destruir a família tal qual a conhecia; porém, o fato de que suas ideias serviram a tal propósito é coisa para além de qualquer dúvida razoável.

[3] ENGELS, Friedrich. A Origem da Famíla, da Proprieade Privada e do Estado. Ed. Best Boso. eBook Kindle.

[4] CHESTERTON, G. K. (2014). O Homem Eterno. (R. Robson, Trad.) Campinas: Ecclesiae, p. 73.

 

2 comentários em “Gigante com Pés de Barro”

  1. PARABÉNS, Alexandre. Excelente aula de História. Cada cientista contribui um pouco com suas investigações. Assim, vamos amadurecendo intelectual e moralme

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