A Guilhotina Já Está Preparada.

 

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A Execução de Maximilien Robespierre

Em questão de horas, duas notícias de altíssimo interesse para a Magistratura correram o país e merecem no mínimo um pequeno comentário pela relevância que ostentam.

Vejamos a primeira: uma turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que o aborto até o terceiro mês de gestação não é crime, em que pese a haver lei (coisa de que por vezes nos esquecemos) em sentido contrário, decisão que já despertou antagonismos no Poder Legislativo, que dá sinais cada vez mais claros de estar farto com o que entende ser uma incontrolável idiossincrasia legislativa de nossa Suprema Corte.

Agora, vejamos a segunda (que está causando verdadeiro alvoroço entre os membros da Magistratura): a Câmara dos Deputados, ao votar o chamado “pacote anticorrupção” (nem George Orwell conseguiria imaginar uma expressão tão apropriada para sua novilíngua), aprovou a emenda de deputado Wewerton Rocha (PDT-MA), que criou uma figura de crime de responsabilidade envolvendo juízes e promotores com tipos absolutamente abertos e que, na prática, solapa de vez a independência tanto do Poder Judiciário quanto do Ministério Público.

Embora ambas as notícias estejam sendo muito comentadas, poucos estão percebendo a ligação íntima entre elas. Aparentemente, aliás, são quase que antagônicas, pois que, numa das notícias (a primeira), vê-se um Poder Judiciário no auge de sua soberania, exercendo todo o poder de sua caneta e colocando-se, de um certo modo, não como guardião das leis e do direito, mas como fonte do último e como agente de relativização das primeiras. Na outra (a segunda), vê-se um Poder Judiciário acossado pelo Legislativo e pela opinião pública, ferido de morte em sua mais importante garantia.

Porém, o antagonismo é meramente aparente. Dois pontos que estão, cada qual, na extremidade de uma reta são, de fato, antagônicos. Mas, se a reta for curvada em 360°, o antagonismo desaparece e os pontos passam a ocupar o lugar mais próximo possível entre eles, quase que se confundindo. Se percebermos que, antes de compor uma reta, as duas notícias compõe uma figura circular (afinal, revoluções se referem exatamente a movimentos de rodas), então, perceber-se-á que o ativismo judiciário e o massacre midiático e político da Magistratura são coisas tão próximas entre si que é impossível entender um sem o outro.

Ambas as notícias ilustram, num arco temporal de poucas horas, aquilo que temos dito há muito: há uma revolução em curso no Brasil (e, a bem da verdade, não somente em nosso país), que destina ao nosso poder o glorioso papel de acólito do Partido (entendido no sentido gramsciano do termo), e que não poupará esforços até nos colocar em nossos devidos lugares; por outro lado, o próprio Poder Judiciário é agente dessa mesma revolução, fazendo-a avançar, via ativismo, em inúmeras frentes nas quais, sem a nossa ajuda preciosa, ou não avançaria ou avançaria a muito custo. Em outras palavras, fazemos a máquina revolucionária girar e, inapelavelmente, tornamo-nos vítimas da máquina que gira.

Tendo isso como pano de fundo, percebe-se claramente a vinculação entre esses dois episódios: num deles (na descriminalização do aborto apesar da lei que o incrimina), vemos o Poder Judiciário fazendo avançar a revolução; no outro, vemos a Magistratura definitivamente acossada e em face de um perigo que talvez jamais tenha enfrentado desde que existe em solo pátrio.

Não me recordo de outra oportunidade na qual os dois papéis que tocam ao Poder Judiciário na revolução tenham adquirido tamanha visibilidade em tão pouco espaço de tempo. Grosso modo, é uma experiência semelhante àquela que devem ter tido os habitantes de Paris ao acompanhar o destino de Robespierre. Num primeiro momento, contemplaram-no do alto de seu poder, mandando guilhotinar seus inimigos em nome da Révolution Francaise. Mais tarde, reuniram-se na Praça da Revolução para vê-lo, agora, de joelhos esperando que a lâmina da guilhotina descesse sobre sua própria cabeça. A única diferença é que a altivez e a humilhação do jacobino se sucederam num arco de alguns anos e as da Magistratura aqui comentadas se deram em questão de poucas horas. A roda da nova revolução gira cada vez mais rapidamente…

E, justamente por isso, entendi por bem escrever esse pequeno artigo. Talvez jamais ambos os papéis se tornem tão clara e didaticamente visíveis um ao lado do outro como agora. É possível que não haja outra oportunidade para que nós, juízes, entendamos o que verdadeiramente está ocorrendo. Se quisermos salvar a Magistratura, não bastam mobilizações e longas conversas com parlamentares. Se quisermos salvá-la temos que combater o monstro que a quer destruir; e não podemos combatê-lo se, cotidianamente, o alimentamos. Ou, se quisermos nos manter dentro da metáfora aqui proposta, temos que fazer parar de girar a roda da revolução, que ora nos coloca em seu ponto mais alto (apenas para que a façamos girar mais fortemente), e ora nos coloca em seu ponto mais baixo (para nos massacrar à medida que gira).

É verdade que talvez essa investida dos nossos inimigos redunde em coisa nenhuma. Afinal, cometeram o erro de tentar acabar com nossa independência justamente num momento em que tal tentativa parece uma retaliação aos avanços da Operação Lava Jato. E isso pode fazer com que a opinião pública fique contra a medida, obrigando os parlamentares a retroceder nela, ou mesmo impondo ao Presidente da República a tarefa de vetar a lei nesse ponto. Mas, se a tentativa fracassar, será apenas por isso. No momento, depois de anos em que se cavou nossa cova nos meios de comunicação, a opinião pública está contra nós e, se eventualmente houver pressão por parte dela contra a aprovação final dos crimes de responsabilidade, tal ocorrerá apenas porque a população quer preservar a Operação Lava Jato em si, não porque se importe conosco.

Daqui a alguns anos, após o término do ciclo das investigações conduzidas brilhantemente por procuradores da república e pelo Juiz Federal Sérgio Moro, uma nova tentativa como essa estará fadada ao sucesso, e, na pior das hipóteses, a atual terá servido como balão de ensaios para os que querem acabar com nossa independência.

Ou acordamos agora, abdicando de nossos sonhos revolucionários, deixando de auxiliar, vaidosamente, a revolução nas frentes em que a temos ajudado, ou dançaremos a dança dessa mesma revolução. E, nela, num momento estamos em pé, com os peitos estufados e cheios de orgulho pelo peso da nossa caneta; no outro, estamos de joelhos, com capuz no rosto, esperando os acordes finais da lâmina da guilhotina descendo rumo aos nossos pescoços outrora tão altivos.

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